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Notícias e Opinião do Concelho de Almeirim de Portugal e do Mundo
 

VII – HISTÓRIAS DE ENCANTAR
O CASAL MARAVILHA

23-03-2018 - Pedro Pereira

O senhor Gervásio Pancrácio considerava-se um cidadão exemplar, um funcionário público cumpridor das leis, respeitador dos costumes e dos superiores hierárquicos. Além disso – reconhecia – era temente a Deus e à autoridade. Fora essa a educaçãozinha que lhe tinha sido inculcada no seio familiar da sua criação.

Homem de físico esquelético, possuía uma cabeça calva, luzidia, que chispava reflexos conforme a incidência do sol sobre ela. Adornava-lhe a face um bigodinho fininho que mais parecia um traço de lápis de carvão.

Uma maleita crónica o atormentava: por mais lavagens que fizesse, tratamentos a que se havia sujeitado a mando de especialistas nacionais e até espanhóis e galegos, a verdade é que cheirava permanentemente mal dos pés. O chulé era a cruz da sua vida, o seu calvário, que enfrentava com estoicismo dado o facto de ter nascido sem olfato.

Sofria com o penar dos desgraçados, dos inválidos da existência, por isso dizia frequentemente que o mal do mundo é que havia pessoas tão pobres, tão miseráveis, que só tinham dinheiro.

Embora reconhecendo, todavia, que muitas dessas criaturas eram vítimas de variados tipos de loucura adquiridos ou congénitos, considerava que a maior parte dessas pessoas embora pudessem ser curadas, era melhor não lhes mexer, quando não, depois de tratadas corria-se o risco de poderem vir a infernizar ainda mais a vida dos pobres mortais como ele.

A esposa do senhor Pancrácio tinha sido até há poucos anos, uma santa fada do lar. Uma doméstica que ele havia domesticado logo nos alvores do casamento. Senhora de físico redondo, avantajado, decorava-lhe a cabeça uma cabeleira tingida de preto com uma franja a tentar aparentar o penteado da senhora dona Beatriz Casta.

Falava, ou antes, faladrava, tal era o tom agressivo e elevado da voz, como um sargento lateiro.

A dona Evangelina dos Prazeres – de sua graça - havia tido uma formação clássica à «antiga portuguesa», como era costume dizer-se nestes casos. Nascida no seio de uma família de lavradores remediados, era a décima criatura de um total de dezasseis irmãos que os seus prolíficos progenitores haviam engendrado nas noites sorumbáticas e bisonhas do casarão de granito plantado na aldeia da Marmeleira encastoada nas brenhas escalavradas da serrania beirã, ao invés de se distraírem vendo programas televisivos de moral educativa cristã e correlativos.

Por mor do destino trágico, na altura da história edificante que aqui é relatada, sendo a Evangelina uma balzaquiana, só ela e um irmão que teve por destino profissional vir a ser cangalheiro é que escaparam da parca que a todos acometeu – incluindo os pais - ao longo dos anos.

Na idade de aprender as primeiras letras, os progenitores encafuaram-na num colégio interno de freiras com morada na sede do concelho que distava mais de duas dezenas de léguas da aldeia. De lá havia saído na idade da puberdade, diplomada como «rata de sacristia» a saber de cor e salteado todas as rezas, benzeduras e esconjuros que lhe viriam a ser úteis ao longo da vida em público e depois de encetar uma carreira política.

Nesse dia, após a sua abalada, as freiras e as internas fizeram uma festa de arromba com chá de cidreira e bolinhos secos até ficarem empanzinadas. O motivo foi o terem-se livrado do fedor pestilento a ácido sulfídrico que de quando em vez durante o dia acompanhava a Evangelina. Por mor dos seus pecados, a coitada, sofria de flatulência crónica.

Sorte a dela que não tinha olfato, um dos seis sentidos que havia perdido em jovem no rescaldo de uma pneumonia.

Quando em gaiata ingressou no convento, esse pormenor quase passava despercebido, dado ser uma criatura de porte pequeno. Com o avançar dos anos, aumento de altura e envergadura cilíndrica, o volume e intensidade do cheiro dos gazes foi-se tornando pestilento quase insuportável, mas por razões que o destino tece, as freiras entenderam entre elas que podiam tirar partido dessa faceta da Evangelina. Assim, sempre que tinham de aplicar um castigo (eufemisticamente chamavam-lhe penitência) a uma das educandas que se tresmalhasse ou mal portasse, encafuavam a mesma junto com a flatulenta num pequeno e escuro cubículo esconso, pelo tempo que consideravam dever ser o penar da moçoila, que por vezes chegava a mais de três dias. Claro que a pobrezita, no fim do penar, saía do cubículo perfeitamente gaseada.

Ocorre que, já matrona na vida, Evangelina foi convidada para entrar nas listas do Partido Choldrista - de que era associada há uma dúzia de anos - como cabeça de lista nas eleições para a Câmara Municipal da Gandaia, terra onde vivia.

Numa atitude de rebeldia face ao marido, empinou as mamas e aceitou decidida.

Relembrou então aos membros da direcção do PC que o seu problema de flatulência intensa poderia constituir um obstáculo aos desígnios de vitória do partido no concelho.

A rirem-se incontrolavelmente, como asnos, reponderam-lhe que essa era precisamente a sua – e deles – grande estratégia para ganhar as eleições, a grande arma do Partido Choldrista; gasear os eleitores até ficarem abananados, facto que a Dona Evangelina dos Prazeres iria aproveitar (com proveito) para os induzir com a sua voz de trovão, autoritária, de sargento lateiro a votarem nela.

E votaram…

Pedro Pereira

 

 

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