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Memórias

14-11-2014 - Henrique Pratas

Em tempo de Outono, dia cinzento e de chuva traz-me à memória, cheiros e sabores que outrora respirei e guardei religiosamente.

Seria mais simples escrever sobre a economia, mas como toda a gente fala do que não sabe prefiro escrever de outras coisas que não estando ligadas diretamente à economia, têm influência significativa na mesma, escrevo-lhes sobre afetos e valores.

O dia de hoje traz-me à memória o cheiro a carqueja que os meus avós apanhavam quando estava seca no Verão e que traziam para casa para na altura de acender as lareiras o pudessem fazer sem grandes custas. A carqueja é uma planta aromática que nasce e cresce selvagem e que quando seca serve para muitas coisa entre elas a de atear o lume.

Nestes dias em que nas aldeias se começam a acender as lareiras os cheiros a carqueja, carolos do milho, sama e a madeira seca que era apanhada em tempo oportuno para servir de aquecimento e para outras utilizações, nomeadamente o pinho e de outras árvores de fruto que tinham que lhe cortar alguns ramos para que elas crescessem e dessem mais frutos no futuro. Essa madeira, esses ramos, eram guardadas em lugar seco para mais tarde serem utilizados.

Recordo-me de aminha avó colocar na lareira a trempe, sobre a qual colocava uma panela e da tenaz que servia para espalhar o lume, como se dizia porque como sabem quando se faz uma fogueira o lume fica muito concentrado e depois é necessário que se espalhem as brasas de forma homogénea para que a emissão de calor se faça dentro da mesma área com a mesma intensidade, Recordo-me também do abano, que servia para as chamas se espevitarem e se desenvolverem, até formarem uma fonte de calor homogénea.

A par disto traz-me também à memória uma sopa que adoro e que se fazia lentamente com o tempo necessário para que ficasse no ponto, era a chamada sopa de couve com feijão.

Na altura a abundância não era muita e muitas pessoas alimentavam-se apenas com uma sopa e algum conduto que havia.

Essa sopa que ainda adora, fazia utilizando os seguintes ingredientes, couve, feijão branco e batata cortada aos quadrados, a panela punha-se ao lume, com água, quando esta começava a ferver juntava-se, sal a gosto, feijão e batata, as couves entravam mais tarde pois tinha que ser previamente escaldadas em água a ferver para que quando fossem colocadas na panela já fossem mais macias e cozessem com mais rapidez e para que não ficassem tão ásperas quando fossem ser comidas, ficavam tenrinhas.

Desde miúdo assim que provei, gostei e não me esqueço do sabor que tinham, eram outros tempos em que as pessoas não tinham muito poder de compra mas utilizavam o que tinham à mão para se puderem alimentar convenientemente.

Recordo-me que esta sopa constituía na altura o principal alimento dos trabalhadores rurais, que com a sua força de trabalho amanhavam as terras como diziam na altura, muitos alimentavam-se desta forma, comendo um bocado de pão, acompanhado por uma sardinha, chicharro que era a única coisa que aparecia naquela altura naquelas aldeias

Comi muitas sopas com diferentes pessoas, porque sempre me dei com toda a gente, era tímido mas se insistiam, não gostava e já sabia que as pessoas levavam a mal, por isso muitas vezes os trabalhadores rurais partilharam comigo as suas refeições, não me arrependo, estou-lhes até grato, porque muitos daqueles que vão a grandes restaurantes e comem o que lhes colocam à frente não tiveram o privilégio de provar uma sopa de couve com feijão como eu o fiz, que tristes são estas pessoas que não sabem dar valor às coisas e que pensam que o que é muito sofisticado é que é bom, estão redondamente enganados, é nas coisas mais simples que se encontram os sabores e os requintes almejados por muitos mas só atingíveis por outros é preciso estar recetivo, disponível, ser humilde, ser aceite pela pessoas que hoje lamentavelmente já não estão entre nós, mas ficaram as suas memórias, é pena que a generalidade dos continuadores das mesmas gerações não tenham transportado os valores e princípios que os seus avós, pais tinham para os nossos dias, seriamos decerto todos mais ricos e viveríamos numa sociedade perfeitamente diferente para melhor, mas o consumismo, o ter, o poder, o fazer de conta daquilo que não se é tomaram conta da sua vida e muitos são aquilo que não são, onde é que estão os seus valores princípios, a solidariedade, o que quer que seja.

Não estou a defender que uma sociedade devia ficar estagnada o que escrevo é que a sociedade poderia e deveria ter crescido, transportando os valores e princípios que dignificam as pessoas e que são muitos e nada disso aconteceu venderam a alma ao diabo e estamos como estamos.

É nas coisas simples, naturais, que encontramos os verdadeiros cheiros e sabores que não se esquecem para o resto da vida e concomitantemente as pessoas que os fizeram ou nos entregaram, ficam para o resto da vida na nossa memória, quer queiramos quer não, a memória faz parte de um cidadão íntegro, quando não se tem a memória de nada não se sabe nada

Lisboa, 10 de novembro de 2014

Henrique Pratas

 

 

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