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Poder local em Timor-Leste – descentralizar ou desconcentrar?

27-02-2015 - Fernando Figueiredo

Há alguns anos a esta parte que o governo timorense vem discutindo a necessidade de realizar uma descentralização administrativa e modificar a forma como o governo local é conduzido no País. As linhas centrais a serem seguidas neste processo de descentralização datam já de 2008 e na ocasião, o Executivo expressou que os principais objetivos seriam o de proporcionar maiores oportunidades para a participação local democrática de todos os timorenses e promover uma oferta de serviços mais efectiva, eficiente e equitativa para o desenvolvimento social e económico do País. 5 anos depois, após um périplo governamental por todos os distritos e comunidades locais para debater esta temática na conclusão deste processo de esclarecimento realizou-se em Dili uma conferencia para discutir o modelo de descentralização e poder local que deve ser adoptado. Durante dois dias autoridades e personalidades nacionais em conjunto com representantes de Portugal, Cabo Verde, Austrália e Indonésia discutiram o assunto.

Na abertura do evento, Xanana Gusmão, então Primeiro-Ministro defendeu a necessidade de encontrar um modelo adequado às necessidades locais e a cultura do país, argumentando que “o modelo deve ser funcional e não burocrático, deve evitar duplicações entre Governo local e nacional”. Entre os convidados da conferência estiverem os representantes das autarquias portuguesas que assinaram em março de 2014 um protocolo de cooperação com as autoridades timorenses para ajudar na formação dos futuros funcionários municipais timorenses. O encontro serviu ainda para a assinatura de um protocolo de cooperação entre o ISCSP (Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas), a Universidade Nacional Timor Lorosa’e (UNTL) e a Secretaria de Estado da Descentralização Administrativa da República Democrática de Timor-Leste (SEDA-RDTL). O documento visava estabelecer a parceria para a realização de atividades de natureza académica, científica, técnica, pedagógica e cultural e principalmente promover a formação na área da Administração Local no País. Por fim, o Governo pretendia criar, ainda no ano passado, comissões em cada um dos 13 distritos para avaliar se eles possuem os requisitos mínimos para a criação dos municípios e preparar os processos eleitorais sendo que o Executivo prevê para este ano de 2015 a realização das primeiras eleições autárquicas e a criação de três a cinco municípios.

Curiosamente, a questão do poder local está rapidamente emergindo para se tornar uma das questões fundamentais da nossa organização como sociedade não só em Timor-Leste que se predispõe a dar os primeiros passos nesta matéria, como também nos países mais desenvolvidos e de onde provêm os conselheiros do Governo nesta troca de experiências. Referido como “local authority” em inglés, “communautés locales” em francês, ou ainda como “espaço local”, o poder local está no centro do conjunto de transformações que envolvem a descentralização, a desburocratização e a participação, bem como as chamadas novas “tecnologias urbanas”. Em resposta aos absurdos crescentes que encontramos na cidade ou na aldeia (suco em Timor-Leste), no contraste entre rural e urbano ou na enorme diferença entre a pobreza do interior e o consumismo desregrado de Dili, por exemplo, surge com grande força, nas últimas décadas, uma tendência das pessoas se organizarem, para tomar em mãos o destino do espaço que as cerca. Este “espaço local”, será o município, unidade básica de organização social, mas é também o bairro ou a área em que vivemos. E como é que se procede a esta racionalização do nosso espaço de vida? Como é que o cidadão timorense recupera esta dimensão da sua cidadania?

A realidade é que somos condicionados, desde nossa infância, a acreditar que as formas de organização do nosso quotidiano pertencem naturalmente a uma misteriosa esfera superior, o “Estado”, ou aos poderosos interesses da especulação imobiliária e aqui chegados, basta uma simples busca no Google sobre a experiência partilhada pelos contratados conselheiros do Governo ou o resultado actual dessa forma de organização politica nos seus países origem para conduzir os decisores timorenses a ponderarem maduramente esta solução e a dela recolherem apenas as boas práticas. O poder local, com os seus instrumentos básicos que são a participação comunitária e o planeamento descentralizado, constituem um mecanismo de ordenamento político e económico que já deu as suas provas, e é sem dúvida um grande recurso subutilizado no País.

O poder local está repleto de bons exemplos mas também das piores práticas de gestão que convêm evitar na cópia de modelos que são distintos das realidades culturais e sociais de Timor-Leste. A esse propósito recordo apenas por ser conhecida na imprensa portuguesa o exemplo do ex-autarca, autor da obra “Municípios em Timor-Leste – uma segunda independência”, que noutro livro a propagandear as obras feitas durante os mandatos deste autarca gastou por ajuste directo quase treze mil euros e deixou pesada herança de milhões de euros de divida pública ao seu sucessor. O relatório da auditoria da Inspecção-geral de Finanças (IGF) às contas do município à data de Julho de 2013 é arrasador para a gestão do ex-autarca, agora conselheiro do Governo de Timor-Leste neste processo. Este documento, refere que, entre 2009 e 2011, os orçamentos municipais foram “sistematicamente empolados” e que “foi violado sistematicamente o princípio do equilíbrio orçamental”, concluindo com isto que houve uma “gestão orçamental desequilibrada” que, em finais de 2011, representava um total de 38,1 milhões de euros de dívida. Certamente que não é este exemplo que os timorenses querem ver replicado no seu modelo de poder local.

São essencialmente dois os dilemas que hoje as sociedades enfrentam, a desigualdade social e a destruição ambiental. Até há pouco tempo nos contentávamos com o crescimento económico, acreditando que o resto seguiria. Hoje já não há dúvidas de que precisamos de mecanismos muito mais activos de intervenção organizada para enfrentar os desequilíbrios herdados, envolvendo todos os actores sociais – Estado, empresa e sociedade civil – na luta por uma sociedade economicamente viável, socialmente justa e ambientalmente sustentável. Esperar que a mão invisível do mercado resolva, inclusive com alguma ajuda do Estado, simplesmente não resolve. O dinheiro do petróleo ajuda mas é necessário que as comunidades locais disso sintam efeito. Muitos dos problemas exigirão soluções de nível nacional ou até global, mas é o que podemos fazer no nível local, onde as pessoas se podem organizar para gerar o que tem sido chamado singelamente de qualidade de vida.

Não pretendo aqui sugerir que tudo se resolve assim: o poder local é um instrumento de gestão poderoso, mas insuficiente. Mas é de bom senso pensar que ao fim e ao cabo uma sociedade que funciona tem de assegurar em cada local o convívio social equilibrado, saneamento adequado, serviços eficientes, riqueza cultural – enfim, uma forma civilizada de vida. Faz parte da nossa cultura achar que alguém “em cima” vai resolver os nossos problema mas nem tudo é global: a qualidade das nossas escolas, das nossas ruas, a riqueza cultural do distrito, o médico da família, boas infra-estruturas viárias, de desporto ou lazer, o urbanismo equilibrado – tudo isso depende também de organização participativa local.

A intervenção de instâncias centrais de governo, tendem a burocratizar o processo e a necessidade premente de descentralizar e de democratizar a sociedade timorense resulta dos problemas que tem ainda de enfrentar. Se o objetivo principal fosse o de criar aparências externas de país desenvolvido a centralização do poder chega para tal, mas o problema é o da dramática polarização entre quem tem tudo e quem nada possui e o drama ambiental nas cidades e na montanha e isso obriga a medidas muito concretas e pragmáticas.

Neste plano, é indiscutível que aproximar o poder de decisão e de controle sobre os processos de desenvolvimento, das pessoas que arcarão com o benefício ou o prejuízo, e que estão portanto diretamente interessadas nos resultados, constitui simplesmente boa política administrativa mas é preciso ter em atenção que os municípios actuais estão presos em arcabouços jurídicos que tornam a sua administração um verdadeiro pesadelo. A pretexto de existirem menos técnicos a nível local, imagina-se que os recursos não serão bem aplicados se a sua transferência não for cercada de uma selva de leis e regulamentos. A verdade é que quanto mais centralizada a decisão, mais técnicos existem, porém menor é o controle por parte da população. É certo que nada como o habitante local para saber onde há lama quando chove, onde o atendimento médico é insuficiente ou onde está o buraco perigoso na estrada e não há técnico nem computador que substitua este conhecimento. O essencial do problema é a democratização das decisões, para que possam corresponder às necessidades da população, e isto implica uma profunda descentralização.

Não há dúvida de que o clima político do País está mudando, que o mercado já não constitui um mecanismo suficiente para pôr ordem na economia, que a intervenção do Estado, seja através de planeamento ou diversos mecanismos de financiamento, é necessária, mas não responde à necessidade de implantação de milhares de iniciativas dispersas no país. E aqui chegados, importa então saber qual o melhor modelo a aplicar nesta fase do processo. Descentralizar ou desconcentrar?

Enquanto nos países desenvolvidos crescentemente o cidadão resolve os assuntos no próprio município, nos países mais pobres os responsáveis do município adoptam o sistema de peregrinação, viajando até a capital para cada autorização de financiamento, ou para qualquer assunto burocrático do cidadão, com todas as deformações no uso dos recursos que isto significa. Timor-Leste ainda não tem hoje vias de comunicação que permitam de forma célere e segura viajar do interior a Dili mas já tem uma cobertura de rede comunicações e internet que permitem aproximar os serviços do Estado às populações mais distantes.

Por outro lado o desafio de alterar a cultura instalada por força da tradição no processo de decisão da comunidade local e transportá-la para a dimensão dos municípios não se consegue por força de eleições democráticas ou por decreto regulamentar. Antes de descentralizar o Estado há que descentralizar a maturidade democrática e cívica e isso leva por vezes o espaço de uma geração. Criar por cópia o municipalismo pode no limite apenas levar a que o Estado atribua mais umas quantas “karetas” e alimente mais uns quantos quadros partidários sem que daí resulte evidente beneficio para as populações.

Sem desvalorizar do trabalho já realizado pelas entidades timorenses nesta matéria mas, não seria mais aconselhável nesta fase investir em meios de e-government levando os variados serviços do Estado até ao distrito? O Administrador de Distrito não poderia configurar parte desta solução? Será preferível descentralizar funções do Estado ou aproveitando da realidade já existente de uma forma natural do poder local, o chefe de suco, o liurai, o administrador de distrito desconcentrar essas mesmas funções, aproximando-os do cidadão, evitando que ainda que tudo se trate no município se decida depois em Dili? Ou porque não apostar em associações regionais de desenvolvimento que à luz da politica do Governo sejam responsáveis pela aplicação local dos recursos financeiros e técnicos?

Hoje há uma gama de instrumentos que podem ser utilizados, visando a formação de uma cultura de planeamento e de participação social: é uma forma talvez mais lenta, porventura, mas profunda, de assegurarmos a utilidade social dos recursos, e a autoridade do cidadão sobre a atividade económica que, afinal das contas, é o resultado do esforço de todos. Os timorenses são pacientes e muito resilientes, a história isso nos mostra, mas hoje estão cada vez menos dispostos a aceitar os erros que se praticam em nome da liberdade e da democracia. Agora que estão a construir a casa, que não a façam pelo telhado mas sim que se cimentem boas fundações que no futuro sustentem o edifício social de paz, desenvolvimento equilibrado e de grande qualidade de vida a que aspiram, vivam eles em Dili ou no espaço local mais interior deste País onde o “Sol em nascendo se vê primeiro”.

Fernando Figueiredo

 

 

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