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SOBRE O ACORDO ORTOGRÁFICO de 1990

18-03-2016 - Maria do Carmo Vieira

A ortografia é um fenómeno da cultura, e portanto um fenómeno espiritual.
O Estado nada tem com o espírito. O Estado não tem direito a compelir-me,
em matéria estranha ao Estado, a escrever uma ortografia que repugno […].

Fernando Pessoa 

«Minha pátria é a língua portuguesa», escreveu Fernando Pessoa, através do seu semi-heterónimo Bernardo Soares, no Livro do Desassossego. Dessa forma, expressou o poeta uma identidade, afectiva e cultural, revelada criativamente na sua obra escrita em língua portuguesa. Por isso, nesse mesmo texto, encontramos a preocupação na definição de «orthographia» (do grego orthos + graphos = grafia correcta) e na explicação da sua relevância cultural: « Sim porque a orthographia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-

-latina veste-a do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e raínha.» Será importante lembrar que foi ainda em defesa da palavra escrita, em defesa da ortografia, que em si guarda a história de uma herança greco-latina, tornando-se um fenómeno cultural, que Fernando Pessoa publicou, em 1934, a Mensagem, repudiando a reforma ortográfica de 1911 em que a etimologia foi selvática e irreversivelmente atingida.

Esta frase, já tão conhecida de todos, tem vindo a ser usada, descontextualizada e repetidamente, para defender o novo Acordo Ortográfico de 1990 (AO90),por parte de apoiantes, brasileiros e portugueses, adulterando conscientemente o seu significado, numa manifesta desonestidade intelectual. Com efeito, o desprezo evidenciado pela etimologia neste AO 90, bem como a defesa do critério anti-científico da «pronúncia» que se lhe sobrepõe, são disso prova flagrante. Vale a pena citar Fernando Pessoa a propósito da diferença entre «palavra escrita», «um elemento cultural» e a «falada, apenas social», continuando a sua reflexão: «O que é preciso, para se ser compreendido quando se fala, é, pronunciar bem; o que é preciso, para se ser compreendido quando se escreve, é grafar bem. São fenómenos distintos, pois que um é auditivo e o outro visual. […] A palavra escrita consegue escapar aos equívocos inevitáveis da palavra falada, como o igual som de coser (com agulha) e cozer (ao lume ) que o emprego do S e Z perfeitamente diferença na escrita.»(1)

Crendo-se «donos da língua», e dando continuidade a uma orgia de mudança, só pela mudança, que se pode verificar naavalancha de datas relativas a reformas, convenções e acordos ortográficos: 1911,  1920,   1931,   1943,   1945 (de registar que neste acordo «não se consentem grafias duplas ou facultativas»),1975,    1986,    1990, estes senhores empenharam-se, já em 1986, em destroçar a estabilidade da língua portuguesa e, consequentemente, o seu ensino. Com uma leveza surpreendente, que o desejo em voga de facilitar acompanhou, decretaram nova ortografia da língua portuguesa cujo processo de formação, muito naturalmente,se caracteriza por ser «lento e social», tendo demorado centenas de anos a estabilizar.Num instante, de um dia para o outro, foi decretado o absurdo AO 90, sem discussão, e de forma atabalhoada e sobranceira, na pura ilusão da «unificação ortográfica da língua portuguesa». Perguntar-se-á: como unir o que ao longo dos séculos foidivergindo, acentuando as diferenças entre o português europeu e o do Brasil, a nível fonético, morfológico, sintáctico e lexical?A unidade existente advém sim da partilha de uma história comum, no «plano da cultura e da política», que se aplica igualmente aos países africanos de expressão portuguesa. Neste campo, como em muitos outros, a desonestidade e também a ignorância e a falta de cultura imperaram, com a cumplicidade de governantes,de deputados e do ex-Presidente da República (veremos o que fará o próximo) que de forma arrogante e surpreendentemente ignoraram pareceres técnicos contrários, entre outros os da Comissão Nacional da Língua Portuguesa, da Direcção Geral do Ensino Básico e Secundário, do Departamento de Linguística Geral e Românica da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e da Associação Portuguesa de Linguística. Este último, entregue em 2005, só foi revelado ao público, em Abril de 2008, e pedia que fosse, e passamos a transcrever: «de imediato suspenso o processo em curso, até uma reavaliação, em termos de política geral, linguística, cultural e educativa, das vantagens e custos da entrada em vigor do Acordo Ortográfico de 1990».(2)

Porque este artigo se iniciou sob o signo de Fernando Pessoa, será no ortónimo e heterónimo que procuraremos exemplos expressivos da aberração que constitui este AO 90 e do caos que veio trazer ao ensino da Língua e da Literatura Portuguesas, matéria que será analisada, em continuação deste artigo, na próxima semana.

A terminar, darei conta da recolha de assinaturas que decorre para a realização de um referendo a propósito do AO 90 - https://referendoao90.wordpress.com/ - iniciativa que surgiu do Fórum «Pela Língua Portuguesa, diga NÃO ao Acordo Ortográfico», realizado a 14 de Abril de 2015, na Faculdade de Letras de Lisboa. São necessárias 75 mil assinaturas, logo, um grande esforço de todos os que não aceitam esta imposição. Para quem tem facebook, menciona-se ainda a existência do grupo «Cidadãos contra o Acordo Ortográfico de 1990».

Maria do Carmo Vieira

Lisboa, Março de 2016

1 - In A Língua Portuguesa, edição Luísa Medeiros: Lisboa, Assírio & Alvim, 1997.

2 - António Emiliano, O Fim da Ortografia. Lisboa, Guimarães Editora, 2008.

 

 

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