O cherne pescado em nome de Deus
05-08-2016 - Estátua de Sal
“Sou um banqueiro a fazer o trabalho de Deus”. A afirmação foi proferida por Lloyd Blankfein, Presidente (CEO) do Goldman Sachs, e retrata a forma como o presidente do maior banco de investimento do mundo vê a sua missão. O Goldman, para muitos, uma espécie de governo sombra do capitalismo financeiro na era da globalização, serve-se da referência ao Divino e à materialização deste em religião – como sempre os poderosos fizeram ao longo da História -, para obter todo o tipo de poderes e bens terrenos pouco ou nada espirituais. Mas, Blankfein, esclareceu ainda melhor o seu pensamento sobre o que é o trabalho de Deus. Disse o personagem que a luta atual consiste numa guerrilha que se desenrola entre o capitalismo e o estado social dos regimes democráticos e que emnome de Deus, a vitória do capital sobre o social deve ser esmagadora e absoluta.
Para a execução da sua missão, apesar de divina, não confiam lá muito em milagres, mas muito mais nos homens que saem dos seus quadros para ocupar cargos de poder nos Governos e nas instituições supranacionais um pouco por todo o mundo, ou na transumância inversa, pautada pelo ingresso de ex-políticos na sua elite de dirigentes e de consultores. (1)
Em Portugal temos exemplos vários: Carlos Moedas veio do Goldman para o Governo e daí para a Comissão Europeia; António Borges, vice-presidente do Goldman, para consultor de Passos Coelho nas grandes privatizações; José Luís Arnaut dos círculos do poder dos Governos do PSD para o Goldman.
Mas, a cereja no topo do bolo, é a notícia de hoje que dá conta que Durão Barroso, também ele, vai ser consultor e presidente não executivo do Goldman. Eu diria que, se em tempos a Durão ficou colado o epíteto de O cherne, talvez fosse melhor mudar o apodo para A pescada, porque tal como a pescada, Durão antes de ser do Goldman hoje, já o era certamente enquanto presidia à Comissão Europeia.
E depois estranhamos a Comissão Europeia ser como é, tomar decisões que minam a coesão europeia, atacar países, discriminar países, não se percebendo a razão por que o faz, admitindo muitos de nós, ingenuamente, que ainda existe um projeto europeu que vale a pena defender e prosseguir e que tais decisões são incompreensíveis à luz dessa defesa.
Pois bem, sendo a Comissão Europeia e as restantes instituições minadas por dentro por estes submarinos infiltrados, como Durão, Moedas e outros, só há uma grelha de leitura possível para os objetivos que ela irá prosseguir a longo prazo, e que decorre dos fins últimos do Goldman e afins: obter a vitória total e absoluta do capitalismo financeiro global sobre o estado social dos regimes democráticos como enunciou, sem qualquer pudor, Blankfein. Usando tal algoritmo de leitura, tudo se torna de imediato percetível.
É também nesse quadro mais amplo que se deve descodificar a novela das sanções a Portugal, novela para a qual Barroso também contribuiu recentemente dizendo que as ditas sanções “dependem do que o Governo disser e fizer”. Uma ameaça velada em forma de aviso que, deve ser levada a sério, pois é feita seguramente em nome de Deus, e com as divindades não se brinca. E a razão é simples: as políticas implementadas e defendidas pelo atual Governo só podem desagradar ao Goldman e afins porque interrompem a destruição do estado social, e colocam o enfoque na redistribuição do rendimento em detrimento do suposto aumento da competitividade através da degradação salarial e da flexibilização do mercado de trabalho. Nada que seja coincidente com o que deve ser o trabalho de Deus.
Mas, o mais curioso é uma passagem do comunicado do Goldman saudando a contratação de Barroso: “A sua perspetiva, capacidade de avaliação e aconselhamento irão acrescentar muito valor ao conselho de administração da Goldman Sachs International, à Goldman Sachs, aos seus acionistas e trabalhadores”. Não tenho qualquer dúvida sobre isso. Mas, o que é o valor, como se cria e como é distribuído na atual fase do capitalismo? Deixo algumas reflexões para esse complexo debate:
- O modelo de concorrência, o mantra do mercado, que os economistas continuam a estudar e as universidades a ensinar, e que nunca existiu no seu estado puro em qualquer realidade social ao longo da História, ainda assim permite aos economistas produzir algumas toscas explicações do funcionamento das economias, senão a nível macroeconómico, pelo menos a nível microeconómico.
- O modelo da concorrência pressupõe, entre outras exigências a existência da perfeita transparência do mercado, o mesmo é dizer que todos os intervenientes no mercado têm, em simultâneo, o mesmo nível de informação sobre os preços e as quantidades. Claro que, tal nunca ocorreu, porque sempre houve agentes a saber mais que todos os outros, a deter informação privilegiada, estando numa posição dominante. Este problema de informação assimétrica, há muito conhecido dos economistas, levou inclusive os poderes regulatórios dos mercados a tipificar o chamado crime de inside trading, penalizando e criminalizando os agentes faltosos.
- Pois bem, o valor, que o comunicado do Goldman refere em relação às vantagens da contratação de Barroso, vem exatamente daí já que esta contratação materializa um crime de inside trading a céu aberto, às claras, e sem subterfúgios. Barroso irá levar para o Goldman, não só os contactos às pessoas certas dos lugares certos, mas toda a informação privilegiada sobre as economias da União Europeia, dossiers de privatizações, grandes empresas, financiamentos, projetos de investimento, etc.
- Ou seja, a ideia de que o capitalismo funciona com base no mercado e na concorrência, e que dessa forma se obtém um equilíbrio ótimo na utilização de recursos, apesar de há muito ter sido questionada ao nível teórico, fica no atual momento, com a vulgarização desta transumância de informadores para as grandes corporações definitivamente posta em causa.
- Mais interessante ainda: são os maiores defensores dos mercados livres, no que toca aos bens públicos e ao fator trabalho, os mais ativos destruidores dos mercados quando recorrem a estas contratações e expedientes que distorcem toda a concorrência a seu favor. São todos a favor dos mercados mas no fundo todos lutam tenazmente por ser monopolistas.
- Na atual fase do capitalismo, pautada pela globalização e pela crescente importância da distribuição das mercadorias e da negociação dos fatores de produção através de redes de informação cada vez mais globais e instantâneas, o valor tende a concentrar-se cada vez mais na mão daqueles que conseguem o controlo em antecipação da informação, mormente da que não é pública, em detrimento daqueles que o produzem, sejam trabalhadores sejam produtores.
- Assim sendo, e não ocorrendo uma reversão deste estado de coisas, a tendência para a queda do investimento em atividades produtivas da economia real, em benefício das atividades financeiras e especulativas irá continuar, originando uma situação que só poderá ser de decadência do próprio sistema, o que de alguma forma já está a verificar-se.
Mais que criticar as opções individuais dos Barrosos deste mundo – censuráveis certamente no plano da ética e da probidade -, convirá, contudo, refletir sobre as condições atuais de funcionamento das economias e dos regimes políticos, que permitem que eles sejam úteis aos que os compram ou alugam, sem que existam quadros legais e sancionatórios que tal impeçam.
Em nome de Deus , ao longo da História, sempre se cometeram as maiores barbaridades. E como a História se repete, esta é mais uma.
Estátua de Sal, 08/07/2016
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