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Democracia

27-03-2020 - Armando Alves

Ah, política, esse universo distante do cidadão onde homens de fatos engomados dão o seu melhor por comprovar que o seu adversário é tão qualificado para governar uma sociedade como um sabonete é indicado para lavar o cabelo. Não é que não lave, mas fica todo emaranhado e custa mais a pentear do que se tivesse sujo. Quando a ideia de democracia chegou a Solião, aos cidadãos, que até à data nunca tinham sido chamados de tal, cheirava a esturro. Não na sua definição, mas é um daqueles conceitos que soa bom demais para ser permitido pôr em prática. Liberdade de escolher quem manda? A ideia era convidar o povo a baixar as forquilhas e as tochas sob a alegação de que recairia sobre si o poder de escolher quem determina as regras que o regem. E tinha de ser exposto desta forma, em que a palavra poder se referisse ao povo, de modo a que estas ficassem contentes. O murmúrio da ideia espalhara-se como fogo pela cidade que apenas tinha esse título porque estava farta de ser tratada por vila, título que obtivera quando aldeia começou a soar desrespeitoso. A proposta tinha vindo de cima, seja lá isso o que for. Comunicados com um selo muito oficial eram lidos por toda a cidade por homenzinhos pequenos em trajes ridículos de queixo no ar num tom de voz que indica “eu não sou importante, mas garanto-vos que o que tenho para dizer é”.

  • Por ordem do Duque Aguistão Salvour, atual regente da cidade de Solião, infomam-se que é direito de todo e qualquer cidadão constituir a sua própria equipe de regentes que serão incumbidos de gerir a cidade durante um período de quatro anos a contar a de hoje a setenta e dois dias. Os candidatos deverão dirigir-se ao palácio acompanhados das suas certidões de nascimento e um resumo das suas ideologias a implementar. As equipes deverão ser compostas por um máximo de oito membros e um mínimo de três. Os membros da equipa deverão estar de acordo quanto a qual será nomeado regente, caso a sua equipe vença.

Solião não tem mais que doze mil habitantes, sendo que apenas nove eram de facto naturais da cidade. Talvez seis possuíssem de facto os documentos que comprovavam o facto. O cerco apertava.

  • Não serão permitidos candidatos que:

a)...

  • a) ? - Questionou um astuto vendedor de fruta na primeira linha da praça da cidade. - Não há nem duas linhas atrás, você leu que “é direito de todo e qualquer cidadão”. Como assim a)?
  • Existem contingências. - Explicou o pavão humano que segurava a carta.
  • Fiquei com a ideia de que a contingência era ser cidadão. - Ofereceu o dono da banca de peixe sem qualquer maldade, a multidão que se formara era boa para o negócio.
  • Existem outras contingências.
  • Então, não é “todo e qualquer cidadão”. - Respondeu novamente o vendedor de fruta. Um murmúrio levantava-se entre a multidão.
  • São bastante razoáveis! - Ripostou o mensageiro.
  • Aposto que são, ora diga lá então.
  •  
    • a) Os candidatos deverão estar inocentes de qualquer crime!

Os possíveis candidatos acabavam de ser cortados pela metade. Três mil, neste momento. A multidão lançava comentários de desagrado aqui e ali.

  • Pegar fogo a uma estalagem conta? - Perguntou uma senhora gorducha esperançosa.
  • Pois claro que conta! - Ripostou o mensageiro indignado.
  • E assaltar o banco? - Ouviu-se uma outra voz.
  • Conta, claro que conta!
  • Agredir um agente da autoridade?
  • Conta!
  • Disfarçar-se de Padre e dar uma missa de vez em quando?
  • Ah? Eu… C-conta, claro que conta.
  • Espere aí, espere aí. - Acalmou outra voz. - Foi apanhado?
  • Não. - Confessou a voz que lançara a questão. - Até correu bastante bem, estou a pensar fazer o mesmo para a semana.
  • Então não conta! - Declarou outra voz na multidão.
  • Como assim, não conta? - Questionou o mensageiro pavão já irritado.
  • Só conta se formos apanhados! Ou não? - Quis saber a multidão. Houve uma pausa.
  • Quer dizer. - Começou o mensageiro atrapalhado. - Na prática, sim, tem de haver um registo associado ao crime ou não há maneira de comprovar, mas…

Ruídos de alívio faziam-se ouvir por todos os lados da praça

  • Mas! - Fez-se ouvir o mensageiro. - Deveria ditar a consciência de cada um de voz que, se cometeram um crime, não se devem candidatar!
  • Mete-te na tua vida! - Ripostou um cidadão indignado.
  • Isso parece-me muita opinião, já, lê mas é as letrinhas, ó colâns! - Sugeriu um segundo.
  • Eu cometo os crimes que eu quiser se não os poderem comprovar e ninguém tem nada a ver com isso! - Reivindicou um terceiro. O número de possíveis candidatos voltará a subir para quatro mil.
  • b) - Retomou o mensageiro convicto de que o maior castigo que podia dar a quem ouvia neste momento, era oferecer uma segunda contingência. - Os candidatos devem ter mais de vinte anos e estar em perfeitas condições mentais.
  • B e C, portanto. - Comentou alguém.
  • É apenas a b).
  • São duas contingências. - Concordou outro.
  • Estão relacionadas, têm a ver com maturidade.

Dois mil candidatos.

  • c)
  • Você vai acabar com o alfabeto, homem! - Reclamou o vendedor de peixe.
  • É apenas a terceira!
  • É a quarta! - Ajudou uma voz.
  • É a c), é a terceira, a), b) e c).
  • A primeira é ser nascido na cidade. - Rematou outra.
  • E por acaso queriam alguém de fora a mandar nas vossas vidas? - Indignou-se o mensageiro.
  • Certamente gostava de não ser proibido de querer. - respondeu um cidadão que estava a começar a desenvolver gosto por esta tal de liberdade.
  • c) - Insistiu o mensageiro. Para seu espanto a multidão silenciou-se. - O candidato deverá ser instruído nas letras.

Mil candidatos.

  • Ah, porra! - Desmotivou o vendedor de fruta que estava a começar a gostar da ideia.
  • Tem de ser. - Concordou alguém. - Tem que saber escrever as regras e tudo mais.
  • Dizes isso porque foste à escola! - Denunciou-o o do lado.
  • d)
  • d) ? A lata do índivíduo, d)?
  • É a última. - prometeu o mensageiro que já suava para cima do papel.
  • apresentar um documento com pelo menos uma centena de assinaturas de outros cidadãos onde declaram aprovar a candidatura dos mesmos. - Aguardou os comentários, os comentários não se fizeram ouvir. - Boa sorte aos candidatos e que vença o melhor.

A comitiva abandonou a praça tão rapidamente quanto conseguia, deixando a multidão num alvoroço onde predominava o esforço pela descrença no assunto mas onde era nítida a excitação da perspectiva.

Os dias que se seguiram cortariam os possíveis candidatos a um dígito. Bons homens e mulheres acusavam o próximo de crimes dos quais haviam prometido, com a determinação de cumpruir, não vocalizar nem na ponta de uma lâmina. A expressão “denúncia anônima” fora mais usada num mês do que havia sido num século. Depois havia o problema das cem assinaturas, aspirantes a governantes mentiam, enganavam e subornavam o próximo, na perspectiva de conseguir o seu apoio. Parecia haver um novo hobby para o povo tirar os pensamentos das suas miseráveis vidas de contar cobres para fazer chegar o pão para o mês inteiro. Enquanto o povo se desgalfenhava para conseguir uma oportunidade, pela cidade surgiam panfletos com a cara de um tal de Solimar Salvour. Um jovem de ar aristocrata.

  • Que porcaria vem a ser esta? - Comentava Arito, um ferreiro aspirante a candidato que encontrara um panfleto. - É o sobrinho do duque, raios me partam!
  • E então? - Indagou Mariette, dona do estabelecimento. - Eu ouvi um discurso do rapaz e ele diz que vai aumentar o volume de negócios de Solião como nunca antes se viu.
  • É o sobrinho do duque! Essa gente já governa a cidade!
  • O rapaz cumpre os requisitos!
  • Eles criaram os requisitos!
  • E o rapaz cumpre-os! Eu cá gosto dele, é nele que vou meter a cruzinha.
  • O quê! Está a brincar dona Mariette! - Nós agora temos a oportunidade de decidir!
  • Pois é, e eu já decidi que vou votar nele. Já viu os que andam por aí? Um, quer meter peixes no poço da praça para ir à pesca sem ter de ir à costa. Outro, quer acabar com a arena porque tem pena dos bichos. Ontem apareceu aí um que queria meter toda a gente num barco e invadir o continente. É tudo maluco!
  • E eu, dona Mariette?
  • Tu és um sonhador, homem. Então tu achas que agora os miúdos vão todos para a escola e que os velhos vão ser pagos como se tivessem a trabalhar? São ideia bonitas. Mas é só isso rapaz, lamento muito.

A conversa, embora tivesse criado um sentimento pesado na alma de Arito, eram também combustível para melhor explicar os seus planos aos eleitores. Começou por se apresentar em estabelecimentos cheios de gente e explicar as suas ideias, o que causou na multidão uma grande vontade de discordar do homem. Mas isso dava a Arito a oportunidade de aprofundar as ideias e embora os que falassem quisessem apenas discutir, eram os que estavam calados que começavam a sentir que talvez fosse possível criar uma sociedade mais justa e melhorar as suas vidas.

Dia após dias o nome de Arito era mais pronunciado nas ruas, em tabernas, mercados, nas docas, por todo o lado alguém estava ou a favor ou contra Arito. Era no entanto a cara do jovem Soulvour que pintava a cidade. De tal forma que quem vinha de fora achava que as eleições já tinham passado e que o vencedor era óbvio. Isto tinha um forte poder na mente do povo, que apesar de não saber bem de como é que Salvour planeava aplicar as suas promessas, não duvidava que o fizesse.

- Opah, então o homem tem uma estátua no meio da praça! - Ouvia-se - Achas que não vai cumprir o que prometeu?

O dia das eleições chegara por fim. Apenas quatro candidatos haviam chegado a este ponto, Arito, Salvour, Afonso Pescador, cujos projectos apresentados estavam em tudo relacionados com a atividade da pesca, que era em Solião uma indústria extremamente popular, e um York Shire Terrier dos seus impressionáveis vinte e um anos que por uma lacuna nos termos impostos, cumpria todos os requisitos para se candidatar.

Três discursos e um latido foram ouvidos antes do povo ter oportunidade de um a um se aproximar da caixa preta com uma ranhura onde recebia um papel e uma pena com tinta e colocava uma cruz no desenho correspondente ao candidato que apoiava. Fora decidido desta forma porque apesar de não se poderem candidatar, era considerado que a opinião dos iletrados era tão importante como a dos restantes.

A contagem de votos foi feita na praça sem nunca saírem debaixo do nariz do povo. Os nomes Arito e Salvour saiam um atrás do outro, tornando impossível para alguém que não tivesse a anotar, saber qual era referido mais vezes. Ouvia-se um ocasional “Senhor Pantufa Branca” que era recebido pelo público com uma gargalhada. Por último, Afonso Pescador que era apoiado pela comitiva de pesca, raramente era referido.

A caixa estava vazia, dando lugar à contagem. Não se ouvia um som. A antecipação era palpável

  • Anuncia-se que o próximo regente de Solião, por escolha das pessoas de Solião, será Arito Freuso! - Anunciou o mensageiro que lembrava um pavão.

Os urros da população ecoavam pela praça! Mesmo os que tinham votado em Salvour sentiam que parte de si queria viver numa realidade em que era possível o Arito dos Ferros ser o regente de Solião. Arito segurava as lágrimas de felicidade e compunha-se preparando-se para discursar. - É para mim, uma honra… - O inconfundível som de pólvora a rebentar cortou o momento com uma rispidez que causou o pânico. Sobre o pódio, pendia o corpo sem vida de Arito que ainda segurava o discurso de vitória que tinha preparado na esperança de o vir a ler.

O assassino nunca foi descoberto, e uma conspiração política nunca foi comprovada, embora se sentisse no ar. Durante os quatro anos que se seguirm, a família Salvour governou Solião, como o fizera ao longo de duzentos anos, mas desta vez, tecnicamente, escolhidos pelo povo.

Armando Alves

 

 

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