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ISABEL, DE ARRESTO EM ARRESTO

20-01-2023 - Rui Verde

No passado dia 19 de Dezembro, o juiz conselheiro do Tribunal Supremo Daniel Modesto Geraldes decretou um arresto que atinge activos variados de Isabel dos Santos (Embalvidro, Upstar, Mstar e várias Unitel sediadas no estrangeiro), no valor de mil milhões de dólares. A decisão foi alvo de atenção mediática, com uma profusão de notícias.

Este arresto tem uma novidade legal da máxima importância, uma vez que é realizado de acordo com os novos mecanismos abrangentes criados pela Lei n.º 15/18, de 26 de Dezembro, a famosa Lei do Repatriamento Coercivo e Perda Alargada de Bens, que se seguiu à Lei do Repatriamento Voluntário. Esta norma é dura e tem mecanismos que baixam o patamar de exigência legal para decretar um arresto, tornando-o muito mais simples (as regras do Código do Processo Penal só se aplicam subsidiariamente, e não de forma principal). Não admira, por isso, o sucesso do pedido de arresto aqui em análise.

O objecto do processo refere-se a Isabel dos Santos, naturalmente, mas presumivelmente não a abrange só a ela. Os factos ligam-se à criação da Unitel, alegadamente com fundos da Sonangol que nunca foram ressarcidos à petrolífera, e à sequente obtenção na Unitel de empréstimos não reembolsados por Isabel dos Santos, que lhe serviram para fazer várias compras no estrangeiro. Descrito de modo simplista, a Sonangol terá financiado a totalidade da Unitel, entregando-a gratuitamente a Isabel dos Santos e seus sócios. De seguida, Isabel foi retirando dinheiro dos proveitos da Unitel para financiar as suas aquisições fora do país, nomeadamente, em Portugal, a Zon Multimédia, actual NOS. Note-se que esta informação não é nova, tendo já sido descrita por nós em 2017  e 2019, entre outros. 

Sendo os factos conhecidos e do domínio público desde há algum tempo e havendo suporte legal para a decisão de arresto do Tribunal Supremo, existem, contudo, alguns aspectos que é necessário realçar, para que, no final, todas estas iniciativas legais não se traduzam em pura perda de tempo e ineficácia. A justiça não se faz com títulos de imprensa, mas com decisões eficazes em tribunal. 

Em primeiro lugar, nos factos descritos pelo decreto, Isabel dos Santos não está só. Além de Leopoldino Nascimento, várias vezes na acusação é mencionado, de novo, Manuel Vicente. Aliás, a raiz funcional de toda a operação não está em Isabel dos Santos, mas em Manuel Vicente e na Sonangol. Naturalmente, o Ministério Público angolano não pode continuar a apresentar exaustivas descrições de comportamentos aparentemente criminais de Manuel Vicente e não fazer nada em relação a isso.  Por outro lado, a descrição factual omite António Van Dunem, que na altura da fundação da Unitel era secretário do Conselho de Ministros e ficou também sócio da Unitel na GENI, em parceria com Leopoldino do Nascimento. Esta espécie de escolha de cerejas não é admissível no ordenamento jurídico angolano. Como já se referiu antes, a haver crime, todos devem ser responsabilizados. Refira-se que não somos nós que aqui “inventamos” estes nomes. A decisão do tribunal menciona variadas vezes Manuel Vicente, Leopoldino do Nascimento, a GENI e até a mãe de Isabel, Tatiana Regan, a propósito da trama elaborada para supostamente desviar fundos públicos.

Em segundo lugar, não se percebe porque é que, passados três anos do primeiro arresto, os arrestos a Isabel dos Santos prosseguem mas não se passa a uma acusação criminal. O arresto é uma medida provisória que não resolve nada em definitivo. Ao avançar com sucessivos arrestos, com um patamar de exigência de prova entretanto menor,  depois de os factos estarem no domínio público há vários anos (pelo menos quatro), sem estabelecer uma acusação criminal, é um sinal de fraqueza ou insegurança do procurador-geral da República. Não tem sentido não trazer à liça os factos contra Isabel dos Santos, que até parecem consolidados, e manter esta espécie de leveza jurídica que não resolve a questão de fundo.

Aliás, do ponto de vista constitucional há o perigo de se considerar que a realização de arrestos sem contraditório prévio, aos quais não se seguem acções de fundo, viola o princípio da presunção de inocência (artigo 67.º, n.º 2 da Constituição): “Presume-se inocente todo o cidadão até ao trânsito em julgado da sentença de condenação.” Ademais, o recurso aos arrestos, sem mais acções, facilita a vitimização de Isabel dos Santos, que poderá sempre dizer, como aliás já disse, que não lhe foi dado o seu “day in court” (dia no tribunal), o direito a defender-se em audiência pública e contraditória das acusações que lhe são feitas. 

O arresto é uma medida que deve ter carácter excepcional e provisório e que ocorre, por regra, no início de um processo criminal. Não pode ser uma novela de vários capítulos.  

Nesta fase, o que faria sentido seria avançar para a acusação criminal e envolver todos os que tivessem de ser envolvidos. 

Enunciados estes dois pontos essenciais acerca da estratégia subjacente ao caso Isabel dos Santos, cumpre referir as dúvidas técnicas que foram tornadas públicas por alguns ilustres juristas, mas que não nos parecem determinantes. 

Alega-se que não se encontra o fundamento para propor o pedido de arresto no Tribunal Supremo. Os factos em relação a Isabel dos Santos dizem respeito à sua actuação privada enquanto dirigente da Unitel e não à sua qualidade de funcionária pública. Embora numa análise inicial esta alegação possa parecer lógica, só mediante um conhecimento mais profundo do processo será possível assumir uma posição sobre o tema, que tem demasiadas interpretações e contingências. 

Porém, mesmo se existisse essa incompetência do Tribunal Supremo, o processo seria remetido para tribunal inferior, não colocando em causa a sua substância. (cfr. artigo 28.º do Código do Processo Penal estabelecendo que declarada a incompetência de um tribunal, o processo é remetido ao tribunal competente, sem prejuízo de o tribunal declarado incompetente ordenar a prática de actos processuais considerados urgentes). Consequentemente, o tema não tem significação material efectiva.

Alguma perplexidade surge naquilo que diz respeito aos crimes imputados: peculato, tráfico de influências, participação económica em negócio e branqueamento de capitais. O certo é que, não sendo Isabel funcionária, não se lhe aplicariam alguns dos crimes, mas, porventura, outros surgiriam: burla, abuso de confiança, etc.; ou há mais arguidos neste processo que são/foram funcionários públicos ou esta tipificação criminal será modificada. No entanto, nesta fase processual, tal ainda não está definido. Como se sabe, em regra, o objecto do processo penal é fixado na acusação; até lá existe uma margem de manobra apreciável por parte das autoridades judiciárias. Nesse sentido, também aqui as questões levantadas pelos juristas ilustres não resolvem o fundo da matéria.

Uma nota final de perplexidade. Aparentemente, todas a recentes decisões “quentes” tomadas pelo Tribunal Supremo, designadamente a não concessão inicial de liberdade condicional a Augusto Tomás, o “arquivamento” do caso Higino Carneiro e agora esta são assinadas pelo juiz conselheiro Daniel Modesto Geraldes. Neste momento, não sabemos se isso se deve ao facto de ele ser o presidente da Câmara Criminal ou a algum capricho dos mecanismos de distribuição dos autos. O que parece é que está a surgir uma espécie de juiz português “Carlos Alexandre” em Angola, um juiz justiceiro que subscreve tendencialmente de forma automática as teses do Ministério Público. Gostávamos de ver outros juízes do Supremo a tomar este tipo de decisões, de forma a evitar o perigoso estrelato judicial. Quanto menos se conhecer um juiz, melhor será o seu desempenho.

Em conclusão, a estratégia provisória que tem sido adoptada em relação a Isabel dos Santos, deixando de lado o fundamental – a acusação criminal – pode tornar-se numa vitória de Pirro, de vitória em vitória até à derrota final.

Fonte: Maka Angola

 

 

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