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CATEDRAIS E KATEDRAIS

02-08-2019 - Jorge Duarte

Diz-se que a pior época da humanidade foi a Idade Média, a das trevas; aqueles mil anos de escuridão que só os posteriores humanistas da razão e da iluminação lhe puseram fim. Mas não deixou o homem, nesse tempo de escuridão, de procurar a luz, subir mais alto, abrir mais frestas, criar transparência nas mais belas e assombrosas obras de arte: as Catedrais. O que procuravam era a superação material e temporal, a comunicação sensível, a transcendência, num mundo áspero, perigoso e desconhecido. Conseguiram-no em técnica e arte; quem sabe, em espírito.

Os obreiros pós-modernos, da ”luz”, perjurarão sempre esse período como escuridão e erguerão sobre os seus escombros as novas artes e louvores a um mundo livre, hedonista e incoerente, apenas se apropriando do esplendor desses símbolos, transfigurando-os em Katedrais.

A Katedral de hoje mais não é do que um grande shopping, fornecedor de desejos imediatos e possíveis, a via única ditante e determinante da existência humana e urbana, dependentes, representantes de uma economia infinitamente crescente de produção e consumo onde 30 a 50% acaba no lixo. E, tal como nas verdadeiras, as novas katedrais/ shoppings, são os símbolos das cidades, o modo de exercício do poder, o determinismo das novas classes (incluídas e excluídas), das novas elites, dos novos valores. A cidade vencedora é a que maior ou mais quantidade desses símbolos possuir.

O dia da consagração da fé é, por excelência, o domingo; e o local próprio a Catedral. Por conseguinte, esta permanecerá aberta todo o “santo” dia. Caberá na cabeça de alguém encerrá-la? Coube ao Bispo do Porto, no passado domingo de Páscoa, apelar ao fecho, não das verdadeiras mas das novas katedrais. E todo um coro, declarando heresia.

Logo veio a terreiro o Abade protestante, perdão, o Presidente da Associação Portuguesa dos Centros Comerciais defender que o encerramento ao domingo seria impossível pois levaria à perda de 20 % dos empregos. E porque, o domingo é o terceiro melhor dia de vendas e os fiéis, digo, os consumidores, também não o querem. Acrescentou ainda que o assunto não está na ordem do dia nem para este nem para o governo futuro - qual profeta inspirado. O Primeiro-Ministro, António Costa atira, sem coragem, a responsabilidade para os municípios, de acordo com regulamentação que já vem de Guterres (abertura só de manhã) e Sócrates (todo o dia). A coragem que não lhe falta na impiedosa carga fiscal.

Não obstante, foi posta a circular uma petição pública nacional que já recolheu mais de oitenta mil assinaturas para que o assunto seja debatido na Assembleia da República. Todos sabemos as condições a que os trabalhadores nestes locais estão sujeitos: horário alargado das 9 às 23 horas, ordenados baixos, precariedade, turnos rotativos, limitações nas suas necessidades básicas (fisiológicas, repouso, lazer, família). É todo um modo de vida forçado para baixo e explorado. Outro tanto para fornecedores e prestadores de serviços, esmagados com contratos e condições leoninas. Boa parte da mão-de-obra é feminina. Que condições têm estas mulheres para cuidar e acompanhar os filhos? Ou, sequer, tê-los se o desejarem? Não se ouve um ai ou manifesto público em sua defesa. Mas ele é surdo e conhecido e só por medo e hipocrisia se esconde aquilo que todos sabemos ser - e concordamos com o Bispo do Porto “ - o novo esclavagismo”.

Será mais vital para o cidadão comum um supermercado aberto ao domingo ou uma farmácia? Será a farmácia, decerto. Mas não está esta encerrada ao domingo, com apenas uma de serviço?

O que está verdadeiramente em causa é o arrebanhamento de todos os modos de vida, de todas as redes de trocas por uma única entidade. O fim da ancestral vocação tão portuguesa para o comércio.

A UE já havia destinado para este desgraçado país apenas serviços e ócio; desbaratou-se tudo; indústria, agricultura e pescas. A nova entrada em cena da rede espanhola Mercadão anuncia uma revolução ainda maior com a intenção de construir mais 150-200 supermercados, somados aos milhares já existentes, sem qualquer voz divergente. Um país que nem para comer tem. Um país que perdeu o controlo da alimentação, da energia e das comunicações. Dependente, endividado e desenraizado da cultura e das tradições. Um país que não se estima - e o que não se estima não se defende.

Aqui, somam-se a extinção das inúmeras redes de comércio, trocas e intercâmbios que asseguravam a produção e o sustento das populações locais, em processos sustentáveis, económicos e ambientais. E ainda os milhares de pequenas lojas nos centros das cidades que hoje se encontram desertas e cujas rendas somadas excediam o valor dos postos de trabalho perdidos. Rendimento este que entraria na economia local, em reinvestimento, emprego e vitalidade das cidades e das famílias.

O shopping funciona em circuito fechado. Rendas, produtos importados e lucros seguem directamente para os centros financeiros internacionais. Os trabalhadores recebem e gastam no local. É também aí que fazem a vida, encontram os familiares e amigos. Para todos é o ponto de encontro, o templo do sacrifício e da expiação, do consumo, da moda, dos artifícios de auto-ajuda, de auto-estima, de auto-confiança, numa sociedade de individualistas e soberbos. Que precede o declínio.

O apregoado é que se trata de milhares de postos de trabalho, mas o rácio que nos é sonegado é que para cada um que se cria, destroem-se quatro (Antonieta Guerreiro, ex-deputada na AR). A ocultação dos números beneficia os falsos discursos políticos, as falsas vantagens e os privilégios dos conglomerados politico-empresariais. Do mesmo modo que esses investidores efectuam previamente estudos de mercado para assegurar a rendibilidade, os autarcas, por maioria de razão, deveriam fazê-lo mas ao contrário: quantas grandes superfícies o concelho comporta sem pôr em causa a sobrevivência dos seus munícipes e as actividades locais. Mas deixam-se comprar com falsa desculpa da livre-concorrência e impedimento dos PDM’s. Ora, os PDM’s são instrumentos do próprio município; limita-se o que se quer e expande-se o que se quer, por gosto ou influência. Na cidade onde vivo, Portimão, existem quase vinte dessas grandes superfícies, o que permite servir uma população de mais de 200 mil habitantes quando a actual é de apenas 50 mil. É a mesma coisa que convidar 15 pessoas para um jantar e fazer comida para quatro; alguém não come. E a cidade desertificou-se e a população emigrou. Já não é a polis com o conjunto das profissões, dos encontros, das discussões. Apenas o império dos tristes, dos excluídos dos individualistas, dos não-pensantes, dos sossegados consumistas. E em Outubro, a fila para no Centro de Emprego agiganta-se.

Num momento em que todos os sinos tocam a rebate para a urgência da sustentabilidade, da economia, da preservação de recursos, é aqui que o cidadão preocupado pode contribuir para a mudança. E a mudança começa na alteração do estilo de vida. Sem opção.

Jorge Duarte

 

 

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