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Agir sobre os diktats

12-04-2024 - Maria do Carmo Vieira

Ao nascermos, somos recebidos pelos mais velhos que cuidam de nós e nos educam, dedicando-nos atenção e preparando-nos para a entrada no mundo, um mundo no qual deveremos forçosamente agir. É perante esta realidade inquestionável que me oponho tanto a que se continue a atribuir à Escola o papel central de educar, não o distinguindo de instruir sua função primordial desde a Antiguidade. Na verdade, a educação pertence em primeiro lugar aos pais, assim como a instrução aos professores e como escreveu Hannah Arendt, «Não se pode educar sem ao mesmo tempo ensinar; e a educação sem ensino torna-se vazia […]. Mas pode-se facilmente ensinar sem educar, podendo-se continuar a aprender até ao fim dos seus dias sem nunca se ser, no entanto, educado.» Se tivermos em conta a própria etimologia dos verbos, a confirmação é visível. Vejamos: instruir do latim instruere tem como significado primeiro «elevar»; ensinar, do latim insignare, «pôr uma marca», enquanto que educar, do latim educare, aponta para «criar, alimentar, ter cuidados com, formar». Também o pintor e escritor Almeida Negreiros, da geração pessoana, na sua série de 26 desenhos, intitulada «Maternidade», traduziu criativamente a metáfora da libertação do «ninho» que pressupõe o acto de educar. Ao longos dos vários desenhos, assiste-se à gradual metamorfose da criança num pássaro, sob a atenção e o carinho da mãe, até que confiante no voo, se liberta, esvoaçando para longe, em forma de despedida e simultâneo agradecimento.

Compreendo cada vez melhor o intuito desta alteração do papel da Escola, porquanto reflexo dos contínuos e persistentes diktats da OCDE, junto dos vários governos, em estreita aliança com os «tubarões» do mundo, insaciáveis na sua ganância pelo lucro excessivo e rápido, explorando visivelmente quem para eles trabalha, seja a nível braçal (os mais desprotegidos) ou intelectual. O facto de não haver politicamente qualquer reacção crítica tem intensificado a selvajaria que caracteriza a globalização. Dir-se-á que é imparável, mas afinal onde entra a capacidade de agir sobre o mundo tão inerente ao ser humano? Devemos optar pela passividade e pelo olhar manso, assistindo ao desmoronar dos valores que herdámos e que os «tubarões» têm vindo a moldar às avessas, no desejo de criar um novo mundo? Queremos continuar a compor esse «admirável mundo novo»?

Aquando da Reforma de 2003, cujos novos programas recusei leccionar, optando pelo Ensino Nocturno, não atingido pelas novas alterações, contrariei precisamente uma das mudanças impostas que, a bem do não pensar e do alheamento face à Cultura, punha de lado, como desnecessária «e pura perda de tempo» a contextualização histórico-cultural, no estudo de um autor e da sua obra. Contextualizar um autor constitui, a meu ver, um momento assaz importante para a compreensão da obra em estudo, da sua visão do mundo e da própria vida, abrindo ainda as portas a outros intervenientes, contemporâneos do escritor. Um trabalho que implica tempo, e não perda de tempo, como, infelizmente, se disse, e enriquece culturalmente os alunos, favorecendo o acto de pensar e de sentir, no convívio com outras leituras, com outros exemplos de vida. É no sentido de vos demonstrar quão perversa era essa indicação, que lamentavelmente perdura, que vos dou conta da minha experiência, com alunos estudantes-trabalhadores.

Poderia dar inúmeros exemplos sobre o acréscimo cultural que advém do factor contextualização, mas escolhi Luís de Camões (1524-1580), um dos clássicos mais maltratados nos programas, no que diz respeito à sua lírica ou epopeia. E no entanto, o poeta humanista é quem nos representa, enquanto país e enquanto povo, a 10 de Junho, data da sua morte. Não é um guerreiro que se homenageia, como acontece em inúmeros países, no dia da sua nacionalidade, mas um poeta, consciente de que juntara à sua «longa experiência», «honesto estudo» e «engenho», «cousas que juntas se acham raramente», como, com orgulho, confessa ao rei D. Sebastião, no canto X de «Os Lusíadas». Ocorre-me perguntar-vos se se deram já conta de que estamos em ano de comemoração dos 500 anos do seu nascimento?

Regressando à experiência, focar-me-ei em duas vozes, referências na época camoniana pela sua consciência humanista: Erasmo de Roterdão (1469 - 1536) e Thomas More (1478-1535). Erasmo de Roterdão, monge agostiniano e teólogo, sobressaiu pela sua crítica veemente a uma Igreja que condenava o acto de pensar livremente, impondo comportamentos não ajustados à boa nova evangélica e mais em sintonia com um Deus vingativo e nada misericordioso. Daí que usasse a voz da loucura, no seu ensaio satírico, Elogio da Loucura (1501), para dizer verdades sem medo ou receio algum, e que dedicou a Thomas More, seu grande amigo e, como ele, fiel aos valores humanistas. Nesse ensaio, que Erasmo define como uma «brincadeira do seu espírito», acentua que as «distracções podem levar a coisas sérias, e o leitor, com um pouco de bom senso, delas pode tirar mais proveito do que das obras graves e pomposas de muitos autores». Eis um extracto que dei a ler e a analisar aos meus alunos: «O espírito do homem é feito de maneira que lhe agrada muito mais a mentira do que a verdade. Fazei a experiência: ide à igreja, quando aí estão a pregar. Se o pregador trata de assuntos sérios, o auditório dormita, boceja e enfada-se, mas se, de repente, o zurrador (perdão o pregador), como aliás é frequente, começa a contar uma história de comadres, toda a gente desperta e presta a maior das atenções.»

Em Utopia, ilha imaginária criada por Thomas More e cuja origem grega significa «lugar inexistente» (ou + tópos= não lugar), o autor põe em contraste duas sociedades, evidenciando o seu forte desejo de transformações sociais, na Inglaterra do século XVI. O narrador - Rafael Hitlodeu - descreve minuciosamente a geografia, a organização e a vida em «Utopia», não se sabe em que lugar do «Novo Mundo» situada. Numa dessas realidades, é curioso ler o que o narrador descreve sobre os hospitais: «Dentro do perímetro da cidade, um pouco fora das muralhas, existem quatro grandes hospitais, amplos e espaçosos […]. A sua amplidão tem como fim impedir que os doentes, por mais numeroso que sejam, não estejam demasiado amontoados, em condições desconfortáveis e incómodas; e também com o fim de poderem ser isolados dos restantes doentes que sofram de males contagiosos, para evitar o perigo a isso inerente. Os hospitais estão tão bem organizados e fornecidos de tudo o que é necessário para o restabelecimento dos doentes, os cuidados assíduos dos médicos mais hábeis são tão carinhosos, que, não sendo ninguém obrigado a utilizá-los contra sua vontade, não há ninguém, no entanto, que, em caso de doença, não prefira tratar-se no hospital a fazê-lo em sua própria casa.»

Considerar-se-á perda de tempo, levar os alunos a conhecer autores que os ajudarão a reflectir sobre a Condição Humana e a criar uma personalidade atenta à importância da Cultura ao longo da Vida? A OCDE responderá que sim, mas enquanto os cidadãos teimarem em não obedecer, poder-se-á evitar a progressão do contágio.

Maria do Carmo Vieira

 

 

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