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A PRIMEIRA REVISÃO DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

04-03-2022 - Rui Verde

O processo penal é o direito constitucional em acção. É pelas suas normas que se vê o quanto um país preza a liberdade e, sobretudo, é seguindo a marcha que ele impõe que se pode ir parar à prisão. Por isso, é sempre fundamental estar atento às mudanças e inovações que se dão no Código do Processo Penal (CPP).

O actual CPP entrou em vigor a 11 de Fevereiro de 2021, há cerca de 1 ano. Encontra-se agora em apreciação na Assembleia Nacional uma proposta da sua revisão com vista a tornar “justiça mais célere e garantir de forma mais efectiva os direitos dos arguidos e das vítimas”, lê-se no relatório de fundamentação enviado pelo poder executivo ao parlamento.

Portanto, o CPP está em processo de revisão passado um ano da sua vigência. Este facto merece um comentário inicial. Se é de louvar o cuidado dos poderes públicos em avaliarem eventuais deficiências de funcionamento do código e a necessidade da sua pronta correcção, tal não deixa de levantar uma preocupação metodológica importante. É possível que estejamos a seguir o mau exemplo de Portugal, cujo CPP de 1987 já foi revisto 45 vezes, criando uma desestabilizadora insegurança jurídica. Lembre-se que, embora a lei processual penal seja de aplicação imediata a todos os processos (artigo 4.º, n.º do CPP de Angola), tal não acontece, entre outros, no caso de agravamento da situação processual do arguido, em particular a diminuição dos seus direitos de defesa, onde perdura a lei antiga (artigo 4.º, n.º 2). Ora, isto cria desde logo alguma confusão, como aliás se viu na transição do velho Código nos grandes processos judiciais, como o de Carlos São Vicente, em que um dos temas que andaram em discussão foi a aplicação da lei mais favorável.

Teria sido mais adequado, provavelmente, aguardar por uma maior maturação do Código e da interpretação jurisprudencial, a não ser que existisse um lapso calamitoso.

Contudo, chegados até aqui, convém perceber o que está em discussão. As alterações propostas ao CPP não são significativas. Pretende-se mudar 22 artigos de um total de 604.

Os temas a modificar abrangem a possibilidade de interrogatórios subsequentes aos arguidos pelas polícias e interrogatórios preliminares pelo Ministério Público (MP), as notificações, o alargamento das opções para detenção fora de flagrante delito, a caução carcerária, o alargamento do arresto preventivo, o esclarecimento sobre o monopólio do MP na instauração do procedimento criminal e definição clara do seu papel, a determinação do juiz de garantias como única categoria de juiz pré-julgamento, a presença/ausência dos arguidos nos julgamentos e a rejeição da acusação pelo juiz.

Das várias alterações propostas, vamos debruçar-nos mais detalhadamente sobre três: a detenção fora de flagrante delito, o arresto preventivo e o juiz de garantias.

Adiantamos que, genericamente, discordamos da primeira (alargamento da detenção fora de flagrante delito) e concordamos com as seguintes (alargamento arresto preventivo e dualidade juiz de garantias/juiz de julgamento).

A detenção fora de flagrante delito – isto é, em linguagem comum, a situação em que a polícia pode prender uma pessoa que não esteja a cometer um crime naquele momento – ocorre, de acordo com o actual artigo 254.º, n.º 1 do CPP quando o MP tiver razões fundamentadas para crer que a pessoa a deter não se apresentaria voluntária e espontaneamente perante a autoridade judiciária no prazo que lhe fosse fixado. Além disso, as polícias também podem deter alguém quando estejam perante um crime doloso e punível com pena de prisão superior, no seu limite máximo, a 3 anos, havendo fortes indícios com fundamento bastante para crer que a pessoa a deter se prepara para fugir à acção da justiça; e não sendo ser possível, considerada a urgência e o perigo na demora, esperar pela intervenção do magistrado competente.

Pretende-se, agora, introduzir a possibilidade de realizar essas detenções quando se verifique, em concreto, alguma das situações previstas nas alíneas a) a c), do n.º 1 do artigo 263.º, significando isto que passa a ser possível a detenção nos mesmos termos que se aplica qualquer medida de coacção. Em casos de fuga ou perigo de fuga, de perigo real de perturbação da instrução do processo e de perigo da continuação da actividade criminosa ou de perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas, pode ser ordenada a imediata detenção de alguém.

É excessivo. É sabido que a jurisprudência de admissibilidade da aplicação de medidas de coacção é bastante permissiva. Com esta alteração, abre-se uma janela demasiado alargada para a detenção. Note-se que não se está a falar de prender uma pessoa quando está a cometer um crime. Isso é normal que aconteça. Estamos na situação em que a pessoa não está a cometer crime e, mesmo assim, pode ser presa imediatamente sem qualquer ordem prévia de juiz. Definitivamente, não defendemos essa opção, até porque a lei já continha motivos suficientemente alargados para se proceder a detenções.

Além dos motivos invocados, ainda passará a existir motivo para detenção fora de flagrante delito se tal se mostrar imprescindível para a protecção da vítima. 

Já quanto ao alargamento do arresto preventivo, subscrevemos por inteiro a opção agora tomada. A anterior norma não tinha sentido funcional e deixava demasiado em aberto. Nos termos do artigo 268.º, n. º1, o juiz poderia decretar arresto preventivo dos bens do arguido desde que, fixada uma caução económica, este não a prestasse no prazo de oito dias. Na prática, tornava-se difícil fazer um efectivo arresto preventivo de bens no âmbito de um processo-crime. Isto quer dizer que os “congelamentos” de bens nas fases iniciais dos processos eram difíceis, criando uma série de dúvidas jurídicas e fragilidades legais. Com a alteração proposta, torna-se possível realizar um arresto independente da caução económica. O Estado pode avançar de imediato para garantir eventuais dívidas dos arguidos a serem pagas no final do processo. Isto é positivo.

Finalmente, uma palavra sobre a confusão que se podia estabelecer acerca da existência de várias categorias de juízes intervenientes no processo penal. Na actual redacção, parece que existem três categorias: o juiz das garantias, o juiz da instrução contraditória e o juiz de julgamento. Seriam categorias e juízes a mais, que o país não tem. Torna-se agora claro que a tipologia é dual. Há juízes de garantias que tratam das fases pré-julgamento, e juízes de julgamento que lidam com este. Assim é que está certo.

Temos, portanto, por um lado, uma medida que torna mais fácil prender pessoas e que não se afigura pertinente. Por outro, propõem-se duas medidas que tornam o processo mais expedito, uma permitindo o arresto preventivo autónomo da caução, outra uniformizando os juízes pré-julgamento. São duas medidas correctas. Esperemos que estas alterações não abram a porta a um torvelinho constante de mudanças na lei processual penal.

Fonte: Maka Angola

 

 

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