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A FAMÍLIA (11)

21-04-2017 - Henrique Pratas

A monogamia não aparece na história, portanto, absolutamente, como uma reconciliação entre o homem e a mulher e, menos ainda, como a forma mais elevada de matrimónio. Pelo contrário, ela surge sob a forma de escravização de um sexo pelo outro, como proclamação de um conflito entre os sexos, ignorado, até então, na pré-história. Num velho manuscrito inédito, redigido em 1846 por Marx e por mim, encontro a seguinte frase:

" A primeira divisão do trabalho é a que se fez entre o homem e a mulher para a procriação dos filhos".

Hoje posso acrescentar: o primeiro antagonismo de classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher na monogamia; e a primeira opressão de classes, com a opressão do sexo feminino pelo masculino. A monogamia foi um grande progresso histórico, mas, ao mesmo tempo, iniciou, juntamente com a escravidão e as riquezas privadas, aquele período, que dura até nossos dias, no qual cada progresso é simultaneamente um retrocesso relativo, e o bem-estar e o desenvolvimento de uns se verificam às custas da dor e da repressão de outros. É a forma celular da sociedade civilizada, na qual já podemos estudar a natureza das contradições e dos antagonismos que atingem seu pleno desenvolvimento nessa sociedade.

A antiga liberdade relativa de relações sexuais não desapareceu completamente com o triunfo do matrimónio sindiásmico, nem mesmo com o da monogamia.

"O antigo sistema conjugal, reduzido a limites mais estreitos pela gradual desaparição dos grupos punaluanos, continuou acompanhando a família que evoluía e ficou ligado a ela até os albores da civilização...; desapareceu, por fim, com a nova forma de heterismo, que acompanha o gênero humano até a plena civilização, qual uma sombra negra se projetando sobre a família."

Morgan entende por heterismo as relações extraconjugais — existentes junto com a monogamia — dos homens com mulheres não casadas, relações que, como se sabe, florescem sob as mais variadas formas durante toda a época da civilização e se transformam, cada vez mais, em aberta prostituição. Esse heterismo descende, em linha reta, do matrimónio por grupos, do sacrifício pessoal que as mulheres faziam para adquirir direito à castidade. A entrega por dinheiro foi, a princípio, um ato religioso: era praticada no templo da deusa do amor e, primitivamente, o dinheiro ia para as arcas do templo. As hierodulias de Anaítis, na Armênia, de Afrodite, em Corinto, tal como as bailarinas religiosas agregadas aos templos da Índia, conhecidas pelo nome de bayaderas (corruptela do português bailadeira), foram as primeiras prostitutas. O sacrifício da entrega, no início, dever de todas as mulheres, passou a ser exercido, mais tarde, apenas por essas sacerdotisas, em substituição a todas as demais. Em outros povos, o heterismo provém da liberdade sexual concedida às jovens antes do matrimónio; assim, pois, é também um resto do matrimónio por grupos, mas que chegou até nós por outros caminhos. Com a diferenciação na propriedade, isto é, já na fase superior da barbárie, aparece, esporadicamente, o trabalho assalariado junto ao trabalho dos escravos; e, ao mesmo tempo, como seu correlativo necessário, a prostituição profissional das mulheres livres aparece junto à entrega forçada das escravas. Desse modo, pois, é dúbia a herança que o matrimónio por grupos legou à civilização — e tudo que a civilização produz é também dúbio, ambíguo, equívoco, contraditório: de um lado a monogamia, de outro o heterismo, incluída a sua forma extrema, a prostituição. O heterismo é uma instituição social como outra qualquer, e mantém a antiga liberdade sexual... em proveito dos homens. Embora seja, de fato, não apenas tolerado, mas praticado livremente sobretudo pelas classes dominantes, ele é condenado em palavras. E essa reprovação, na realidade, nunca se dirige contra os homens que o praticam e sim, somente, contra as mulheres, que são desprezadas e repudiadas, para que se proclame uma vez mais, como lei fundamental da sociedade, a supremacia absoluta do homem sobre o sexo feminino.

Mas, na própria monogamia, desenvolve-se uma segunda contradição. Junto rio marido, que ameniza a existência com o heterismo, acha-se a esposa abandonada. E não pode haver um termo de uma contradição sem que lhe corresponda o outro, como não se pode ter nas mãos uma maçã inteira, depois de ter comido sua metade. Esta, no entanto, parece ter sido a opinião dos homens, até que as mulheres lhes puseram outra coisa na cabeça. Com a monogamia, apareceram duas figuras sociais constantes e características, até então desconhecidas: o inevitável amante da mulher casada e o marido corneado. Os homens haviam conseguido vencer as mulheres, mas as vencidas se encarregaram, generosamente, de coroar os vencedores. O adultério, proibido e punido rigorosamente, mas irreprimível, chegou a ser uma instituição social inevitável, junto à monogamia e ao heterismo. No melhor dos casos, a certeza da paternidade baseava-se agora, como antes, no convencimento moral, e para resolver a contradição insolúvel o Código de Napoleão dispôs em seu artigo 312:

"L’enfant conçu penriant le mariage a pour père le mari". ("O filho concebido durante o matrimónio tem por pai o marido.")

É este o resultado final de três mil anos de monogamia.

Assim, pois, nos casos em que a família monogâmica reflete fielmente sua origem histórica e manifesta com clareza o conflito entre o homem e a mulher, originado pelo domínio exclusivo do primeiro, teremos um quadro em miniatura das contradições e antagonismos em meio aos quais se move a sociedade, dividida em classes desde os primórdios da civilização, sem poder resolvê-los nem superá-los. Naturalmente que só me refiro aqui aos casos de monogamia em que a vida conjugal transcorre conforme as prescrições do caráter original desta instituição, mas na qual a mulher se rebela contra o domínio do homem. Que não é em todos os casamentos que assim ocorre, sabe-o melhor do que ninguém o filisteu alemão, que não sabe mandar nem em sua casa nem no Estado, e cuja mulher veste com plenos direitos as calças de que não é digno. Mas, nem por isso, deixa de acreditar-se muito superior ao seu companheiro de infortúnios da França, a quem sucedem coisas bem mais desagradáveis, com maior frequência do que a ele mesmo.

Por certo, a família monogâmica não se revestiu, em todos os lugares e épocas, da forma clássica e rígida que teve entre os gregos. A mulher era mais livre e mais considerada entre os romanos, os quais, na qualidade de futuros conquistadores do mundo, tinham das coisas um conceito mais amplo, apesar de menos refinado que o dos gregos. O romano acreditava suficientemente garantida a fidelidade da sua mulher pelo direito de vida e morte que tinha sobre ela. Além disso, a mulher, lá, podia romper o vínculo matrimonial à sua vontade, tal como o homem. Mas o maior progresso no desenvolvimento da monogamia realizou-se, indubitavelmente, com a entrada dos germanos na história; e assim foi porque, dada a sua pobreza, parece que, naquele tempo, a monogamia ainda não se tinha desenvolvido plenamente entre eles, desprendendo-se do casamento sindiásmico. Tiramos esta conclusão à base de três circunstâncias mencionadas por Tácito: em primeiro lugar, juntamente com a santidade do matrimónio ("contentam-se com uma só mulher, e as mulheres vivem cercadas por seu pudor"), a poligamia existia para os grandes e os chefes de tribo — situação análoga à dos americanos, entre os quais existia o matrimónio sindiásmico. Em segundo lugar, a passagem do direito materno ao direito paterno devia ter-se realizado recentemente, pois o irmão da mãe (o parente gentílico mais próximo, segundo o matriarcado) quase era tido como um parente mais próximo do que o próprio pai — o que também corresponde ao ponto-de-vista dos índios americanos, entro os quais tinha Marx encontrado, como costumava dizer, a chave para compreender os nossos tempos primitivos.

Artigo Parte 11

Continua na próxima semana

 

 

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