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ACONTECEU…

27-04-2018 - Maria do Carmo Vieira

  • Visitei, há largos anos, a cidade de Florença, motivada pelo rio Arno e pela beleza da sua ponte, pela Galeria degli Uffizi e outros museus, pelas suas igrejas e palácios, pela riqueza arquitectónica dos seus velhos edifícios e pelas suas velhas ruas onde o sol quase não consegue entrar. Um passeio, a que ao prazer de estar se sobrepôs, no entanto, a experiência violenta de uns momentos, infindáveis, numa tarde aprazível que se deixou de sentir como tal. Guardo ainda a mesma incredulidade e o mesmo medo de então. Nunca presenciara o racismo a acontecer, em gestos de puro ódio perante o Outro.

Imagine-se uma rua pedonal, coberta de um lado e de outro por toalhas, brancas ou coloridamente riscadas, repletas de peças artísticas africanas e de outros objectos de uso comum. Vindo de uma travessa, perpendicular à referida rua, surge um grupo de quatro jovens italianos que, gesticulando exageradamente e falando demasiado alto, lançaram à sua volta um olhar que dificilmente esquecerei pelo ódio, sim, ódio, que transmitia e que se fixava exclusivamente nos emigrantes que se encontravam de pé, junto aos objectos que haviam exposto.

Num repente, que enevoou a vista, pela inesperada violência do gesto, os quatro italianos, dois de cada lado da rua, começaram a andar mais rapidamente, arrastando, com raiva, os pés por cima das toalhas, ao mesmo tempo que pontapeavam os objectos que aí se encontravam e soltavam feras gargalhadas vendo os emigrantes correr para salvar as suas coisas. Na confusão gerada, ainda tiveram tempo para pontapear um dos emigrantes que se baixara para recolher os seus haveres, muitos dos quais danificados. Paralisada, por instantes, face ao que assistia, corri para ajudar a recolher o que se encontrava magoadamente disperso. Estes emigrantes, na sua maioria senegaleses, explicaram que cenas como estas se repetiam e que eram poucos os que, presenciando, reagiam com um gesto solidário.

Eis o significado da ideologia nacionalista, que não se confunde com o fenómeno do patriotismo, como pretendem alguns demagogicamente: uma extrema agressividade e violência, uma total incapacidade de compreender o sentido do rosto humano, uma bestialidade de discurso que põem a nu o homem sem alma, logo, sem compaixão, o homem incapaz de pensar e de sentir e que dessa forma expõe, negando a sua própria condição humana, o miserável que é.

Esta a ideologia que tem vindo a crescer assustadoramente e de que a Itália é um exemplo flagrante, como o demonstraram as recentes eleições (Março de 2018) e as palavras xenófobas de Matteo Salvini (Liga Norte), indicando que consigo «a polícia e os soldados» teriam «o caminho livre para limpar a cidade [de emigrantes]» ou descrevendo-os como «uma invasão»; nada que se afaste também dos discursos dos governantes húngaros e polacos, agraciados com a revoltante inércia da União Europeia que se tem limitado a “ameaçar”, e nada mais.

A crescente xenofobia europeia (nos seus vários antis: semitismo, islamismo, emigração (numa geografia abrangente) ou etnia cigana), associada à contínua aviltação da Memória que facilita o intolerável e convida à resignação e à preguiça de pensar, exige um contínuo estado de alerta, tal Movimento de Resistência que não abdica, por mais difícil que sejam os obstáculos, dos seus princípios de Amizade e de Solidariedade humanas.

  • Quem esteve no IPO e experimentou sessões de quimioterapia e de radioterapia, presenciando também o vai-e-vem de doentes nos corredores, sabe que nada é tão doloroso como passar pelo espaço onde se encontram as crianças. Aí, perde-se a nitidez do que se vê, pelas lágrimas que nos toldam os olhos, e sente-se a dificuldade em acreditar que assim acontece a doença àqueles pequeninos. Tudo é tão intensamente insuportável que não conseguimos controlar a emoção. Por isso, magoou qualquer um a notícia sobre o que se passa há 10 anos no espaço «Joãozinho», do Hospital de S. João, no Porto.

Andaram todos distraídos ao longo dos anos, indiferentes à situação das crianças, tristemente forçadas a tratamentos difíceis, num ambiente desfavorável e sem o conforto exigido. Mesmo agora, preocupados, segundo disseram, em resolvê-la, o dinheiro atribuído a esse fim carecia da autorização do Ministério das Finanças para ficar acessível, pelo menos até há bem poucos dias.

Estranhas prioridades que a austeridade ditou, esquecendo as pessoas, e que a euforia do êxito parece querer manter. Sabia-se da grave situação, em gabinete, e não se lamentava o que sucedia todos os dias: crianças, com os seus pais, em salas pequenas, húmidas e com paredes esburacadas, janelas sem cortinas e sofás rasgados. Quando os pais denunciaram o insustentável, a hipocrisia do lamento soltou-se em uníssono e administração do Hospital, Ministro da Saúde, deputados, muitos dos quais adeptos fervorosos da austeridade imposta num passado recente, e tantos outros quiseram demonstrar publicamente o seu choque face à terrível situação que há anos conheciam.

É por isso que quando obedecemos em determinados momentos, pondo de parte a nossa consciência, essa postura significa que nada valemos.(1)

Maria do Carmo Vieira

(1) Parafraseou-se a frase de Henry Thoreau,« Obedecer é como confessar que nada valho», in Desobediência Civil.

 

 

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