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A FAMILIA (3)

24-02-2017 - Henrique Pratas

Entretanto, o trecho de Espinas que citamos nos dá melhor ponto de apoio para investigação. A horda e a família, nos animais superiores, não são complementos recíprocos e sim fenômenos antagônicos. Espinas descreve bem de que modo o ciúme dos machos no período do cio relaxa ou suprime momentaneamente os laços sociais da horda.

"Onde a família está intimamente unida, não vemos formarem-se hordas, salvo raras exceções. Pelo contrário, as hordas constituem-se quase que naturalmente onde reinam a promiscuidade ou a poligamia... Para que surja a horda, é necessário que os laços familiares se tenham relaxado e o indivíduo tenha recobrado sua liberdade. É por isso que só raramente encontramos bandos organizados entre os pássaros... Por outro lado, é nos mamíferos que vamos encontrar sociedades mais ou menos organizadas, justamente porque o indivíduo neste caso não é absorvido pela família... Assim, pois, a consciência coletiva da horda não pode ter em sua origem um inimigo maior do que a consciência coletiva da família. Não hesitamos em dizê-lo: se se desenvolveu uma sociedade superior à família, isso foi devido somente ao fato de que a ela se incorporaram famílias profundamente alteradas, conquanto isso não exclua a possibilidade de que, precisamente por este motivo, aquelas famílias possam mais adiante reconstituir-se sob condições infinitamente mais favoráveis." (Espinas, cap. 1, citado por Giraud-Teulon em Origens do Matrimónio e da Família, 1884, págs. 518-520).

Como vemos, as sociedades animais têm certo valor para tirarmos conclusões concernentes às sociedades humanas, mas somente num sentido negativo. Pelo que é de nosso conhecimento, o vertebrado superior apenas conhece duas formas de família: a poligâmica e a monogâmica. Em ambos os casos só se admite um macho adulto, um marido. Os ciúmes do macho, a um só tempo laço e limite da família, opõem-na à horda; a horda, forma social mais elevada, torna-se impossível em certas ocasiões, e em outras, relaxa-se ou se dissolve durante o período do cio; na melhor das hipóteses, seu desenvolvimento vê-se contido pelos ciúmes dos machos. Isso é suficiente para provar que a família animal e a sociedade humana primitiva são coisas incompatíveis; que, os homens primitivos, na época em que lutavam por sair da animalidade, ou não tinham nenhuma noção de família ou, quando muito, conheciam uma forma não encontrada entre animais. Um animal tão sem meios de defesa como aquele que se estava tornando homem pôde sobreviver em pequeno número, inclusive numa situação de isolamento, em que a forma de sociabilidade mais evoluída era o casal, forma que Westermarck, baseando-se em informações de caçadores, atribui ao gorila e ao chipanzé. Mas, para sair da animalidade, para realizar o maior progresso que a natureza conhece, era preciso mais um elemento: substituir a falta de poder defensivo do homem isolado pela união de forças e pela ação comum da horda. Partindo das condições conhecidas em que vivem hoje os macacos antropomorfos, seria simplesmente inexplicável a passagem à humanidade; esses macacos dão-nos mais a impressão de linhas colaterais desviadas e em vias de extinguir-se, e que, no mínimo, se encontram em processo de decadência. Isso basta para se rechaçar todo paralelo entre suas formas de família e as do homem primitivo.

A tolerância recíproca entre os machos adultos e a ausência de ciúmes constituíram a primeira condição para que se pudessem formar esses grupos numerosos e estáveis, em cujo seio, unicamente, podia operar-se a transformação do animal em homem. E, com efeito, que encontramos como forma mais antiga e primitiva da família, cuja existência indubitável nos demonstra a História, e que ainda hoje podemos estudar em certos lugares? O matrimónio por grupos, a forma de casamento em que grupos inteiros de homens e grupos inteiros de mulheres pertencem-se mutuamente, deixando bem pouca margem para os ciúmes. Além disso, numa fase posterior de desenvolvimento, vamos nos deparar com a poliandria, forma excecional, que exclui, em medida ainda maior, os ciúmes, e que, por isso, é desconhecida entre os animais. Todavia, como as formas de matrimónio por grupos que conhecemos são acompanhadas de condições tão peculiarmente complicadas que nos indicam, necessariamente, a existência de formas anteriores mais simples de relações sexuais e assim, em última análise, um período de promiscuidade correspondente à passagem da animalidade à humanidade, — as referências aos matrimónios animais conduzem-nos, de novo, ao mesmo ponto de onde devíamos ter partido de uma vez para sempre.

Que significam relações sexuais sem entraves? Significa que não existiam os limites proibitivos vigentes hoje ou numa época anterior para essas relações. Já vimos caírem as barreiras dos ciúmes. Se algo pôde ser estabelecido irrefutavelmente, foi que o ciúme é um sentimento que se desenvolveu relativamente tarde. O mesmo acontece com a ideia de incesto. Não só na época primitiva irmão e irmã eram marido e mulher, como também, ainda hoje, em muitos povos é lícito o comércio sexual entre pais e filhos. Bancroft (As Raças Nativas dos Estados da Costa do Pacífico na América do Norte, 1875, tomo I) testemunha a existência dessas relações entre os kaviatos do Estreito de Behring, os kadiakos das cercanias do Alasca e os tinnehs do interior da América do Norte inglesa; Letourneau reuniu numerosos fatos idênticos entre os índios chipevas, os kukus do Chile, os caribes, os karens da Indochina; e isso deixando de lado o que contam os antigos gregos e romanos a respeito dos partos, dos persas, dos citas e dos hunos, etc. Antes da invenção do incesto (porque é uma invenção e das mais valiosas), o comércio sexual entre pais e filhos não podia ser mais repugnante que entre outras pessoas de gerações diferentes, coisa que ocorre em nossos dias até nos países mais beatos, sem produzir grande horror. Velhas "donzelas" de mais de setenta anos casam-se, se são bastante ricas, com jovens de uns trinta anos. Mas, se despojarmos as formas de família mais primitivas que conhecemos das concepções de incesto que lhes correspondem (conceções completamente diferentes das nossas e muitas vezes em contradição direta com elas), chegaremos a uma forma de relações carnais que só pode ser chamada da promiscuidade sexual, no sentido de que ainda não existiam as restrições impostas mais tarde pelo costume. Mas disso não se deduz, de modo algum, que na prática cotidiana imperasse inevitavelmente a promiscuidade. As uniões temporárias por pares não ficam excluídas, em absoluto, e ocorrem, na maioria dos casos, mesmo no matrimónio por grupos. E se Westermarck, o último a negar esse estado primitivo, dá o nome de matrimónio a todo caso em que os dois sexos convivem até o nascimento de um pimpolho, pode-se dizer que tal matrimónio podia muito bem verificar-se nas condições da promiscuidade sexual sem contradizê-la em nada, isto é, sem contradizer a inexistência de barreiras impostas pelo costume às relações sexuais. É verdade que Westermarck parte do ponto-de-vista de que "a promiscuidade supõe a supressão das inclinações individuais", de tal sorte que "sua forma por excelência é a prostituição". Parece-me, ao contrário, que será impossível formar a menor ideia das condições primitivas enquanto elas forem observadas através da janela de um lupanar. Voltaremos a falar desse assunto quando tratarmos do matrimónio por grupos.

Segundo Morgan, desse estado primitivo de promiscuidade, provavelmente bem cedo, formaram-se:

1. A família consanguínea, a primeira etapa da família. Nela, os grupos conjugais classificam-se por gerações: todos os avôs e avós, nos limites da família, são maridos e mulheres entre si; o mesmo sucede com seus filhos, quer dizer, com os pais e mães; os filhos destes, por sua vez, constituem o terceiro círculo de cônjuges comuns; e seus filhos, isto é, os bisnetos dos primeiros, o quarto círculo. Nessa forma de família, os ascendentes e descendentes, os pais e filhos, são os únicos que, reciprocamente, estão excluídos dos direitos e deveres (poderíamos dizer) do matrimónio. Irmãos e irmãs, primos e primas, em primeiro, segundo e restantes graus, são todos, entre si, irmãos e irmãs, e por isso mesmo maridos e mulheres uns dos outros. O vínculo de irmão e irmã pressupõe, por si, nesse período, a relação carnal mútua.

Exemplo típico de tal família seriam descendentes de um casal, em cada uma das cujas gerações sucessivas todos fossem entre si irmãos e irmãs e, por isso mesmo, maridos e mulheres uns dos outros.

A família consanguínea desapareceu. Nem mesmo os povos mais atrasados de que fala a história apresentam qualquer exemplo seguro dela. Mas o que nos obriga a reconhecer que ela deve ter existido é o sistema de parentesco havaiano, ainda vigente em toda a Polinésia, e que expressa graus de parentesco consanguíneo que só puderam surgir com essa forma de família; e somos levados à mesma conclusão por todo o desenvolvimento ulterior da família, que pressupõe essa forma como estágio preliminar necessário.

2. A família punaluana. Se o primeiro progresso na organização da família consistiu em excluir os pais e filhos das relações sexuais recíprocas, o segundo foi a exclusão dos irmãos. Esse progresso foi infinitamente mais importante que o primeiro e, também, mais difícil, dada a maior igualdade nas idades dos participantes. Foi ocorrendo pouco a pouco, provavelmente começando pela exclusão dos irmãos uterinos (isto é, irmãos por parte de mãe), a princípio em casos isolados e depois, gradativamente, como regra geral (no Havaí ainda havia exceções no presente século) e acabando pela proibição do matrimónio até entre irmãos colaterais (quer dizer, segundo nossos atuais nomes de parentesco, entre primos carnais, primos em segundo e terceiro graus). Segundo Morgan, esse progresso constitui "uma magnífica ilustração de como atua o princípio da seleção natural".

Artigo parte 3 em

Continua na próxima semana

 

 

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