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COM AMOR DA ALFAMA DO SANTO ANTÓNIO

21-06-2024 - Pedro Pereira

A quadra festiva dos Santos Populares, invariavelmente agita o meu baú das recordações e por isso, ao tirar-lhe o pó sou assaltado pela nostalgia, o que é uma chatice, porque não sou um homem do passado, nem do futuro, tento, antes, ser um homem do presente. Um pouco sui generis é certo, uma vez que «vivo com um pé no céu e outro na terra», como dizia Teixeira de Pascoaes, um dos meus poetas favoritos.

Arribei a S. Tomé, nos altos de Alfama, nos anos cinquenta, vindo de Biarritz, em França, onde havia nascido e vivido até então. Um choque. Tudo tão saloio, tudo tão parado... - Mas com muita luz, muito branco, da cal que cobria as paredes das casas e ao largo, beijando Lisboa, o estuário do Tejo pejado de fragatas e varinos num vaivém trepidante entre as duas margens do rio.

O prédio onde vivia já não existe. Ficava defronte da Fundação Ricardo Espírito Santo, onde esta ainda hoje habita, num palácio fabuloso que em tempos foi dos vice-reis da Guiné.

Em lugar da casa onde morava, está hoje uma estátua naturalista de um imaginário (só na cabeça do escultor...) S. Vicente, padroeiro da cidade de Lisboa e da diocese do Algarve, cujo dia se celebra a 22 de Janeiro.

Uns trezentos metros mais abaixo, encastoada num beco do dédalo mourisco do bairro mais bonito de Lisboa, estava a morada onde habitavam os meus avós. É maior o quintal que a casa. Tem árvores de fruto e até nichos de azulejo do século XVII. O prédio, de três inquilinos, em tempos foi convento.

Depressa fiz amigos, como quase todos os jovens e o meu mundo fez-se entre o Castelo de S. Jorge, a Mouraria, a Graça e Alfama, onde se vivia de portas abertas porque as casas eram (e são) pequenas e as relações de vizinhança muito próximas e fraternas. Todos sabiam da vida de todos e de cada um e todos se preocupavam por igual com os do bairro.

As ruas eram lavadas à agulheta pelos serventes da Câmara, de manhã e à noite, o que fazia de Alfama um bairro limpo e airoso. Tinha operários, estivadores, fragateiros, varinas, e até uma rua muito antiga crismada de S. Pedro na Idade Média, que ainda ostenta o mesmo nome, mas já não tem a mesma função. Era a rua do mercado do peixe. Hoje, são boutiques, AL (alojamento local) e outras coisas mais finas e tal...

Em cada esquina havia uma taberna onde a desoras havia fado vadio. Eram verdadeiras “instituições”, a modos que clubes recreativos. Invariavelmente por detrás do balcão ou plantado numa parede em lugar bem visível destacava-se uma fotografia com um grupo excursionista, os sócios informais da tasca. Eram retratos bem ilustrativos, tirados num qualquer lugar de destino onde os excursionistas passaram um dia memorável. A alegria no rosto de cada um era bem visível, contagiante. Talvez para a ilustrar os da primeira fila do grupo ostentavam cada qual como se fora uma arma de prazer um garrafão de vinho.

Mais abaixo, no Cais do Jardim do Tabaco onde atracavam as fragatas, desde antes do romper da alva era grande a azáfama da carga e descarga das embarcações que faziam o transporte de mercadorias entre as duas margens do rio Tejo, mais a descarga do peixe que as varinas carregavam em canastras num equilíbrio prodigioso em cima da cabeça. Umas descalças, outras de tairocas de madeira, vestidas com saias sobrepostas e sobre elas um avental a rematar. Logo que carregavam a sardinha à cabeça, depois de passarem a prancha da fragata para o cais, encetavam uma correria desenfreada pelas ruas de Alfama e outros bairros apregoando: “Ó vivinha da Costa!”.

Havia muita rivalidade entre os do nosso bairro e os dos outros bairros; a Mouraria, o Castelo, a Madragoa, a Bica... Às vezes, por “dá cá aquela palha”, incendiavam-se os ânimos e havia incursões punitivas de grupos de jovens (ou bandos, como agora se chamam) entre bairros.

Normalmente, acabava tudo em bem ou nos calabouços do Governo Civil com arranhões, amolgadelas, cabeças partidas e outras minudências que tais.

Mas a época mais ansiada pelas pessoas do nosso bairro eram as festas dos Santos Populares. Toda a gente se começava a mobilizar uns meses antes. Os enfeites, os arquinhos, os balões, os tronos para o Stº António, montados em caixotes de sabão vazio, ou num pequeno banco, logo nos primeiros dias de Junho.

- Dá-me um tostãozinho para o Santo António! - Pedia a miudagem aos que não se conseguiam furtar (ou distraídos que iam) ao passarem frente aos altares por eles erguidos e ciosamente vigiados até ao final das festas. O dinheiro angariado era para comprar rolos de cordel, arame doce, papel de seda de várias cores para a decoração do beco elabora pelos adultos, de modo que a partir da véspera de Santo António e até ao São Pedro a animação era grande. Quase todos colaboravam, ou com trabalho de decoração, venda, ou com o fornecimento da electricidade para iluminar os arcos e balões.

Nas vésperas e nos dias dos Santos, bem como nos fins-de-semana que ficavam pelo meio, faziam-se arraiais com sardinha assada, arroz-doce, venda de vasos de manjericos e cravos aos visitantes. A receita dos peditórios, da venda das sardinhas, do arroz-doce, dos manjericos e dos cravos (verdadeiros ou de papel) dava para as despesas.

Depois, os «pequenos bairros», as freguesias, no coração de Alfama (S. Miguel, Santo Estêvão, S. Vicente...), com os seus coretos erguidos frente às respectivas igrejas votivas, esmeravam-se e competiam saudavelmente entre eles, engalanando e decorando o mais ricamente possível tudo quanto era parede, beco, rua... Um pormenor importante: em todos os coretos havia ao longo das noites em que decorriam as festas, uma banda de música ou uma charanga. Em volta, armavam-se os bailaricos com os do bairro e os forasteiros. Muitos magalas, marujos, sopeiras e raras eram as noites que não houvesse um ou outro desacato, invariavelmente, por via de cenas de ciúmes. Coisa pouca. Regra geral, todos os anos nessa quadra e na sequência de um – ou mais - bailaricos gerava-se guerra campal. Nunca soube a razão de origem de nenhuma, mas metia sempre como protagonistas os marujos, os magalas e as sopeiras, ou por via destas... As fivelas dos cintos dos magalas e dos marujos como eram de latão e pesavam que nem chumbo, serviam eficazmente como arma de guerra. Depois, vinham os cívicos de cassetete na mão e apito na boca. Levavam também para contar, até que chegavam polícias da Marinha e do Exército e ia tudo de cana, mais os civis que eram apanhados à unha no meio da balbúrdia. As sopeiras, essas, ainda mereciam pedidos de desculpas. Provavelmente é daqui que vem a expressão: «Arraial de porrada».

É evidente, que por todo o lado havia fogueiras para saltar por cima delas formulando um desejo secreto. No meio da pancadaria, quedas e tal, havia sempre quem ficasse chamuscado. Claro que, os vapores etílicos ajudavam ao desequilíbrio... Passada a quadra festiva, tudo voltava à «normalidade».

Não se pode agarrar o tempo e por isso, de nada adianta ficar expectante da vida na recordação do passado.

Recordo com particular ternura um episódio passado no período da quadra dos Santos Populares.

Assim, regressava de mais um dia de trabalho a minha casa, que havia sido da minha avó, que se situava mesmo no coração de Alfama, antes de ser incorporado no Exército.Na entrada do beco onde morava, um grupo de vizinhas rodeava Dona Genoveva, mulher de cinquenta e poucos anos, de cabelo apanhado ao alto, vestida com uma bata coçada de cor indefinida, calçada com umas peúgas que enfiava nuns tamancos de madeira, e que morava no 1º andar do número onze. Tinha o rosto decorado por uns novos «óculos escuros». Orlavam-lhe os olhos – e não só – enormes manchas azuladas a dar para o roxo, de sangue pisado e tapava a boca com a mão quando falava, porque ainda não se tinha habituado à perda de um dente da frente desde o dia anterior.

Encimava-lhe os lábios um bigode à ClarkGable, sobre o qual eu ouvia as vizinhas chamar-lhe buço. Percebi entre os murmúrios em surdina, palavras que iam da indignação a «coitadinha!».

Eis senão, quando virando a esquina da rua e entrando no beco, assomou-se junto do mulherio o marido que tinha por «nobre profissão» ser carteirista de dia e fadista à desgarrada nas noitadas das tascas de Alfama e de outros bairros.

Vinha apinocado com um fato preto às riscas brancas, de sapatos de verniz a condizer e peúgas igualmente brancas, gravata vermelhusca e no cocuruto, uma farta cabeleira negra aplainada com brilhantina, ou gel, como agora se diz. Uma das vizinhas, mais afoita, a Dona Georgina, varina com banca assente na rua de S. Pedro, perguntou-lhe:

- Oiça lá ó seu Raimundo, que raio é que aconteceu à sua mulher que coitadita até parece que foi escoicinhada por um burro?

- O Raimundo, esboçando uns esgares condoídos respondeu perante o silêncio das mulheres e as fungadelas da consorte:

- Sabe Ti Georgina, foi um azar do camandro o que aconteceu à minha senhora! - Foi isso mesmo. Ontem, ao fim do dia, mal entrei em casa, a coitadita, louca de alegria de me ver – sim, que ela só tem olhos para mim – veio pelo corredor fora a correr desde a cozinha, de braços abertos para me abraçar mostrando a cremalheira de risonha que estava. Acontece que tropeçou numa tábua solta do sobrado e zás… caiu com a cara nas minhas mãos, deu cabo do corta-relva e ficou com os olhos à Belenenses.

Alfama tem a Alma do tamanho do Mundo, que ao longo dos tempos viu os seus filhos partirem, cavalgando nas ondas dos Sete Mares para nas mais diversas paragens viverem e, ainda que por vezes desterrado algures dentro da sua pátria, sempre que podem regressam ao dédalo entrançado das suas vielas porque nelas se esconde o seu coração.

Pedro Pereira

 

 

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