Edição online quinzenal
 
Sexta-feira 26 de Abril de 2024  
Notícias e Opinião do Concelho de Almeirim de Portugal e do Mundo
 

FOLGA-COLECTIVA

20-01-2023 - Maria do Carmo Vieira

Alma avara, nenhum lucro a sacia.
Publílio Siro, 85 a.C. - 43 a.C.

Foi numa conversa recente, com a minha filha mais velha, que tomei conhecimento da pavorosa história da rã que posta numa panela com água fria se vai acomodando ao aumento gradual da temperatura, não tentando saltar, e acabando por morrer quando aquela se torna excessiva. Uma história cuja interpretação metafórica se ajusta à vida em inúmeras situações, também elas pavorosas porquanto significam um adormecimento, uma aceitação do mal-estar, uma resignação conduzida pelo cansaço e/ou pelo medo, sob o olhar de alguém a que cinicamente podemos chamar de «cuidador». Talvez porque me incomode muitíssimo olhar para a exploração dos trabalhadores-estafetas e me incomodou muitíssimo a «Carta-aberta do Movimento de Estafetas ao Governo» -https://www.publico.pt/2022/10/27/opiniao/opiniao/carta-aberta-movimento-estafetas-governo-2025512 ) - tenha escolhido este tema para o presente artigo, perspectivando-o à luz da temível história.

É usual encontrar à porta de restaurantes ou circulando pelas ruas de Lisboa, de moto, de trotinete ou, penosamente, de bicicleta, «estafetas» que, à torreira do sol ou sob a chuva e vento impiedosos, a qualquer hora do dia ou da noite, carregam uma pesada mochila a entregar algures. Um exemplo flagrante do trabalho-escravo há quantos anos aceite pelo poder que finge interessar-se pela exploração tão intimamente associada à corrupção porque, na verdade, é um acto corrupto ganhar luxuosamente à custa de carenciar quem trabalha. Está na natureza das plataformas digitais (Uber Eats, Take Away, Bolt ou Glovo) apoiadas em intermediários, ignorar direitos, não reconhecendo como seus funcionários, motoristas ou estafetas, mas considerando natural sorver os lucros provenientes do seu trabalho sem que este seja devidamente remunerado. «Cuidadores» atentos, cuidam avidamente das suas fortunas, cuidando simultaneamente das vítimas, que desejam obedientes e humildemente servis, ou seja, incapazes de dar o «salto» para interromper de vez a exploração que os impede de viver condignamente.

A «Carta-aberta» a que acima me referi é, a meu ver, uma reacção de alguém que receia vir a perder lucros conseguidos à custa de um trabalho - escravo, um desnorte que estupidamente se alinhava com absurdos diversos e cuja intensidade deixa qualquer um estonteado. Na verdade, o texto é irreal: as vítimas voltam-se contra elas próprias, agradecendo ao carrasco o sortido de maus-tratos, ou por outras palavras, os estafetas afirmam expressamente suportar a ideia da inexistência de um contrato de trabalho ou de um horário definido ou de um salário mínimo ou de férias pagas ou de qualquer subsídio, como o de Natal, desejando continuar como até aqui, num perfeito exemplo do mundo às avessas. Se pensarmos que desde 2021 tem havido reacção (motoristas) a esta miserável exploração que testemunha igualmente quão lento é o poder na resolução de uma situação laboral gritante, e nos lembrarmos do dia de luta traduzido na magnífica designação de «Folga Colectiva», greve de estafetas que aconteceu a 2 de Abril de 2022, no Porto, exigindo, entre outras coisas, o aumento do valor por quilómetro, compreendemos o desvario de plataformas e intermediários.

Sabemos que a situação já foi debatida no parlamento, esperando-se novas regras que alterem o trabalho em plataformas, incidindo sobre contratos de trabalho e acidentes de trabalho, proibição de despedimento sem justa causa, dias de férias, salário mínimo, limites ao período de trabalho, bem como fiscalização do sector. Mas sabemos também, por experiência, que os empresários, na sua habitual estratégia de frequentar os políticos, não desistirão do lucro fácil e daí a imprescindibilidade de continuar a reagir até à concretização de uma regulação justa. O cansaço provocado por uma luta é digno, é o que nos assiste, nada tendo que ver com o cansaço que nos aniquila e nos leva à resignação sob o olhar atento de um bárbaro «cuidador».

A terminar, e perante a acção em força dos professores contra uma escola-

-depósito de alunos e um ministério que há longos anos tem «cuidado» de nós, adiando a resolução de problemas, desrespeitando os professores e os seus direitos e menosprezando a qualidade do Ensino, manifesto aos Colegas a minha total solidariedade e gratidão. Os alunos compreenderão seguramente esta luta que é igualmente por eles.

Maria do Carmo Vieira

 

 

 Voltar

Subscreva a nossa News Letter
CONTACTOS
COLABORADORES
 
Eduardo Milheiro
Coordenador
Marta Milheiro
   
© O Notícias de Almeirim : All rights reserved - Site optimizado para 1024x768 e Internet Explorer 5.0 ou superior e Google Chrome