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GAZA

10-05-2024 - Maria do Carmo Vieira

Yeats é um poeta e dramaturgo, irlandês (Dublin,1865 – Menton, Fran ça,1939), que muito prezo e cuja poesia revisito com assiduidade. Prémio Nobel da Literatura, em 1923, sobressaiu politicamente pelo seu nacionalismo, na defesa da liberdade da Irlanda, que o poder britânico amordaçou durante séculos, e ainda sem fim à vista na sua unidade geográfica.

Retenho, de cor, versos de um dos seus poemas, que muito me impressionaram pela força de uma inesperada violência. Com efeito, a propósito da angústia torturante que a passagem do Tempo lhe provoca, modificando-lhe o corpo e alertando-o para a velhice, que profundamente receia, Yeats escreveu, e perdoem-me a decisão de partilhar convosco o poema integral, mas ele é belíssimo e contém em si a vida autêntica, uma experiência que poderá ser ou tornar-se a de qualquer um:

As lamentações de um velho pensionista

Embora me abrigue da chuva

Sob uma árvore quebrada,

A minha cadeira era a mais próxima do fogo

Em todas as reuniões

Onde se falasse de amor ou política,

Antes de o Tempo me ter transfigurado.

 

Embora os jovens ergam de novo barricadas

Para uma conspiração

E desvairados tratantes gritem a sua vontade

Contra a humana tirania,

As minhas meditações pertencem ao tempo

Que me tem transfigurado.

 

Não há mulher que volte o rosto

Para uma árvore quebrada

E, todavia, as belezas que amei

Conservo-as na minha memória;

Cuspo no rosto do Tempo

Que me tem transfigurado.

Alguns leitores terão talvez idênticas recordações de infância, no que ao gesto de cuspir diz respeito. Presenciei-o várias vezes entre companheiros de brincadeira que por alguma razão se zangavam a valer, e arrepiei-me sempre com a intensidade que representava essa forma de mostrar o desagrado ou, de forma mais veemente, a raiva. Tenho nítido na memória o que vi e sempre pensei não ser capaz de imitar esse gesto.

Cuspo no rosto do Tempo / Que me tem transfigurado – são os dois versos que decorei e que expressivamente, como grito de desespero, terminam o poema. A força portentosa da metáfora e da imagem expõem de modo acentuado o mal-

-estar, físico e psíquico, do poeta que acumula num gesto não só toda a sua ira, o seu ódio, em relação ao agente da transfiguração, mas também a sua transbordante dor interior. No fundo, a impotência de intervir a seu favor, prisioneiro que é do Tempo intransponível.

Lembremos agora o que se tem passado, há longos meses na Palestina, mais especificamente em Gaza, norte e sul, tudo em «nome de uma legítima defesa» do governo israelita, que não confundo com os milhares de israelitas que se lhe opõem. Uma «legítima defesa» que se tem vindo a desenvolver perante a assistência complacente de muitos e que, perante todos, ninguém o poderá negar, se prolonga em violência sem fim, quase exclusivamente dirigida a civis, encurralados, famintos, sedentos, doentes, eternos mendigos e peregrinos sem santuário, a quem ninguém acode!

Revelam-se valas comuns, imagens de crianças com a pele mirrada de tanto sofrimento pela fome e pela sede e falta de cuidados médicos, gritos de desespero, mulheres grávidas abandonadas à sua sorte porque o hospital colapsou, recém-

-nascidos que morrem dias depois, homens baleados, pelo simples facto de procurarem comida, em estado de aflição máxima, ou a total impossibilidade de improvisar o que quer que seja para uma ínfima defesa da vida.

Tudo é SUPERLATIVO em GAZA, na DESUMANIDADE contemplada de fora! Mas eles aguentarão, porque já estão habituados. Assim pensam os dirigentes que apregoam de contínuo, em bondosos discursos, os seus valores democráticos e que repetem, espalhando até à náusea, exclusivamente entre os seus, o absurdo e até ridículo, god bless you! Um deus caseiro destinado ao grupo, que encontra expressões afins, noutras línguas, e que nunca tem em conta o Outro.

Em tempos tão confusos e tormentosos, a demagogia impera, e vemos Biden acusar de anti-semitismo os estudantes universitários norte-americanos que se têm vindo a insurgir contra a política americana, na sua desenfreada venda de armas (assim foi sempre!). E os Israelitas que se manifestam em Telavive e no mundo, serão eles próprios também anti-semitas? E terei sido eu, também anti-

-semita, quando em 2003, reagi veementemente contra o facto de se retirar o estudo da Segunda Guerra Mundial, do programa de Francês, do 12.º ano, porque os «coitadinhos dos alunos, o que queriam era paz?». Um acontecimento histórico pelo qual «os coitadinhos dos alunos», sem excepção, manifestavam supremo interesse, tendo constituído para muitos a primeira oportunidade de estudar e compreender o significado da ideologia hitleriana que tenta emergir de novo, e em força, em Portugal e no mundo.

Benjamin Netanyahu continua a afirmar, protegido pelo deus que o abençoa, no sofrimento e destruição que espalha, serem «as operações militares para continuar» e por isso decide a seu bel-prazer a suspensão da ajuda humanitária, advertindo igualmente os Palestinianos, em tragédia, interior e exterior, que «chegou a hora de evacuação.» E pergunta-se: Para onde? E pergunta-se ainda: Onde está a reacção veemente dos que, simulando recuar no seu apoio a Netanyahu, lhe telefonam, lhe escrevem, numa atitude, um pouco semelhante à dos que se referem «aos coitadinhos dos alunos»?

Perante tudo o que tenho vindo a saber, a ler, a ver e a ouvir, a propósito de Gaza, e impotente para minimizar a dor e o medo diários da população palestiniana, repeti mentalmente os versos que decorara de Yeats, não sendo o Tempo a causa de todos os males, mas estes homens, de geografias várias, que massacram ou apoiam cumplicemente o massacre, escrito em maiúscula e em superlativo. Faz parte da sua natureza maléfica!

O que pensava ser impossível em mim – o gesto de cuspir – aconteceu perante a situa ção de carnificina em GAZA, perpetrada por orgulhosos algozes que se mantêm indefinidamente activos e apoiados. Pela primeira vez, pude sentir e compreender interiormente o significado dessa reacção, e não me arrepiei.

Maria do Carmo Vieira,

Lisboa, 9 de Maio de 2024

 

 

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