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Higino e Rabelais: Crime e Castigo

22-02-2019 - Rui Verde

O director do Gabinete de Comunicação e Imprensa da Procuradoria-Geral da República (PGR), Álvaro da Silva João, emitiu dois comunicados acerca dos processos-crime que envolvem o general e antigo ministro Higino Carneiro e o pretérito ministro e homem-forte da Comunicação Social Manuel Rabelais.

Uma palavra inicial de apreço para estes comunicados, que são equilibrados, claros, sumários e informativos. Informam a comunidade acerca do necessário, sem entrarem em ataques excessivos (à americana), nem serem demasiado opacos (à portuguesa).

Através destes comunicados, ficámos a saber que corre contra Higino Carneiro um processo-crime com o n.º 24/2018, em que este é arguido. Logo se percebe que é um inquérito iniciado em 2018. Os factos sob nvestigação dirão respeito a actos de gestão danosa de bens públicos enquanto Carneiro foi governador de Luanda.

Quanto a Manuel Rabelais, o processo tem o n.º 68/2018, querendo isto significar que se trata de assunto diferente daquele que envolve Higino, mas que também começou a ser investigado em 2018. Segundo a PGR, Rabelais terá praticado actos de gestão danosa de bens públicos enquanto foi director do Gabinete de Revitalização da Comunicação Institucional e Marketing (GRECIMA).

Os crimes

Embora por factos diferentes, ambos são suspeitos de terem cometido os mesmos seis crimes:

1. Peculato, previsto e punível pelo artigo 313.º do Código Penal;

2. Violação de normas de execução do plano e orçamento, previsto e punível pelo artigo 36.º da Lei da Probidade Pública;

3. Abuso de poder, previsto e punível pelo artigo 39.º da Lei da Probidade Pública;

4. Associação criminosa, previsto e punido pelo artigo 8.º da Lei sobre a Criminalização das Infracções Subjacentes ao Branqueamento de Capitais;

5. Corrupção passiva, previsto e punido pelo artigo 37.º da Lei sobre a Criminalização das Infracções Subjacentes ao Branqueamento de Capitais;

6. Branqueamento de capitais, previsto e punido pelo artigo 60.º da Lei do Combate ao Branqueamento de Capitais e Financiamento do Terrorismo.

Duas notas iniciais sobre estas imputações. Vê-se perfeitamente que o Código Penal antigo já não tinha abrangência suficiente para combater a criminalidade económico-financeira. Felizmente, surgiram, desde 2010, variadas leis, como as referidas acima, que colmataram essa lacuna. É verdade que, durante vários anos, essas leis não foram aplicadas, mas agora existem e são susceptíveis de constituir uma ameaça mais forte aos prevaricadores do que o próprio Código Penal. A segunda nota é sobre a pena em que incorrem os arguidos, caso se provem os factos. Devido às medidas elevadas das molduras penais, é muito provável que qualquer condenação seja superior a 20 anos de prisão.

Debrucemo-nos um pouco sobre cada um dos tipos legais incriminatórios.

O peculato é um crime tradicional, em que incorrem os agentes públicos quando têm ao seu dispor dinheiro ou bens do Estado (ou de outra entidade pública ou privada). Pratica-se o crime de peculato quando o agente público desvia, subtrai ou retém de forma ilegítima esse dinheiro ou bem. Em termos simples, o peculato existe, portanto, quando uma pessoa investida de funções públicas se apropria, em virtude dessas suas funções, de dinheiro que de alguma maneira lhe estava acessível, mas que não lhe pertence.

Já na violação de normas de execução do plano e orçamento, o que está em causa é  o respeito pelas leis orçamentais, que se traduz na transparência e legalidade das despesas públicas, assegurando-se que o titular do cargo político que tem competência para gerir um orçamento e administrar dinheiro público actua com fidelidade, rigor e transparência, zelando pelos interesses públicos patrimoniais, salvaguardando o erário público. É isto que determina a jurisprudência (cfr. por exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20/06/2018).

No crime de abuso de poder, pune-se a utilização do cargo público para obter uma vontade privada. Mais uma vez, temos a qualidade de ser agente público como determinante para o cometimento deste crime. O abuso de poder ocorre quando a pessoa utiliza os seus poderes para fins diferentes daqueles a que estavam destinados.

O crime de associação criminosa é, na linguagem comum, o crime da máfia. Uma associação criminosa é uma espécie de constituição de grupo com intenções criminosas, neste caso, com a intenção de “roubar” o Estado. No fundo, é o crime dos crimes. Alguém forma uma quadrilha com o objectivo de se apropriar de dinheiro do tesouro público.

Naquilo que concerne ao crime de corrupção passiva, o que está em causa é receber dinheiro ou qualquer vantagem indevida para proceder a determinada decisão.

Finalmente, o crime de branqueamento refere-se à colocação, no sistema económico e financeiro legal, dos proventos obtidos criminalmente. Por exemplo, um ministro desvia dez milhões de dólares do orçamento do seu ministério para o seu bolso. O branqueamento dá-se quando ele vai depositar esse dinheiro na conta bancária da prima e passa então a poder usá-lo, ou quando o guarda em notas e vai comprar um Ferrari com uma mala cheia de dinheiro, como se conta que alguns filhos de ministros angolanos fizeram em Portugal.

Resumindo, o Ministério Público (MP) angolano está a investigar suspeitas de que Higino Carneiro e Manuel Rabelais organizaram máfias, nos respectivos órgãos públicos a que presidiram (Governo Provincial de Angola e GRECIMA), para desviar dinheiro para os seus bolsos. Esse dinheiro desviado depois entrou por outras vias – empresas particulares, contratos privados – na economia legal. Aparece como deles ou de familiares, mas não é. É “roubado” ao Estado.

Higino Carneiro

Medidas de coação

Devido a estas suspeitas, que o MP considerou graves, foram-lhes aplicadas três medidas de coacção, tal como previsto no artigo 16.º na Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal:

1. Termo de identidade e residência;

2. Obrigação de apresentação periódica às autoridades;

3. Interdição de saída do país.

A primeira medida, termo de identidade e residência (TIR), descrita no artigo 25.º da Lei é a medida básica e geralmente aplicada a todos os arguidos, e quer dizer que o arguido tem de fazer prova da sua identidade, por meio da apresentação do bilhete de identidade ou outra forma, e declarar uma morada onde possa ser notificado. Se, porventura, o arguido se quiser ausentar por mais de cinco dias, deve comunicar para onde vai. Muitas vezes, interpreta-se esta obrigação como sendo necessário que o MP autorize o arguido a ausentar-se mais de cinco dias. Não é assim. O arguido tem liberdade de se ausentar, apenas é obrigado a informar onde pode ser encontrado.

A obrigação periódica de apresentação às autoridades está prevista no artigo 26.º da Lei das Medidas Cautelares e impõe que o arguido tenha de se apresentar numa esquadra de polícia, ou noutra estrutura semelhante, em determinados dias e horas preestabelecidos. Por exemplo, apresentar-se todas as quintas-feiras às 10.00 horas no posto policial do Zango 1.

Finalmente, a interdição de saída do país (artigo 32.º da Lei das Medidas Cautelares) é já uma medida que fica no limiar da prisão (domiciliária e preventiva). Digamos que é a medida mais gravosa, com a excepção da própria detenção, e como o nome indica implica que o arguido não se pode ausentar do território nacional.

Sumariando, a Higino Carneiro e Manuel Rabelais foram aplicadas as medidas mais gravosas possíveis, com excepção da prisão. Como já vimos, a prisão, a não ser em caso de flagrante delito, não pode ser decretada sem autorização da Assembleia Nacional. É possível que o delito de branqueamento de capitais ainda estivesse a ser cometido, e aí poderia haver flagrante delito e justificar-se a prisão domiciliária ou preventiva. Todavia, não conhecemos os casos para retirar essa ilação ou outra diferente.

Conclusão

Fiódor Dostoiévski, famoso escritor russo, no seu livro  Crime e Castigo , coloca a personagem principal, Raskolnikov, a desenvolver uma teoria segundo a qual existem dois tipos de pessoas, as ordinárias e as extraordinárias. As primeiras, pela sua incapacidade, estariam condenadas a viver uma vida normal e obedecer às normas sociais vigentes na época, enquanto as pessoas extraordinárias, como Napoleão Bonaparte, conseguiriam superar as regras normais, transgredi-las e fazer avançar o mundo.

Alguns, ainda que poucos, mas com muito eco, têm defendido esta aproximação existencialista, sobretudo no caso de Higino Carneiro. Dizem-nos que Carneiro foi mais um arquitecto da paz, um militar competente, um diplomata exímio, um reconstrutor de estradas e cidades inigualável, e por isso não devia ser perseguido, mas antes adulado.

Na Antiguidade bárbara, este argumento poderia fazer sentido. O conquistador, o vencedor, podia apoderar-se dos despojos. Havia um direito ao saque. O comandante cercava a fortaleza, conquistava a cidade e tinha direito ao seu quinhão. Mas, nessa mesma Antiguidade, o comandante que saqueava poderia ser combatido, e, quando encontrava outro mais forte, era abatido sem dó. Portanto, aqueles que querem defender Higino Carneiro com estes argumentos, devem perceber que eles são reversíveis. Se pode desviar dinheiro, também pode ser atacado por outro mais forte. No fim de contas, estão a defender uma “lei da selva” que ninguém deseja para Angola.

Foi para evitar estas situações de “lei da selva”, de “lei do mais forte”, de “poder de saque”, que surgiu o Direito. Aqui há regras que devem proteger todos e a que todos devem obedecer. E é isto. A liderança dá-se pelo exemplo e pelo respeito das normas. Os feitos militares, ministeriais, mpelistas ou outros não conferiram quaisquer direitos superiores a tais indivíduos para saquearem o país e causarem tanta desgraça aos angolanos.

Ao crime corresponde o castigo.

Fonte: Maka Angola

 

 

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