Ludíbrio e a política europeia
24-05-2024 - Carlos Matos Gomes
Olhamos e vemos, escutamos e concluímos: fomos ludibriados. Associamos a palavra ludíbrio a engano. E é acertado, mas não explica o modo como fomos enganados. Conhecer a origem da palavra ludibrio ajuda a perceber o que é o engano. A que conheço, encontrei-a num livro que deveria ser de leitura obrigatória para nos defendermos das manobras de encantamento a que somos sujeitos, no livro A Servidão Voluntária, do pensador do século XVI Etienne de La Boétie (1530 -1566).
La Boétie relata que, além da violência directa, uma das estratégias dos tiranos é humilhar os súbditos, fazendo-os crer fracos e assim os corromper. O exemplo que utiliza é o da cidade de Sarde, capital da Lídia, uma região na zona ocidental da antiga Ásia Menor (Anatólia), onde estão hoje as províncias da Turquia ocidental de Uşak e Manisa.
Os seus moradores, cercados pelos exércitos do imperador persa Ciro II, fizeram saber que se insurgiam, que iriam resistir. Sem querer destruir a bela cidade, onde segundo a tradição foi cunhada a primeira moeda, Ciro mandou suspender o saque que os seus soldados estavam a realizar e optou por uma estratégia de aliciamento dos lídios, fez do rei Cresos seu conselheiro, mas proibiu aos lídios utilizar armas e determinou que se dedicassem ao canto e a dança. Incentivou a instalação na cidade de bordéis, tabernas e jogos públicos e, tendo comprado a dignidade dos lídios, proclamou uma ordenação de sujeição que os habitantes tiveram que acatar. Ciro terá ficado tão satisfeito com as suas medidas que desde então nunca mais foi preciso puxar da espada contra os lídios. Estes passaram a usufruir das distracções, do exercício lúdico, (os romanos chamaram ‘lidi’ e depois ‘ludi’ ao que chamamos passatempo) a troco de cederem os segredos de cunhar moeda e de entregarem o ouro. Foram ‘ludibriados’.
O que tem um texto do século XVI de tão atual que possa continuar a iluminar reflexões sobre a obediência na sociedade contemporânea, na Europa, no caso da aceitação das proclamações dos Estados Unidos sobre a cedência da sua soberania a troco da abdicação dos seus valores e princípios, da liberdade de os defender? A sua actualidade vem exactamente da aceitação mais ou menos consentida como nada há a fazer, do TINA (There is no alternative), da resignação ao servilismo, da subserviência que são o programa político da maioria dos candidatos a deputados em Bruxelas. Todos aceitam a versão americana sobre a Ucrânia e Gaza, sobre a necessidade de gastar milhões em armas americanas e até, na versão mais radical, de enviar europeus fardados para combater numa guerra que teve por madrinha uma funcionária dos serviços secretos americanos — Vitoria Nulland — que subiu a subsecretária de Estado do governo Biden e que, questionada sobre a posição da União Europeia quanto ao golpe que preparava com as desestabilizações tendo como ponto visível a Praça Maidan, em Kiev, afirmou: Quero que a União Europeia se foda!
É esta a política real da União Europeia. Apoiamos quem nos mandou ir àquela parte e somos ludibriados quando os candidatos nos dizem que querem ir para Bruxelas defender a nossa Liberdade e o nosso bem-estar. Somos ludibriados por aqueles que nos prometem casas e vão tentar sacar dinheiro para obras faraónicas, como o aeroporto! Somos ludibriados quando nos prometem uma Europa aberta ao mundo e a sua política é de confronto com a Rússia, a China, a África, a Índia, a América Latina. É assim com a política financeira do Banco Central Europeu, em que as taxas de juro servem os lucros dos bancos privados à custa dos cidadãos e em que o euro é uma submoeda do dólar e do BCE é uma sucursal da Reserva Federal dos EUA (FED). É assim com as vagas migratórias provocadas pela desestabilização no Médio Oriente na África subsariana. É assim com a desindustrialização europeia. Estamos como os lídios, a ser ludibriados, ou, mais do que isso: vigarizados!
Carlos Matos Gomes
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