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QVO VADIS IVSTITIAE
A PODRIDÃO DA III REPÚBLICA

06-03-2020 - Francisco Garcia dos Santos

Depois da promiscuidade entre política e negócios e da corrupção de titulares dos mais altos cargos públicos (leia-se do Governo) ter começado há alguns anos a ser notícia, algo de que, antes de o ser, a esmagadora maioria dos cidadãos comuns já suspeitava, chegou a vez de igualmente serem desvendados tais estigmas no seio do poder judicial. Eo mais grave é o facto de atingirem as instâncias superiores daquele, realidade essa que a generalidade dos portugueses não fazia a mínima ideia existir, mas da qual, quem fez e faz a sua “vida” nos tribunais, há muito suspeitava, sendo que uma boa parte até tinha a certeza. Aliás, essas suspeitas e certezas eram objecto de comentários à “boca pequena” nos “corredores” dos tribunais e abertamente no recato dos escritórios de advogados e solicitadores, sei do que falo por experiência própria!

Poderá o cidadão comum legitimamente perguntar por que motivo quem teve tais suspeitas e certezas não as denunciou às entidades competentes.

A resposta é simples! Figurativa e ironicamente direi: já alguém viu uma vítima de roubo ir queixar-se do ladrão a outro?

A verdade é que em corporações cujos membros são investigados e julgados pelos seus próprios pares, a natural e compreensível tendência é a de se cair na tentação de “abafar” os casos, ainda que os infractores sejam punidos, com vista a preservar a boa reputação das mesmas e a das restantes pessoas que as integram-tudo numa espécie de prática do ditado popular: “a roupa suja lava-se em casa”. E a judicatura (os juízes) é uma delas! Portanto, estamos perante o velho e insolúvel dilema sobre “quem é o polícia do polícia”.

A título de exemplo sobre suspeições, que não certezas, pergunto se alguém se recorda das famosas escutas telefónicas de conversas entre Armando Vara e José Sócrates (então Primeiro Ministro e, ao que consta, comprometedoras para este) no âmbito do processo do “sucateiro” de Ovar,o qual, em 1ª instância, correu termos no Tribunal Judicial de Aveiro, e de queresultou, após esgotamento de recursos para tribunais superiores, na condenação de Vara a uma pena de prisão efectiva de cerca de 5 anos. Ao tempo quem eram o Procurador Geral da República (PGR) e o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), lembram-se? Sim, eram respectivamente os juízes conselheiros do STJ Fernando Pinto Monteiro, amigo de José Sócrates, e Luís Noronha do Nascimento, os quais “subiram” ao Supremo 1998 e aí foram colegas durante 8 anos, senão até amigos.Ambos ouviram as escutas, proibiram o seu uso no processo (não obstante pelo menos um dos arguidos requerido a audição das mesmas para sua defesa) e respectiva divulgação pública. Lembram-se do que sucedeu às escutas? Sim, Noronha do Nascimento ordenou pura e simples a destruição, o que efectivamente sucedeu (e ao que consta nem uma cópia ficou para arquivo histórico, com vista a mais tarde poder ser consultada por historiadores).

Para ser justo e tanto quanto possível objectivo, devo referir que desde há muito o Conselho Superior da Magistratura (CSM) presidio pelo Presidente do STJ, órgão de “cúpula”, administrativo e disciplinar dos juízes, quando existem casos “gritantes” de infracções graves por parte dos mesmos, torna pública a identidade e punição aplicada ao infractor, mas normalmente apenas quando são aplicadas as sanções mais gravosas, como a suspensão, aposentação compulsiva e a expulsão (vide os casos recentes dos juízes desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa Fátima Galante e Rui Rangel). Só que na maioria dos casos, ou os cidadãos ficam sem conhecer as punições, ou então, quando os mesmos têm alguma repercussão pública, as identidades dos infractores e penalizações são divulgadas, ainda que as últimas, invariavelmente sejam irrisórias, limitando-se muitas delas a repreensões por escrito ou a condenações em multas que, por norma, nem sequer chegam ao valor de um ordenado base mensal dos infractores, quando não ridiculamente inferiores a um salário mínimo nacional. Depois, para reforçar o que acima referi sobre o “abafamento” dos casos, desconheço que alguma vez tenham sido publicadas em editais afixados de forma bem visívele de acesso público nas várias secretarias de todos os tribunais do País a identificação dos juízes infractores e respectivas penas, assim como de procuradores do Ministério Público (MP) que, à semelhança daqueles, também são investigados e punidos pelos seus pares, ou seja, pelo respectivo Conselho Superior do Ministério Público (CSMP), presidido pelo Procurador-geral da República. Tudo isto contrariamente ao que sucede com advogados e solicitadores, os quais, também em termos disciplinares, são investigados e punidos pelos órgãos competentes das respectivas Ordens (quanto aos advogados,em 1ª instância pelos Conselhos de Deontologia Regionais, excepto alguns casos especiais cuja competência é atribuída em 1ª e única instância ao Conselho Superior, que na generalidade é instância de recurso, mas cujas deliberações ainda são recorríveis para os tribunais administrativos).Efectivamente, quando as penas disciplinares aplicadas são as mais gravosas: suspensão e expulsão, por vezes acrescida da sansão acessória de terem de indemnizar clientes e patrocinados pelos danos decorrentes da sua atuação, respondendo com o seu património pessoal (o que, no caso dos advogados, até nem é raro-talvez o Estatuto da respectiva Ordem, que é uma Lei da Assembleia da República, seja mais severo nas sanções do que os Estatutos dos juízes e dos procuradores do Ministério Público -não sei-, ou então os seus órgãos disciplinares menos tolerantes, mais rígidose rigoroso na sua aplicação do que o CSM e o CSMP no que concerne aos magistrados que tutelam), o que não sucede com os magistrados, pois no caso de isso suceder, quem tem oencargo da indemnização é o Estado, ou seja, o contribuinte, a identidade do infractor e a pena aplicada são vertidas em editais afixados em local bem visível e de acesso público em todas as secretarias de todos os tribunais do País e até em alguns serviços públicos.

Mas voltemos ao princípio.

A corrupção e negociatas nos tribunais começou bem antes desta III República, iniciada a 25 de Abril de 1974, e já existia ao tempo do salazarismo-marcellismo nas secretarias dos de 1ª instância, com o famoso “cambão” (angariação de clientes para advogados), colocação de processos “debaixo da secretária” para serem “esquecidos” e prescreverem, adulteração e subtração de peças processuais, pura e simples destruição dos mesmos, atraso propositado de diligências, viciação de licitações e arrematações de bens penhorados vendidos em hasta pública no âmbito de processos executivos, em que os proponentes compradores,“cartelizados”,eram sempre os mesmos e “rodavam” entre si quem em cada caso fazia a proposta mais alta e adquiria os mesmos por baixíssimo preço em conluio com oficiais de justiça, etc. -tudo, claro está, mediante pagamento aos escrivães por parte dos beneficiários directos ou indirectos de tais práticas; bem assim como nas antigas Câmaras de Falências, nas quais os processos “gordos” eram atribuídos a liquidatários e leiloeiros escolhidos “a dedo”, obviamente a troco de pagamento “por baixo da mesa” (parte à “cabeça” e o restante a final) duma choruda percentagem do valor das vendas de património das massas falidas a quem por Lei as administrava e dirigia, sendo que ao tempo a suposta fiscalização da legalidade processual das falências competia aos magistrados do MP, denominados de síndicos.

Com o que acima ficou escrito não quero significar que tais práticas eram absolutamente generalizadas e lançar um labéu sobre todos os funcionários judiciais, dirigentes das Câmaras de Falências e outros intervenientes processuais, mas que havia muitos que as tinham, mas mesmo muitos, havia! E tudo sem necessidade de grande discrição, pois ninguém, incluindo juízes e magistrados do Ministério Público, se importava com isso, até porque tal ou não os afectava, ou então porque delas beneficiavam, sendo que muita gente e de várias profissões lucrava, e muito, com o “negócio”. Já quanto a delegados do procurador da República (antiga denominação dos atuais procuradores do Ministério Público) e/ou juízes, lá havia um ou outro caso de corrupção ou de favorecimento de pessoas (seus familiares e amigos) económica e politicamente com grandes conhecimentos e influências junto das mais altas instânciasdo poder político e das tutelas do sistema judiciário, a troco de os beneficiados“arranjarem” um emprego público ou numa boa empresa privada para familiares,ou pudessem“meter uma boa cunha” para promoções naspróprias carreiras,“safarem” filhos e amigos da Tropa (sobretudo ao tempo das Campanhas de África/Guerra Colonial) ou para atendimento de meras pretensões individuais de promoção nas respectivas carreiras, de mudança dum tribunal para outro mais bem localizado geograficamente ou do seu interesse pessoal.Mas tais casos, aparentementenão eramnumerosos,e os mais ostensivos, ainda que os infractores fossem penalizados, quem de direito tratava de os “abafar bem abafados”, tudo a bem do respeito pela autoridade e bom nome das Instituições.

Portanto, não é de agora,nem tampouco novidade para muita gente, a existênciade negociatas e corrupção no sistema judicial. Só que desde o caso do procurador Orlando Figueira,envolvido com altas figuras do Estado angolano e da elite socioeconómica de Angola, até mais recentemente aos dos juízes desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) Rui Rangel e Fátima Galante, que por sua vez arrastou o ex-Presidente daquele Tribunal e o seu amigo e sucessor, respectivamente juízes desembargadores Luís Vaz das Neves (já constituído arguido no âmbito do “processo Lex”, juntando-se àqueles colegas) e Orlando Nascimento, que renunciou ao cargo na passada 2ª feira,terem chegado à ribalta da comunicação social, abrindo telejornais e merecendoparangonas na imprensa, é que os Portugueses se aperceberam de que não o “rei”, mas a “rainha”Justiça “vai nua”.

A mero título de exemplos temos as alegadas trocas de favores entre Vaz das Neves e Orlando Nascimento para,eventualmente, e se assim tiver sido, a troco de quê (ainda) não se sabe, protegerem Rui Rangel; a promiscuidade entre negócios ilegais dum juiz jubilado, ou seja, reformado, como Vaz das Neves, e outros no activo, como Orlando Nascimento (repito, Presidente do TRL até 2ª feira passada), que alegadamente nomeou o primeiro para presidir a um tribunal arbitral privado e tendo para o efeito cedido o salão nobre e sala de audiências do alto Tribunal a que Presidia, ignora-se se a título gratuito ou oneroso (vulgo pago). Tenha ou não a cedência do dito salão sido a que título fosse, podendo até ser legal por omissão da Lei, a verdade é que a mesma revela da parte de Orlando Nascimento, no mínimo, falta de bom senso ou de parco sentido ético. Por outro lado, o facto de o sorteio e distribuição de processos nos tribunais com mais do que um juiz não ter sido até há poucos anos obrigatoriamente efectuada de forma electrónica e aleatória, mas manualmente, e no caso dos tribunais superiores, ao que consta, podendo até ser efectuada pelo próprio presidente segundo o seu livre arbítrio, dá para pensar tudo e mais alguma coisa. Tal, alegadamente, terá sido o caso de Vaz das Neves, que, quando desempenhava o cargo de Presidente do TRL, atribuiu o processo que opôs Rui Rangel à Cofina/Correio da Manhã ao até 2ª feira passada Presidente Orlando Nascimento que, curiosa e coincidentemente julgou o mesmo a favor do seu colega Rangel, mas que em sede de recurso interposto para o STJpela parte vencida, viu o respectivo acórdão revogado e ser dada razão à recorrente (Rangel perdeu o processo no STJ tal como tinha perdido no tribunal de 1ª instância). Mas o mais grave é, ao que a comunicação social revelou, não obstante desde 2014ser obrigatório por Lei o sorteio edistribuição de processos a juízes de forma electrónica e aleatória, o respectivo programa informático ter uma “ferramenta” que permite a viciação dos mesmos, o que, a ser verdade, permite a alguém, directamente ou por interposta pessoa, fazer com que um determinado processo seja distribuído/atribuído a um determinado juiz pré escolhido, o que logo põe em causa não só fiabilidade do “sistema”, como a credibilidade, idoneidade, imparcialidade e isenção do juiz que fica com o processo, as quais são inerentes e imprescindíveis à boa administração da Justiça, principalmente num Estado de direito e democrático.

Sendo ou não os factos supra referidos um rol de “boas intenções”, coincidências e “ingenuidades”, o certo é que o atual Presidente do STJ e por inerência do CSM, juiz conselheiro António Joaquim Piçarra, logo que tomou conhecimento dos mesmos, ordenou imediatamente uma auditoria ao TRL, abriu inquéritos disciplinares àqueles juízes e a um outro da respectiva Secção Criminal, juiz desembargador Rui Gonçalves, os quais oPlenário do dito Conselho, por unanimidade, aprovou.

Mas ainda antes de se saber da auditoria e da instauração de tais auditoria e inquéritos disciplinares pelo CSM, face à extrema gravidade da situação, a Ministra da Justiça Francisca Van Dunem, também ela magistrada no STJ (não estou certo se como procuradora geral adjunta ou se como juiz conselheira), referindo-se à mesma, afirmou publicamente, e passo a citar, que são “ventos de tormenta que sopram sobre a Justiça”.

Para ser justo e, como diz o povo, “o seu a seu dono”, não posso deixar de aplaudir e enaltecer a celeridade com que agiu, bem como a postura firme e transparente assumida pelo juiz conselheiro António Joaquim Piçarra, não só enquanto Presidente do CSM, mas também do STJ. Efectivamente foi célere a ordenar a auditoria ao TRL pelo CSM e convocar o respectivo Plenário para deliberar sobre a instauração dos referidos processos disciplinares; determinar auditorias por aquele Conselho a todos os tribunais com vista a indagar se existem casossemelhantes aodo TRL quanto a eventuais viciações do sistema electrónico e aleatório de sorteio e distribuição de processos, bem como, caso existam, o resultado das decisões que recaíram sobre os mesmos; e ainda, o que é de todo louvável, pela transparência absoluta que tal implica, que os sorteios e distribuições de processos no STJ sejam efectuados, desde 3ª feira passada e para futuro, em reuniões plenárias, isto é, nas quais participam todos os juízes conselheiros, podendo não só as partese seus advogados assistirem às mesmas, mas também jornalistas e cidadãos comuns; por fim, a título pessoal, mas em virtude de ter Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, declarou ter recebido apenas uma solicitação de uso das respectivas instalações para fins que considerou não adequados ou compatíveis com aquele para que elas existem, e recusou; bemcomo que enquanto Presidente do STJ nunca lhe foi pedida qualquer utilização das instalações desse Tribunal para qualquer fim estranho à sua normal actividade e funcionamento, bem como avisou que se tal lhe for solicitado recusará.

Face ao que acabei de referir, até porque ouvi e vi em directo na tv a comunicação e conferência de imprensa do Senhor Presidente do STJ, mas na qualidade de Presidente do CSM, na qual, aliás, participaram todos os membrosdo mesmos (que não são só juízes), direi que “temos Homem”!

Não obstante a louvável e notável atitude do juiz conselheiro António Joaquim Piçarra como Presidente do CSM e do STJ, o qual, aliás, afirmou perentoriamente que as “investigações só agora começaram” (palavras minhasque resumem o que anunciou sobre as que estão em curso e as que se sucederão), a verdade é que muito provavelmente vão sair mais “coelhos da toca”, porquanto, há cerca de duas semanas, Vaz das Neves alegou em sua defesa, e perante as tvs, que desde há muito é habitual e prática comum muitosjuízes de carreira no activo e/ou jubilados serem julgadores remunerados em tribunais arbitrais privados, exercendo assim uma actividade profissional paralela à de juízes de carreira em tribunais comuns, o que é ilegal (a Lei permite que juízes de carreiraparticipem em tribunais arbitrais, mas não remunerados, tal como podem ser professores em estabelecimentos de ensino superior, conferencistas, etc., mas sempre pro bono, isto é, a título gratuito).

No que concerne à atual classe política, a grande maioria dos Portugueses já não confia, o que ficou bem patente pelos níveis de abstenção, votos brancos e nulos nas últimas eleições para a Assembleia da República, os quais todos somados atingiram cerca de 70% dos eleitores, e dos restantes 30% ainda muitos votaram em pequenos partidos ou forças políticas marginais, mas que alguns conseguiram eleger um ou mais deputados -casos do Chega, Iniciativa Liberal, Livre e PAN-, certamente mais como voto de protesto do que ideologicamente ou como alternativa de poder aos partidos tradicionais da, o que não só muito fragiliza a legitimidade popular de dois órgãos de soberania, como o são o Parlamento e o Governo dele emanado , como constituiu um enorme descrédito para o modelo de sistema de democracia representativa vigente, consagrado na Constituição da República Portuguesa de 1976 e método de eleiçãoprevisto na Lei Eleitoral.

Ora, se ao descrédito e desprezo votado pelos Portugueses ao atual modelo político e seus protagonistas,se juntar o sistema de justiça e seus actores, então é o próprio Estado de direito e a democracia representativa que se estão a desmoronar, uma vez que a Justiça, para além de ser um dos pilares fundamentais do mesmo, constitui o seu último reduto.

Por tudo isto, a cada dia que passa, agora com este enorme escândalo judicial -sendo que “a procissão ainda vai no adro”-, mais me convenço de que esta III República é incapaz de se regenerar e está a cair de podre -só que nunca mais cai!

Francisco Garcia dos Santos

 

 

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