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Não sejamos um carimbo de ninguém

15-03-2024 - Maria do Carmo Vieira

 

Os povos serão cultos na medida em que entre eles
crescer o número dos que se negam a aceitar
qualquer benefício dos que podem.

Agostinho da Silva (1906-1994)

 

Não confundo a grande maioria dos votantes do Chega de André Ventura, com ele próprio. À semelhança de outros «Venturas» do género, nacionais ou estrangeiros, a exclusividade endeusada é traço comum. Pude observar ao longo dos anos, antes e pós 25 de Abril, quão fácil é conduzir ou convencer pessoas ingénuas ou magoadas pela vida. Os «pastores» podem usar o nome de «bispos», obstinados criadores de seitas, ou usar um partido, transformado em seita, que, na maioria das vezes não tem como objectivo senão ludibriar para proveito próprio. E em tempo de endeusamento tecnológico, as mentiras são facilmente espalhadas e consolidadas o que beneficia superlativamente «bispos» e «senhores». São, à semelhança de «doutores da Lei e fariseus hipócritas», socorro-me do texto bíblico de Mateus do Novo Testamento, os que limpam «o exterior do copo e do prato, quando por dentro estão cheios de rapina e iniquidade!» ou os que se assemelham «a sepulcros caiados: formosos por fora, mas, por dentro, cheios de ossos de mortos e de toda a espécie de imundície!»

Tendo como tema histórico de interesse a segunda Guerra Mundial, muito tenho lido e visto, neste último caso, em documentários sobre a matéria, deles sobressaindo, para além da violência da linguagem nazi, estratégia convicta para espalhar o terror e simultaneamente desumanizar, os discursos de Hitler em que a expressão «nosso povo» está continuamente presente. Uma ideologia semelhante a uma religião, a uma seita em que impera o «bispo» ou o «senhor», chefes endeusados que à força de gritos, enrouquecidos e em intensivo crescendo, encenam a sua férrea vontade em mudar através de uma «limpeza», «perseguição» ou «aniquilação». São termos de contágio que o tempo não apaga e que põem a nu as semelhanças entre os que viveram, vivem e viverão para massacrar os Outros, tendo sabido e sabendo escolher o discurso que facilmente os captará. Tem-se, por vezes, a ingenuidade de acreditar que o seu tempo de actuação poderá ser breve, mas a História tem-nos também mostrado que quando uma corte se instala, e se arma de apoiantes sedentos de poder, é perita em defender acerrimamente os seus fabulosos lucros de «generosidade», ao mesmo tempo que impõe um ambiente em que respirar é difícil. Os exemplos pululam à nossa volta, independentemente da sua geografia, e daí ser tão importante o acto de pensar, precisamente acto que os «bispos» e os «senhores» proíbem ou desaconselham porque, afinal, o povo tem de ser conduzido, tem de ser defendido e eles erguem-se como seu único salvador.

Constato que este perigo de querer salvar o povo também encontra adeptos entre muitos políticos democratas, talvez porque mantenham inconscientemente essa dicotomia que todo o populista preza e que, a meu ver, é intolerável. Acredito, no entanto, que a vigilância de muitos, «em defesa dos oprimidos» nos quais «se quebram as leis da humanidade», é sincera e aliada à dignidade que todo o ser humano exige. Foi nesse sentido que lembrei um escritor que conheci e continua a acompanhar-me como referência: Agostinho da Silva. Guardo com afecto os seus livros e convido-vos a ler o longo texto relativo «ao povo» que encontrarão em «Considerações e Outros Textos» (Assírio e Alvim, 1989) ou em «Citações e Pensamentos de Agostinho da Silva» (Casa das Letras, 2009).

Poder-se-á estranhar esta forma de artigo, em que predomina uma transcrição de texto, mas confesso que assim o desejei, congratulando-me previamente com o diálogo interior que a leitura poderá proporcionar:

[…] amam o povo, mas não desejariam, por interesse do próprio amor, que saísse do passo em que se encontra; deleitam-se com a ingenuidade da arte popular, com o imperfeito pensamento, as superstições e as lendas; vêem-se generosos e sensíveis quando se debruçam sobre a classe inferior e traduzem, na linguagem adamada, o que dela julgam perceber; é muito interessante o animal que examinam, mas que não tente o animal libertar-se da sua condição; estragaria todo o quadro […].

Há também os que adoram o povo e combatem por ele, mas pouco mais o julgam do que um meio; a meta a atingir é o domínio do mesmo povo por que parecem sacrificar-se; bate-lhes no peito um coração de altos senhores; se vieram parar a este lado da batalha foi porque os acidentes os repeliram das trincheiras opostas ou aqui viram maneira mais segura de satisfazer o vão desejo de mandar; nestes não encontraremos a frase preciosa, a afectada sensibilidade, o retoque literário; preferem o estilo de barricada; mas, como nos outros, é o som do oco tambor retórico o último que se ouve.

Só um grupo reduzido defende o povo e o deseja elevar sem ter por ele nenhuma espécie de paixão; […] tal atitude os impediria de ver as soluções claras e justas que acima de tudo procuram alcançar; e, finalmente, porque lhes é impossível permanecer em êxtase diante […] dos muitos defeitos que trazem consigo a dependência e a miséria em que sempre o têm colocado os que mais o cantam, o admiram e o protegem.

Interessa-nos o povo porque nele se apresenta um feixe de problemas que solicitam a inteligência e a vontade; um problema de justiça económica, um problema de justiça política, um problema de equilíbrio social, um problema de ascensão à cultura, e de ascensão o mais rápida possível da massa enorme até hoje abandonada e desprezada; logo que eles se resolvam, terminarão cuidados e interesses […].

Maria do Carmo Vieira

 

 

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