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O PRINCÍPIO DO RESTO DA SUA VIDA

14-04-2017 - Pedro Pereira

Cumprem no dia 25 deste mês de Abril, quarenta e três anos de mudança de regime político em Portugal, por via da revolução militar despoletada por um vasto número de oficiais, sobretudo capitães.

Depois, teve início um processo consentâneo com esse evento, na certeza de que não obstante as profundas transformações económicas e sociais que se se seguiram a mentalidade dos portugueses manteve-se quase imutável, facilmente comprovado hoje, passadas que são mais de quatro décadas.

Neste mês, ao longo dos anos, comemora-se o referido acontecimento de 1974 com foguetórios, discursos e outras atividades lúdicas. Até existe um feriado, «esquecendo-se» o poder político (da cor que ele seja) e a maioria do «bom povo» português (porque tem a memória fraca) as consequências dramáticas para os ex-combatentes (e as suas famílias) que participaram numa guerra miserável, sem honra nem glória durante 13 anos nos três territórios ultramarinos portugueses: Angola, Moçambique e Guiné.

É sobre eles que vos falo hoje. Assim:

- Existem duas grandes etapas na vida de um ex-combatente: antes da guerra e depois da guerra.

Antes da guerra, era a vida suspensa, o adiar de projetos de vida, de trabalho, escolares, académicos, de família. A angústia dentro do peito que se ia avolumando até que fosse mobilizado para Angola, Moçambique ou Guiné onde, segundo Salazar e depois Caetano: «De vez em quando existem escaramuças provocadas por bandoleiros. Por agentes ao serviço de Moscovo. Por terroristas». Depois, era o «adeus até ao meu regresso».

Do cais da partida ao cais da chegada, em África, o civil feito militar carregava dentro de si o peso da pena de um castigo que só podia entender por ser português.

De novo, como durante séculos havia acontecido a tantos e tantos compatriotas seus, também ele sentia que ia cumprir as penas de um degredo e lembrava-se das palavras do poeta António Nobre: «Amigos, que desgraça nascer em Portugal».

Na escada de embarque para o navio, no portaló, as senhoras do Movimento Nacional Feminino davam-lhe medalhinhas de lata da Nª. Sr.ª de Fátima e murmuravam-lhe com ar compungido, palavras que lhe pareciam de condolências. Os gritos e choros lancinantes, dos familiares dos militares que ficavam no cais a acenar com lenços molhados de lágrimas, de mãos esticadas para o navio, até que este não fosse mais que um minúsculo ponto na linha do horizonte, haveriam de ficar gravados a ferro e fogo no fundo da sua memória, até ao fim dos seus dias.

Ao arribar, tudo lhe era hostil. O clima, a água, as doenças, até a maior parte dos naturais desses territórios, incluindo brancos…

Disseram-lhe ir defender o Portugal uno, o tal do Minho a Timor. Mas se o território onde havia atracado era precisamente o oposto da sua terra natal, da mãe Pátria! Mergulhava noutro mundo. Nada voltaria a ser como antes. A princípio não se apercebia porque nada era imediato, visível, antes insidioso, mentalmente subversivo.

A fome, o calor, o cansaço físico e psicológico. Estar lá, a pensar nos lugares em que dentro de si habitavam os seus entes queridos. Naqueles que amava e que pensava terem ficado irremediavelmente apartados de si noutra dimensão. Estar lá, no teatro de operações e sentir o irreal dos sentidos. Ter por quotidiano o absurdo, a sobrevivência como instinto natural, o irracional como dogma, a morte como lei.

Depois, foram dias, foram meses, foram anos, de noites e noites de vigília sem dormir, os sentidos em alerta, os nervos em frangalhos, as queimadas, o napalm, os mosquitos, o calor opressivo, o suor sem limites, as minas na picada, as emboscadas, os ataques, o napalm, a fome e a sede, as emboscadas e as tripas de um camarada esventrado por uma mina ou uma rajada, que ali ficaram à beira da picada sob o pino do sol e o zumbido das moscas. Os feridos e os mortos e ainda os mortos-vivos.

A rotina dos dias e das noites sem fim. A sua vida penhorada sabe Deus a quem e porquê, a irmandade forjada entre homens, temperada a ferro e fogo, fruto de uma orfandade que não se explicava nem se apalpava. Sentia-se nas entranhas, lia-se nos olhares que se entrecruzam numa angústia que o levava ao fim dos tempos, numa dolorosa sensação de participar numa guerra anacrónica que não era dele. Até que matar, ganhava um significado maior. Assumia-se como que uma imolação aos deuses, exorcizando fantasmas.

Aplacava as chamas do inferno que o consumia por dentro disparando a arma que se havia tornado como que um prolongamento dos seus braços. Os sentidos apuram-se, os sentimentos misturam-se numa mescla indefinida e indescritível que ficava a vogar num nó que se formava entre o estômago e a garganta. Os pés transportavam-no por mar de sargaços. No lodo dormia.

Mas foram também as doenças; o paludismo, a hepatite, a bilharziose, a disenteria amibiana, os ossos fraturados com facilidade e a grande doença portuguesa: as saudades, muitas, tanto que fazia doer até quase enlouquecer. Os seus, os que o amavam, continuavam lá longe, roídos de saudades, cansados de chorar.

Na hora do regresso, faltavam camaradas à chamada. Que a terra lhes seja leve…. Outros haviam ficado um quarto de homens, meios homens, que as pernas e os braços tinham desaparecido com os estilhaços de uma granada algures numa picada. Outros ainda regressavam… «cacimbados».

Nada se lhe afigurava como antes. As pessoas, as ruas que pisava, o ar que respirava. Com o passar dos dias, começava a sentir-se de novo abandonado, estranhamente, como quando havia arribado a África.

E as interrogações instalavam-se dentro de si; como seria recebido pela família, pelos entes queridos, pelos amigos, pelos outros, ao desembarcar na metrópole? Será que iria conseguir adaptar-se facilmente à vida civil?

Entregava as fardas, os haveres militares e recebia uma licença por trinta dias. Se até lá não fosse chamado, não valia a pena apresentar-se. A canga continuava a pender sobre o seu pescoço. Passados mais de quarenta anos, de vez quando em ainda sonha com essa licença, por via da qual poderia ter-se – hipoteticamente – apresentado no quartel, mas também com a guerra, com os vivos e com os mortos que tombaram naquelas terras quentes, com os seus camaradas, com os inimigos…

Ao ser desmobilizado em Lisboa, saía a Porta de Armas e tudo se lhe aparentava irreal. Respirava-se um ar tão fininho…. Só se viam brancos, muito branquinho, tudo tão lento, tão limpinho e aparentemente organizado…. Estranhamente sentia-se como que um órfão, abandonado. Mas se finalmente estava junto da família, dos amigos, por quem tanto havia ansiado?... Sentia que já não pertencia a Portugal, em África tinha deixado a maior parte de si, os sonhos e a inocência.

Nos dias seguintes, iria começar a sentir a falta dos seus camaradas, daqueles com quem durante mais de dois anos havia partilhado os bons e os maus momentos, a fome e a sede, a angústia do dia-a-dia, das operações, das emboscadas…

Habitava a sua vida num compasso de espera no tempo e no espaço. Não se sentia cá nem lá. Abatia-se sobre ele uma terrível sensação de insegurança. De forma estranha, começava a acometê-lo o desejo do regresso ao mato, onde poderia de novo unir-se aos seus camaradas: os vivos e os mortos que haviam ficado pelo caminho, porém, onde já não houvesse guerra, nem mortos, nem estropiados.

As pessoas quando sabiam que havia regressado da guerra em África interpelavam-no: «Quantos morreram por desastres de viaturas e bebedeiras na tua Companhia?». A raiva crescia dentro de si, reagia furioso, mas só verbalmente, porque já não andava armado. Se ainda tivesse consigo a sua menina… a G3! Uma pia senhora da sua família abraçava-o comovida e perguntava-lhe angustiada: «Ai filho… Estás tão magrinho! Olha lá: – os pretinhos sabem rezar?».

Nos dias seguintes comprava os jornais para ver se traziam notícias da guerra de África, notícias das emboscadas, dos combates, dos mortos e dos feridos em combate…

Espantado, constatava que de África só vinham notícias de inaugurações de obras do regime e de uma ou outra morte de soldados vítimas de doenças ou de desastres de viação, no estilo: «Ao princípio da tarde de ontem, um veículo conduzido por um jovem de 21 anos, despistou-se perto da Praia da Corimba. Quer o condutor, quer os restantes três ocupantes, tiveram morte imediata. O acidente ficou a dever-se a excesso de velocidade. Os quatro jovens eram militares em gozo de licença.» Também encontrava variantes menos secas deste tipo de notícias, em que o despiste era comentado como tendo ficado a dever-se ao facto do «condutor se encontrar alcoolizado».

Quase em estado de choque, constatava que na metrópole existia um olímpico desconhecimento do que se passava no Ultramar, uma enorme ignorância do que se passava na África portuguesa.

Sentia que a paz que se vivia em Portugal era uma paz podre, uma paz fictícia, de «faz de conta».

Na Rádio, na Televisão, programas de fados, faduchos de manhã à noite e outra música a que em surdina chamavam de nacional-cançonetismo; o António Calvário, a Simone, a Madalena Iglésias, outros pimpolhos e alguma música estrangeira que passava o crivo da Censura. Relatos da bola e reportagens sobre a mesma aos domingos. Porém, tudo tão parado no tempo, como havia deixado quando da partida, cerca de dois anos e meio antes. O tempo não passava por Portugal. Este era, «um paraíso claro e triste», como disse Antoine de Saint-Exupéry, de passagem por Lisboa em 1940 quando da Exposição do Mundo Português.

Depois… começava o resto da sua vida.

Pedro Pereira

 

 

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