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A ESCOLA DO MEDO

21-12-2018 - Rafael Marques de Morais

Minhas senhoras e meus senhores,

Durante décadas, a sociedade angolana tem vivido sob a bandeira do medo. O medo passou a ser uma escola de instrução obrigatória, que nos tem instruído contra a liberdade de expressão, contra os valores morais, contra o respeito pela dignidade humana, contra o bem comum.

A escola do medo foi instrumental na educação para a injustiça, no enraizamento da cultura de impunidade, de institucionalização da corrupção, de desprezo pela cidadania e de consagração do oportunismo como agentes da submissão nacional.

O cidadão angolano aprendeu a bater palmas à pilhagem do país, à violência física e psicológica contra o seu próximo, à incompetência do servidor público; aprendeu também a ficar calado, como bom aluno do medo. Os maiores ladrões do país passaram a afirmar-se como os maiores patriotas, enquanto os verdadeiros combatentes da e pela pátria foram agraciados com a humilhação e a miséria.

De forma extraordinária, a escola do medo destruiu a confiança dos cidadãos na afirmação do conhecimento individual enquanto um valor a defender. Esta escola conseguiu elevar à categoria de ciência da comunicação a prática de falar à toa e o valor de cada um passou a ser determinado por decisão política.

Como consequência, o medo em Angola apenas trouxe benefícios reais para muitos detentores do poder, os chicos-espertos e os forasteiros expeditos. Todavia, a escola do medo também afectou os seus dirigentes, professores e monitores. Estes passaram a conviver com o seu próprio medo face à mudança e face ao despertar da consciência colectiva dos cidadãos, da soberania do povo, do bom senso, da honradez e da justiça.

Agora sopram novos ventos da Cidade Alta, em Luanda. Esses ventos anunciam o desmantelamento desta escola do medo. Trazem esperança e exigem uma alteração no comportamento de todos nós, cidadãos angolanos crentes na liberdade, no progresso e na defesa dos direitos humanos no nosso país. Não podemos deixar escapar esta oportunidade.

Durante anos, defender os direitos humanos foi confrontar o poder do Estado saqueador e opressor, foi combater o “bandido estacionário”, para usar a feliz expressão do cientista político Mancur Olson.

Entre a crença, a dúvida e a indiferença, podemos fazer melhor. Aproveitemos a oportunidade para, de forma colectiva, contribuirmos para o desmantelamento da cultura do medo na nossa sociedade. As exigências que agora se nos colocam são diferentes, porque agora cada um tem de assumir as suas responsabilidades na moralização e construção de uma sociedade livre, justa e defensora dos direitos humanos.

O presidente da República João Lourenço tem feito discursos propiciadores de um ambiente favorável à mudança de mentalidades e ao exercício da liberdade de expressão. Lourenço tem vindo a exigir a moralização do Estado e da sociedade, cumprindo assim o seu papel enquanto dirigente político. Mas a soberania angolana só voltará às mãos do povo e só deixará de pertencer aos poucos que se apoderaram dela quando o exercício pleno da cidadania for capaz de demonstrar o vigor, a voz colectiva e o espírito de mudança do povo na defesa do bem comum.

Ilustremos.

Ontem, estivemos no município do Bocoio. Fomos muito bem recebidos pela administração local, que nos proporcionou um encontro com cerca de 100 representantes da população da comuna do Monte Belo, entre os quais dez sobas. A nossa conversa, no jango da administração local, centrou-se na questão da intolerância política, que tem sido violenta naquela comuna. O administrador do Bocoio, Paulino Tchimbundo, encorajou-nos a abordar abertamente o problema e a contribuir para a pacificação dos espíritos desavindos. Os participantes falaram à vontade, alguns procuraram justificar a violência passada, trocaram-se acusações mútuas entre militantes do MPLA e da UNITA, os sobas foram sábios na sua moderação e respondemos à altura dos desafios. A administração local engajou-se no evento, o seu secretário tomou notas e falámos da intervenção da justiça, por via dos tribunais, para os casos dos cidadãos que viram as suas casas queimadas e os seus bens saqueados. Falámos dos cidadãos oportunistas que se aproveitam da camisola partidária para o exercício de actividades criminosas. Falámos também do potencial económico da localidade, que produz em abundância o abacaxi mais doce do mundo. É incompreensível a existência de tanta miséria num país bafejado por tantas riquezas naturais. A miséria causada pela má governação é uma das consequências nefastas da violação dos direitos humanos.

No final, duas mães iniciaram espontaneamente uma batucada que, por meia hora, se transformou numa extraordinária roda de dança de mulheres.

Com este exemplo, demonstramos como se pode aproveitar o discurso oficial de abertura para acções concretas em prol do bem comum. As autoridades locais e os partidos têm agido no sentido de se resolverem esse tipo de conflitos, e nada impede que a sociedade civil contribua com uma visão diferente de resolução de conflitos. Ganha Angola, ganham os angolanos.

Temos, enquanto cidadãos, de cumprir com o nosso papel. Esse papel resume-se na velha e muito usada frase do presidente americano John Kennedy: “Não pergunte o que seu país pode fazer por si. Pergunte o que você pode fazer pelo seu país.”

Esta é a altura de realmente fazermos algo pelo nosso país e não ficarmos à espera de outros ou do Estado. Este é o tempo da cidadania angolana.

Representantes da população da comuna de Monte Belo, com sobas à frente

O que é ser cidadão?

Ser cidadão não é um dado adquirido. Num largo espectro mundial, os indivíduos de certos países não são cidadãos, mas súbditos de um poder qualquer, mais ou menos tirânico. A cidadania implica, desde a Antiga Atenas, a pertença à comunidade política, a participação nas suas decisões, a obtenção de benefícios e a assunção de deveres.

Ser cidadão implica automaticamente o exercício da cidadania. “Cidadão” é uma palavra plena de conteúdo, que implica acção. Esta acção incide na participação das decisões do governo, na defesa dos direitos fundamentais, na exigência de políticas e de serviços públicos que correspondam às necessidades das populações. O cidadão é alguém que participa, fala, toma decisões. Não fica de braços cruzados.

A comunidade política cumprirá os seus objectivos de bem comum quando cada um dos seus integrantes se comportar como um cidadão, impondo a sua participação na tomada de decisões, contribuindo para a construção do Estado, exigindo os seus direitos e cumprindo os seus deveres.

O mito do “Grande Homem”, investido de poderes ditatoriais para tudo resolver, tem resultado numa sequência de frustrações e descalabros. Não temos de esperar por cada novo presidente da República para decidir o futuro de todos nós.

Temos de garantir – como é tradição africana – a participação de todos na tomada das decisões importantes para o país, e na conjugação de esforços para a edificação de uma sociedade geradora de um Estado de Direito. É no serviço do bem comum, no respeito e na protecção dos direitos e das liberdades dos cidadãos que este Estado se deve afirmar. Deve também, simultaneamente, providenciar a melhoria das condições de vida de cada um, nomeadamente com a criação de empregos e uma educação e saúde de qualidade.

Em suma, a cidadania exige um exercício rigoroso por parte de cada um, num movimento de participação política e criação de condições para que o Estado cumpra as suas funções de melhoria da vida das populações.

Não pensemos que estas são afirmações genéricas e abstractas.

O lixo

Ontem, quando regressava do Bocoio, deparei-me com um camião de recolha de lixo a desfazer-se da sua carga no aterro sanitário do Cumango, à berma da estrada. Vi crianças com pás e uma mulher com um bebé às costas a fazerem a descarga. O bebé comia pão naquele ambiente nauseabundo. Quem se indigna? Quem age? Ninguém. Mas alguém no Lobito está a ganhar do Estado com a exploração do trabalho infantil.

Aterro sanitário do Cumango

Vejamos o lixo que inunda as nossas ruas, reparemos na imundície de tantos e tantos edifícios habitados. Possivelmente, qualquer um de nós tem a sua casa, dentro de portas, limpa e cuidada, mas abre a porta e mostra-se insensível à limpeza pública, deixando a sujidade acumular-se nas ruas e o prédio em que vive deteriorar-se. Para muitos cidadãos, a limpeza das ruas compete exclusivamente ao governo, assim como a aprovação de uma qualquer lei do condomínio, pela Assembleia Nacional, para obrigar os habitantes de um prédio a tê-lo bem conservado.

Essa perspectiva tem de mudar. Temos de ser nós, cidadãos activos, a tomar em mãos essas tarefas. Se cada um limpar o seu pedaço e cuidar de uma parte da sua rua, rapidamente as condições de vida vão melhorar, sem se esperar pela intervenção do Estado.

A defesa dos direitos humanos e da cidadania começa por pequenos passos, que em conjunto tornarão a vida de todos muito mais aprazível.

E é este o nosso primeiro apelo: a construção da cidadania, baseada no respeito pelos direitos humanos, em que cada um por si, individualmente, contribuirá na medida das suas possibilidades e com a sua acção e o seu comportamento para a melhoria da qualidade de vida angolana.

Portanto, a edificação de um Estado de Direitos Humanos, como se pretende que Angola seja, não depende apenas do presidente da República, dos ministros e dos órgãos do Estado. Em última instância, a construção de uma sociedade justa e solidária está nas nossas mãos, nas mãos dos cidadãos. O poder político já deu o sinal que a sociedade desejava e exigia.

Assumamos em Angola a nossa condição de cidadãos, o que implica agir em conformidade.

O segundo apelo é este:

O sucesso na promoção dos direitos humanos requer um sucesso difícil noutras áreas, designadamente a existência de boa governação, de dirigentes não corruptos e capazes de gerar emprego para os jovens, melhorar a economia, a educação e a saúde das populações, e empoderar as mulheres.

Combate à corrupção

Tudo isto passa pelo combate à corrupção. Na verdade, esse combate não é apenas uma questão criminal e de punição de desvio de dinheiro do Estado. O combate à corrupção é a afirmação de um direito fundamental: o direito à não corrupção dos governantes. O certo é que, como temos referido várias vezes, a corrupção mata.

Vejamos outro pequeno exemplo. Quando o dinheiro que estava destinado à construção de latrinas – para usar um objecto recentemente indicado por Bill Gates como essencial ao desenvolvimento – é desviado para o bolso de um qualquer dirigente, são várias as crianças que defecarão ao ar livre e com isso apanharão mais doenças e terão uma saúde pior. Estudos recentes na Índia indicam que a falta de latrinas é uma das principais causas das doenças e do subdesenvolvimento físico naquele país. Em Angola não será muito diferente.

Também por esse motivo, a corrupção tem de ser vista como um problema de direitos humanos. A corrupção retira dinheiro que seria utilizado para beneficiar as populações.

A corrupção tem impedido o desenvolvimento de Angola, tem matado mulheres, crianças e velhos. Tem minado a igualdade de oportunidades.

É esta a moralização de que a sociedade angolana necessita. Combater a corrupção é fundamental para lançar um desenvolvimento económico sustentado e inclusivo.

Portanto, o conceito de corrupção tem de ser elevado a um novo patamar. Esse patamar é o dos direitos humanos.

Atendendo, repete-se, ao mal que a corrupção faz a um país, matando as suas crianças e os seus velhos, atrasando o seu desenvolvimento, mantendo os níveis exagerados de pobreza, o direito à não corrupção tem de ser considerado como um direito humano fundamental: o direito a ser governado de forma transparente e não corrupta.

Ao transformar-se o direito à não corrupção num direito humano, todos os mecanismos internacionais e nacionais de protecção dos direitos humanos e combate à corrupção devem ser coordenados e trabalhar em conjunto. Corrupção e direitos humanos tornam-se a mesma face da moeda.

Esse novo patamar dos direitos humanos implicará também abordar a corrupção não apenas como uma questão de Estado, para a qual sejam competentes apenas órgãos de Estado, mas como a afirmação de direitos individuais e de autodeterminação popular. E, nestes termos, as pessoas privadas terão direito a começar a acusar directamente (com provas, naturalmente) os governantes corruptos.

E é aqui que a primeira nota da nossa intervenção se liga com a segunda. Cabe a cada cidadão tomar nas suas mãos a luta contra a corrupção. O papel de cada um de nós é fundamental. Não fiquemos à espera do Estado ou dos outros. Actuemos no sentido do bem comum!

A acção de cada um é a melhor garantia para a afirmação do respeito pelos direitos humanos como a condição para a verdadeira paz e estabilidade política em Angola.

Muito obrigado a todos. Agradeço a Omunga, em particular, por me ter convidado a visitar Benguela e proferir esta palestra no contexto do Dia Internacional dos Direitos Humanos.

Fonte: Maka Angola

 

 

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