A FAMILIA (7)
24-03-2017 - Henrique Pratas
A família sindiásmica, demasiado débil e instável por si mesma para fazer sentir a necessidade ou simplesmente o desejo de um lar particular, não suprime, em absoluto, o lar comunista que nos apresenta a época precedente. Mas lar comunista significa predomínio da mulher na casa; tal como o reconhecimento exclusivo de uma mãe própria, na impossibilidade de conhecer com certeza o verdadeiro pai; significa alto apreço pelas mulheres, isto é, pelas mães. Uma das ideias mais absurdas que nos transmitiu a filosofia do século XVIII é a de que na origem da sociedade a mulher foi escrava do homem. Entre todos os selvagens e em todas as tribos que se encontram nas fases inferior, média e até (em parte) superior da barbárie, a mulher não só é livre como, também, muito considerada. Artur Wright, que foi durante muitos anos missionário entre os iroqueses-senekas, pode atestar qual e a situação da mulher, ainda no matrimónio sindiásmico:
"A respeito de suas famílias, na época em que ainda viviam nas antigas casas-grandes (domicílios comunistas de muitas famílias)... predominava sempre lá um clã (uma génese) e as mulheres arranjavam maridos em outros clãs (génese)... Habitualmente as mulheres mandavam na casa; as provisões eram comuns, mas — ai do pobre marido ou amante que fosse preguiçoso ou desajeitado demais para trazer sua parte ao fundo de provisões da comunidade! Por mais filhos ou objetos pessoais que tivesse na casa, podia, a qualquer momento, ver-se obrigado a arrumar a trouxa e sair porta afora. E era inútil tentar opor resistência, porque a casa se convertia para ele num inferno; não havia remédio senão o de voltar ao seu próprio clã (génese) ou, o que costumava acontecer com maior frequência, contrair novo matrimónio em outra. As mulheres constituíam a grande força dentro dos clãs (génese) e, mesmo, em todos os lugares. Elas não vacilavam, quando a ocasião exigia, em destituir um chefe e rebaixá-lo à condição de mero guerreiro."
A economia doméstica comunista, em que a maioria das mulheres, se não a totalidade, é de uma mesma génese, ao passo que os homens pertencem a outra génese diferentes, é a base efetiva daquela preponderância das mulheres que, nos tempos primitivos, esteve difundida por toda parte — fenómeno cujo descobrimento constitui o terceiro mérito de Bachofen. Posso acrescentar que os relatos dos viajantes e dos missionários acerca do trabalho excessivo com que se sobrecarregam as mulheres entre os selvagens e os bárbaros não estão, de modo algum, em contradição com o que acabo de dizer. A divisão do trabalho entre os dois sexos depende de outras causas que nada têm a ver com a posição da mulher na sociedade. Povos nos quais as mulheres se veem obrigadas a trabalhar muito mais do que lhes caberia, segundo nossa maneira de ver, têm frequentemente muito mais consideração real por elas que os nossos europeus. A senhora civilizada, cercada de aparentes homenagens, estranha a todo trabalho efetivo, tem uma posição social bem inferior à da mulher bárbara, que trabalha duramente, e, no seio do seu povo, vê-se respeitada como uma verdadeira dama (lady, frowa, frau = senhora) e o é de fato por sua própria posição.
Novas investigações acerca dos povos do noroeste e sobretudo do sul da América, que ainda se acham na fase superior do estado selvagem, deverão dizer-nos se o matrimónio sindiásmico substituiu ou não por completo hoje, na América, o matrimónio por grupos. Quanto aos sul-americanos, são referidos tão variados exemplos de licença sexual que se torna difícil admitir o desaparecimento completo do antigo matrimónio por grupos. Em todo caso, ainda não desapareceram todos os seus vestígios. Pelo menos, em quarenta tribos da América do Norte, o homem que se casa com a moca mais idosa tem direito a tomar igualmente como mulheres a todas as irmãs da mesma, logo que cheguem à idade própria. Isto é um vestígio da comunidade de maridos para todo um grupo de irmãs. Dos habitantes da península de Califórnia (fase superior do estado selvagem), conta Bancróft que têm certas festividades em que se reúnem várias "tribos" para praticar o intercurso sexual mais promíscuo. Com toda a evidência são génese, que, nessas festas, conservam uma vaga reminiscência do tempo em que as mulheres de uma génese tinham por maridos comuns todos os homens de outra, e reciprocamente. O mesmo costume impera ainda na Austrália. Em alguns povos, acontece que os anciãos, os chefes e os feiticeiros sacerdotes praticam, em proveito próprio, a comunidade de mulheres e monopolizam a maior parte delas; em compensação, porém, durante certas festas e grandes assembleias populares, são obrigados a admitir a antiga posse comum e a permitir que suas mulheres se divirtam com os homens jovens. Westermarck (págs. 28 e 29) dá uma série de exemplos de saturnais desse género, nas quais ressurge, por pouco tempo, a antiga liberdade de intercurso sexual: entre os hos, os santalas, os pandchas e os cotaros, na Índia, em alguns povos africanos, etc. Westermarck deduz, de maneira assaz estranha, que estes fatos não constituem restos do matrimónio por grupos — cuja existência ele nega — e sim restos do período do cio, que os homens primitivos tiveram em comum com os animais.
Chegamos ao quarto grande descobrimento de Bachofen: o da grande difusão da forma de transição do matrimónio por grupos ao matrimónio sindiásmico. Aquilo que Bachofen representa como uma penitência pela transgressão de antigos mandamentos dos deuses, uma penitência imposta à mulher para ela comprar seu direito à castidade, não passa, em resumo, de uma expressão mística do resgate mediante o qual a mulher se liberta da antiga comunidade de maridos e adquire para si o direito de não se entregar a mais de um homem. Esse resgate consiste em deixar-se possuir, durante um determinado período: as mulheres babilônicas estavam obrigadas a entregar-se uma vez por ano, no templo de Milita, outros povos da Ásia Menor enviavam suas filhas ao templo de Anaitis, onde, durante anos inteiros, elas deveriam praticar o amor livre com os favoritos que escolhessem, antes de lhes ser concedida permissão para casarem-se; em quase todos os povos asiáticos de entre o Mediterrâneo e o Ganges há práticas análogas, disfarçadas em costumes religiosos.
O sacrifício de expiação, que desempenha o papel do resgate, torna-se, com o tempo, cada vez mais ligeiro — como nota Bachofen:
"A oferenda, repetida a cada ano, cede lugar a um sacrifício feito uma única vez; ao heterismo das matronas, segue-se o das jovens solteiras; verifica-se a prática antes do matrimónio, ao invés de durante o mesmo; e em lugar de abandonar-se a todos, sem ter o direito de escolher, a mulher já não se entrega senão a certas pessoas." (Direito Materno, pág. XIX).
Em outros povos não existe esse disfarce religioso; entre alguns deles — os trácios, os celtas, etc, na antiguidade, em grande número de aborígenes da Índia, nos povos malaios, nos ilhéus da Oceânia e entre muitos índios americanos, hoje — as jovens gozam de maior liberdade sexual até contraírem matrimónio. Assim acontece, sobretudo, na América do Sul, conforme podem atestá-lo quantos hajam penetrado um pouco em seu interior. De uma rica família de origem índia, refere Agassiz (Viagem pelo Brasil, Boston, 1886, pág. 226) que, tendo conhecido a filha da casa, perguntou-lhe por seu pai, supondo que seria o marido de sua mãe, oficial do exército em campanha contra o Paraguai; mas a mãe lhe respondeu, com um sorriso:
"Não tem pai, é filha da fortuna".
"As mulheres índias ou mestiças falam sempre neste tom, sem considerar vergonhoso ou censurável, de seus filhos ilegítimos; e essa é a regra, ao passo que o contrário parece ser a exceção. Os filhos[... ], amiúde, conhecem apenas sua mãe, porque todos os cuidados e todas as responsabilidades recaem sobre ela; nada sabem a respeito do pai, nem parece possa ocorrer à mulher a ideia de que ela ou seus filhos tenham o direito de reclamar dele alguma coisa."
O que aqui parece assombroso ao homem civilizado é simplesmente a regra no matriarcado e no matrimónio por grupos.
Em outros povos, os amigos e parentes do noivo, ou os convidados à celebração das bodas, exercem, durante o casamento mesmo, o direito à noiva, por costume imemorial, e ao noivo só chega a vez por último, depois de todos; isso se dava nas ilhas Baleares e entre os augilas africanos, na antiguidade, e ocorre ainda hoje entre os báreas, na Abissínia. Há povos, ainda, em que um personagem oficial, chefe da tribo ou da génese, cacique, xamã, sacerdote ou príncipe, aquele que representa a coletividade, é quem exerce com a mulher que se casa o direito da primeira noite (jus primae noctis). Apesar de todos os esforços neorromânticos para contestá-lo, esse jus primae noctis continua existindo, em nossos dias, como uma relíquia do matrimónio por grupos, entre a maioria dos habitantes do território do Alasca (Bancroft; Tribos Nativas, I, pág. 81), entre os tanus do norte do México (op. cit., pág. 584) e entre outros povos; e existiu durante toda a Idade Média, pelo menos nos países de origem céltica, onde nasceu diretamente do matrimónio por grupos; em Aragão, por exemplo. Enquanto em Castela o camponês nunca foi servo, em Aragão reinou a servidão mais abjeta até a sentença ou édito arbitrai de Fernando, o Católico, em 1486, documento onde se diz:
"Julgamos e determinamos que os senhores (senyors, barões) supraditos tampouco poderão passar a primeira noite com a mulher que haja tomado um camponês, nem poderão, igualmente, durante a noite das núpcias, depois que a mulher se tenha deitado na cama, passar a perna por cima da cama ou da mulher, em sinal de sua soberania. Nem poderão os supraditos senhores servir-se das filhas ou filhos dos camponeses contra a vontade deles, com ou sem pagamento." (Citado, segundo o texto original em catalão, por Sugenheim. A Servidão, São Petersburgo, 1861).
Artigo parte 7
Continua na próxima semana
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