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Os Burros do Pai Natal

04-02-2022 - Cândido Ferreira

- O mundo da Arqueologia é tão fértil, que se dispensa a imaginação para narrar estórias curiosas. É o caso desta crónica que, curiosamente, reflete sobre a curiosidade humana. Ou, melhor, sobre “curiosas” falhas atuais, presentes na curiosidade humana…

Em 2021, alguns residentes na Matoeira, junto a Leiria, cansados dos rigores do confinamento, entenderam erguer um “parque temático” dedicado ao Natal. Depressa ampliado com outras recriações alusivas a tradições locais, até dois burros expuseram, “antiguidades” há muito extintas na região. Mais precisamente duas burras, e refugiadas de Miranda, se quisermos respeitar a verdade histórica e a igualdade de género…

“Obra-de-arte” asseada, a que com muito trabalho e imaginação toda a aldeia se dedicou e que mereceu inúmeras visitas. Vi construções similares no Escorial e em Toledo, mas, nessas “parvónias”, apenas por que os respetivos “ajuntamentos” teimaram em malbaratar os seus recursos humanos e dinheiros públicos, na recuperação do património histórico-cultural.

Espanholices que só podem ser consideradas como um tremendo erro de visão, perante a rasgada estratégia dos autarcas de Leiria que, acérrimos “protetores” de empresas viradas para o futuro, preferiram investir fortunas na contratação de artistas pimba e fogo-de-artifício.

E é mesmo assim que “isto” funciona em Portugal. Por mais que eu puxe pela cabeça dos “tugas”, poucos conseguem entender estas minhas manias. Pois se até a prole mais nova, espreguiçada em sofás e focada em canais de entretenimento e em “telelésios”, recusava visitar tal “aberração”. 

Mas não é verdade que todo-o-burro-come-palha, o que é preciso é saber dar-lha?…

– É pessoal, vocês não ouviram o que disseram no telejornal? Este ano, já não vai haver prendinhas para ninguém. Por causa do covid, as renas entraram em confinamento.  

A “novidade” troou como uma bomba, com alguns deles, já mais crescidotes, a duvidarem da “cantiga” do vovô.

– Ai, vocês não acreditam? O que talvez vos valha é que, para a garotada daqui, arranjaram uns burros para ajudar o Pai Natal. E até já os têm, no largo da Matoeira.

– Burros?!… Mas isso é lá coisa que exista… – Duvidou, e muito justamente, um dos mais pequenotes – estás a mentir, vovô.

– Vamos lá e logo vemos. É preciso cuidado com a televisão, que mente muito, mas olhem que, desta vez, cheira-me que é mesmo verdade.

O “vovô” merece-lhes alguma confiança, a bastante para logo se organizar uma excursão:

– Então… era peta? – Entrei triunfante, logo à chegada, perante o pasmo geral. 

Contra factos não há argumentos e toda a minha “cambada” por ali ficou, embasbacada, a satisfazer a sua natural curiosidade. Igual à das burras que, do outro lado da cerca, se deliciaram com algumas sobras de bolo-rei, que pão de ló não havia…

Vem esta historieta a propósito de um artefacto arqueológico, exposto por mim numa crónica intitulada A primeira Miss Portugal da nossa História” :  uma escultura feminina de marfim policromado, com sessenta centímetros de altura e quase sete quilos, alegadamente encontrada em Almeirim, no século XIX, e que mereceu dezenas de partilhas e milhares de visualizações, em Portugal.

Esquecida no sótão de uma família em declínio, aquela “Dama de Almeirim”, como logo designei a peça por analogia com outras em destaque em vários museus de Espanha, terá até sido alvo do ingénuo “ataque” de alguns herdeiros, que dispersaram entre si várias peças soltas.    

Desde sempre estimulado por todos os saberes, e perante aquela portentosa imagem, ganhei imediata noção de que tal artefacto supera qualquer outro da civilização castreja, entre os séculos I e III AC, onde parece encaixar-se. Se devidamente estudada e certificada, a “Dama de Almeirim” poderá mesmo ombrear com preciosidades da cultura europeia, como a Vénus de Milo ou a Gioconda.

Mais uma forte razão para logo me empenhar na busca de algumas pequenas peças, que desprezara um ano antes, mas que logo me fizeram recuar àquela imagem. E, dias depois, que satisfação senti ao comprovar que tinha razão e que que, numa “colagem” mais que perfeita, esses três fragmentos pertenciam mesmo àquele achado.   

Só que o “quebra-cabeças” ainda não me parecia completo, o que “obrigou” a novas “investigações”. E não é que, indo de boca em boca, um amigo topou num armário dessa mesma família, um pedestal de xisto ou basalto pintado a ouro, com dezoito quilos e vinte e cinco centímetros de largura e altura, onde “milimetricamente” se encaixou a base da estátua? E a nossa pesquisa ainda prossegue, porque faltarão alguns pequenos elementos decorativos. Se já nos saiu o “totoloto” duas vezes seguidas, por que não tentar uma terceira?

o pedestal

E é aqui, moral da história, que entra a questão da curiosidade que marca a natureza humana, de miúdos a graúdos. Cidadão interessado em desvendar todos os segredos do Universo, mas que sempre se firmou na ciência, acho estranho que, perante o anúncio deste objeto, no mínimo bizarro, só um ignoto arqueólogo espanhol tenha surgido a levantar questões sobre a falta de reação da arqueologia portuguesa, alheada de uma divindade de cornos tão retorcidos que, nem ele duvidou, só podia mesmo ter sido concebida por alguém pertencente a um povo que não se governa nem se deixa governar.

A “Dama de Almeirim” quase completa

Mas por aí ficou a nossa troca de ideias, porque ele aceitou facilmente as minhas explicações: deste lado da fronteira, em matéria de Arqueologia, as raposas ainda tomam conta do galinheiro; e, tal como acontecia em Espanha, até alguns anos, galo que fora do tom canta… faca na garganta.

Poderá esta “provocaçãozinha” natalícia, recheada de provas documentais, despertar a curiosidade de uma lusa Arqueologia que, de tão douta, se dá ao luxo de desprezar os “burros” deste mundo?

Composição de Carlos Narciso

 

 

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