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IV - PORTUGAL NOS ALVORES DO SÉCULO XX

31-03-2017 - Pedro Pereira

Nos inícios deste século, os cafés de Lisboa, do Porto, de Coimbra e de uma maneira geral, de outras zonas urbanas do País, irão marcar o panorama intelectual e político deste período como espaços de convívio, de tertúlias, de partilha de ideias entre artistas das mais diversas áreas, poetas, pintores, ceramistas, etc., em especial em Lisboa, destacando-se de estes o Café, A Brasileira do Chiado (inaugurado em 1905 e o mais conhecido de Lisboa) e o Bristol Club. Espaços frequentados por personalidades como Fernando Pessoa, Stuart Carvalhais (1887 - 1961), Almada Negreiros, Eduardo Viana, Jorge Barradas, António Soares, Leopoldo de Almeida, Canto da Maia e Santa-Rita Pintor, entre outros nomes do panorama artístico nacional, locais que na época assumiram uma extraordinária importância para a divulgação da produção artística e do debate cultural.

A Brasileira tornou-se um importante centro cultural de Lisboa e de Portugal. Longas tertúlias promovidas por pintores, artistas, escritores, políticos e a maioria dos representantes da intelectualidade portuguesa, eram acompanhadas pelo café sorvido envoltos no fumo dos cigarros. Por lá passaram, igualmente, Fernando Pessoa, Almada Negreiros, Jorge Barradas e muitos dos modernistas portugueses.

Nas primeiras décadas do século XX, a cultura portuguesa aparentava emergir diretamente das tertúlias dos cafés, alguns deles, assumindo-se como mostruários das artes que então se produziam, como no caso da Brasileira do Chiado. Aliás era aqui, às portas do Bairro Alto que outros importantes espaços de cultura se situavam, como o Teatro Nacional de S. Carlos (ópera), o Teatro S. Luís e o Teatro da Trindade. O Grémio Literário e a Livraria Bertrand (hoje a mais antiga do mundo) compunham o cenário cultural.

Descendo a Rua Garret chegava-se ao Rossio, onde os mais importantes espaços lúdicos eram o Café Portugal e o Café Gelo . O segundo deles foi inaugurado em meados do século XIX . Inicialmente chamou-se Botequim do Gonzaga, vindo posteriormente a denominar-se de Café Freitas e finalmente Café do Gelo.

O Gelo como era usualmente conhecido, possuiu sempre uma grande tradição revolucionária e reviralhista, a sua sala nas traseiras, era o local de encontro e conspiração de republicanos , maçons , socialistas , anarquistas e carbonários . A ele chamou Aquilino Ribeiro : a sede informal da ala radical da carbonária e da maçonaria.

Segundo este escritor o regicídio foi urdido entre aquelas quatro paredes. Assim, dali terão saído em 1 de Fevereiro de 1908 , Alfredo Costa e Manuel Buíça para o Terreiro do Paço a fim de abaterem a tiro o rei D. Carlos e o príncipe herdeiro, muito embora hoje se pense que foi principal objetivo dos assassinos liquidarem o ditador João Franco.

Nos anos seguintes o Café do Gelo tornou-se poiso habitual de intelectuais da capital, como por exemplo, Fernando Pessoa .

O poeta frequentava também ali próximo A Brasileira do Rossio (espaço inaugurado em 1911), o Café Martinho (a última geração literária que conheceu foi a da revista Orpheu) , mesmo ao lado do Teatro Nacional D. Maria, a pastelaria Suíça e o restaurante Irmãos Unidos. Este era poiso obrigatório e diário de importantes vultos da cultura Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, António Ferro, Armando Côrtes-Rodrigues, Luiz de Montalvor, José Pacheko e Alfredo Guizado , entre outros.

Como expoente máximo de um escritor que à mesa dos Cafés iniciou a sua carreira de escritor e jornalista e terminou apodando-os de «locais de perdição», é de referir António Ferro.

Como jornalista, escreveu as suas três primeiras crónicas à mesa do Café Martinho do Rossio e acabou a dizer mal dele.  

Como escritor, começou por protestar contra a Censura e acabou a defendê-la e a justificá-la. Na idade madura, aos sessenta anos de idade, dizia que a vida de café simbolizava, na sua evolução pessoal, o passado repudiado, sublinhando em especial, o mesmo Café Martinho.

Ferro, pouco antes de morrer, prematuramente, repudiou os ideais de liberdade e modernidade da sua geração, quiçá, da sua própria juventude.  O homem que Salazar supostamente «exilou» como embaixador na República Italiana fascista, sobre o seu passado de jovem intelectual republicano e de poeta habitué do Café Martinho refere a dada altura:  - «Se bem que já desperto, nessa altura pela voz da consciência nacional, republicano, sim, mas republicano português, nacionalista, anti demagógico desde os meus vinte e dois anos (1917), eu pertencia, no entanto, àquela geração de rapazes que fora educada na atmosfera poeirenta dos comícios dos subúrbios, no culto dos atrevidos propagandistas da sonhada república (…) que faziam de S. Bento o campo das suas aventuras e das suas audácias, geração que foi (…) arrastada, sobretudo, pela voz empolgante, musical, desse bom mas excessivo António José de Almeida (…) Alguns anos passaram em que pouco mais fiz do que arrastar a minha indolência, o meu vistoso mas oco baudelairianismo pelas mesas do Martinho, onde perorava, todas as tardes, rodeado pelos meus companheiros de tertúlia, à volta de uma ritual chávena de café com leite. Foi aquela época mole, dissolvente, mas talvez necessária, dos estetas (1912-1918), da Arte pela Arte, a época do wildismo desdenhoso, em que os trocadilhos apareciam mascarados de paradoxos, consequência, sem dúvida, da nossa decadência política, seu reflexo literário, mas também reacção contra certos excessos do materialismo desenfreado dos partidos e clientelas, contra os abusos da vida pela vida, ou antes da vida pela vidinha, se bem que não tenha dúvidas sobre o idealismo e a honestidade pessoal da grande maioria dos chefes políticos de então. Foi Sidónio Pais, a figura esbelta de Sidónio (Pais), o nosso primeiro republicano sem barrete frígio, que me arrancou a este adormecimento, a esta modorra. A primeira vez que o vi - lembro-me bem! – Encontrava-me precisamente no Martinho, no quartel-general da minha indolência. Sidónio regressava da sua viagem triunfal ao Porto. Grande multidão o aguardava diante da estação do Rossio e suas imediações. Como sempre, diante do meu deslavado café com leite, insípida água benta dos meus paradoxos e trocadilhos, falsamente irónico, indiferente, julgava-me bastante céptico para me defender daquela onda de entusiasmo que já transpusera as portas do Martinho, que pretendia molhar-me. Vencido, primeiro, pela simples curiosidade, acabei por subir ao primeiro andar e instalar-me na varanda do Café apenas para ver, gozar o espectáculo. Mas quando Sidónio Pais assomou à porta da estação, com o seu perfil já lendário, com aquela máscara de traços finos, mas nítidos onde se espelhava a nossa própria vontade, rodeado pelos seus ajudantes, impecáveis e juvenis nas suas fardas novas, algo de magnético se passou, algo de misterioso aconteceu – asa de anjo que me sacudiu, de anjo viril… – que me obrigou a subir para uma cadeira e a dar palmas, a dar vivas, freneticamente, como todos os outros. (...) E foi então que senti, pela primeira vez, a beleza, o sentido poético da palavra chefe, quando este não é um tirano; foi então que percebi o erro, a doença da minha poesia ao compreender definitivamente que as nações só se prestigiam através da grandeza das suas figuras e nunca, nunca, através da pequenez dos seus figurantes. A imagem de Sidónio Pais, “viva estátua equestre”, como alguém lhe chamou, ainda me deslumbrou, me fascinou em diversas paradas e desfiles onde o seu perfil magnetizava sempre as multidões. E a ele devo esta certeza que nunca mais me abandonou: a poesia das nações, a sua poesia heroica, não está nas alfurjas, nas associações secretas, ou até nos parlamentos, mas nos seus chefes ou nos seus reis, naqueles que podem ser derrubados, mortos, mas deixam as suas pátrias bem erguidas, mais altas, nos próprios pedestais donde foram apeados, violentamente, pelas paixões dos homens (...)». (António Ferro, «Prefácio» in D. Manuel II, o Desventurado , Lisboa, 1954).

Ferro foi um dos precursores intelectuais dos ideais autoritários em Portugal, admirador declarado do fascismo e de Mussolini e responsável pela propaganda salazarista desde 1933, como diretor do Secretaria Nacional de Informação, situado no Palácio Foz, nos Restauradores.

De entre os cafés desta época refira-se também o Café Martinho da Arcada, no Terreiro do Paço, outra das referências da cultura lisboeta. Foi fundado em 1778 como o Café da Neve. Depois disso, teve vários nomes ( Casa de Café Italiana, Café do Comércio, Café dos Jacobinos ou Casa da Neve) consoante os proprietários, até que foi adquirido por Martinho Bartolomeu Rodrigues, em 1845 .

O Martinho da Arcada tem uma importante tradição literária como café de escritores, sendo Fernando Pessoa de entre eles o mais famoso. Foi também frequentado por outras personalidades como Henrique Lopes de Mendonça (autor da letra do Hino Nacional), Afonso Costa , Manuel da Arriaga , Bernardino Machado , França Borges , Cesário Verde , António Botto , Augusto Ferreira Gomes , António Ferro , Almada Negreiros e o Almirante Gago Coutinho, por exemplo.

Como local de tertúlias lisboetas merece destaque, igualmente, o Café Royal , no Cais do Sodré. Nasceu em 1905 e encerrou em 1959. Foi frequentado por surrealistas e antes deles, por Columbano Bordalo Pinheiro, Camilo Pessanha, Gago Coutinho, Reinaldo Ferreira (o Repórter X) e outros intelectuais.

De referir também o Café Chic , nos Restauradores, que servia ceias até altas horas da noite e era uma espécie de escritório de jornalistas e atores. Encerrou nos anos 60 do século XX e no seu local encontra-se hoje a Loja do Cidadão.

No Porto, de entre os seus Cafés destaca-se o Majestic, local ligado umbilicalmente à história desta cidade, quer pela ambiência cultural que o envolve, nomeadamente a tradição do café tertúlia, como também pela sua arquitetura em estilo Arte Nova .

Foi inaugurado a 17 de Dezembro de 1921 com o nome de Elite. Situa-se na Rua de Santa Catarina e esteve desde sempre associado à frequência de distintas personalidades das letras e das artes de diversas épocas, como Teixeira de Pascoaes , José Régio , António Nobre , o filósofo Leonardo Coimbra … Uma das personalidades que esteve presente na inauguração deste Café foi o piloto aviador Gago Coutinho . No ano seguinte mudaria o nome de Elite para Majestic. Posteriormente tornou-se local de convívio para os estudantes e professores da Escola de Belas Artes do Porto .

Na cidade de Coimbra merece lugar de destaque o Café de Santa Cruz, encostado à Igreja do mesmo nome, localizado na Praça 8 de Maio. Foi inaugurado em 1923, não obstante, este imóvel foi construído em 1530. É o mais antigo Café de Coimbra, local por onde passaram gerações de jovens estudantes e intelectuais. Hoje, continua a manter a tradição dos debates de ideias e de intervenção.

Desde que os cafés nasceram um pouco por toda a Europa a partir do século XVII, que os regimes políticos os mantêm debaixo de olho. O puritanismo, religioso ou laico, sempre estigmatizou os cafés, como locais de indolência, maledicência e perdição, em oposição ao trabalho, à família e à igreja.

A «Intriga de Café», a «conversa de café», os «intelectuais de café», os «políticos de café», e por aí fora, constituem curiosas expressões depreciativas acerca de um lugar onde, desde há séculos se debate a literatura, a pintura e outras expressões artísticas, para além do debate sobre política.

Em tempos de opressão e ditaduras, a mesa do café foi durante séculos um lugar de liberdade malquisto pelos defensores da ordem vigente.

Pedro Pereira

(continua no próximo número)

 

 

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