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OS DILEMAS DO ORÇAMENTO SEM ESTRATÉGIA

29-10-2021 - José Manuel Neto Simões

Nenhum vento será favorável se não soubermos o Porto de destino” (Sêneca, Ano IV a-C).

A saída da crise económica e social, cuja gravidade ainda não foi plenamente revelada, dependerá da forma como enfrentarmos os desafios globais que se vislumbram. Com efeito, a incerteza gerada pelos efeitos das crises energética e logística e do risco de inflação podem afectar a recuperação do país.

Neste âmbito, a recuperação oferecida pelos fundos europeus, não se pode limitar à propaganda do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) para responder a um choque conjuntural. Mas tem de aportar uma ambição de transformação estrutural alavancada numa agenda reformista.

O Orçamento do Estado (OE), sendo o principal instrumento da governação, devia estar ancorado numa Estratégia Global do Estado - não formulada desde há décadas -, que devidamente consensualizada permitirá enquadrar a visão para o país e integrar as estratégias sectoriais, assegurando a continuidade das opções assumidas num imprescindível consenso do regime face aos desafios de Portugal.

Só assim será possível executar as reformas estruturais – sempre adiadas – como são o caso das funções de soberania, da Educação, da Saúde e da Administração Pública. E adoptar um novo modelo económico, cuja prioridade seja o aumento da produtividade e da competitividade, que promova o investimento nos sectores de bens transacionáveis, o aumento das exportações e actividades de valor acrescentado.

A proposta de OE foi apresentada num contexto de retoma económica. Contudo, o nível de ambição manifestado, tendo em conta os custos sociais gravíssimos resultantes da pandemia não é compaginável com a pulverização de medidas avulsas. E, algumas delas, apesar de sonantes têm um impacto económico muito restrito e uma expressão orçamental quase simbólica. Isto é, nada relevante para a superação dos problemas económicos e sociais.

Importa sinalizar, que o crescimento do PIB com o impacto do investimento previsto no PRR não será aquilo que se pensa. Cada euro vai transformar-se apenas em 1,4 euros (Jornal ECO) existindo a previsão, de que, com a actual política económica não se verificará a inversão do declínio do país. E sem incrementar o crescimento económico, não é viável o Estado social e uma melhor redistribuição.

Portugal, há 20 anos, que diverge da UE. E a pesar das projecções do PIB vamos crescer apenas 0,33% (2020 a 2023). Ou seja, pior que as duas décadas deste século que nos deram cerca de 0,5% de crescimento anual. A produção por habitante em 2018 era pior que em 1995 (Banco de Portugal).

Neste contexto, face à complexidade dos desafios globais e tendo em conta a débil economia do país, em vez da lógica redutora da negociação de retalho que transforma o OE, numa amálgama de medidas para o viabilizar a todo o custo, deviam ser feitas algumas opções com prioridades, no âmbito de uma política orçamental coerente com uma visão global. Ou seja, alterar, sem preconceitos, o perfil da economia.

A excessiva mediatização do debate orçamental, a dialética falaciosa e a habitual encenação com dramatização só servem para insuflar os egos e criar tensão política artificial, o que prejudica o processo negocial potenciando atropelos institucionais. E a chantagem da crise política é uma forma de esvaziar o sentido político do debate do OE, permitindo que todos os actores possam legitimar a sua posição e, sobretudo, as suas perdas.

Convém lembrar, que na elaboração do OE não foi respeitado o calendário e processos de decisão que têm sido displicentemente ignorados com reflexo na credibilidade do Governo. Não houve o necessário debate antes da proposta do OE ser fechada, porque foram feitos adiamentos sucessivos da discussão da Lei das Grandes Opções, sem respeitar os prazos previstos. Uma ilegalidade!

O debate que devia ser transparente, esclarecedor e construtivo, com respeito institucional não passa de um regateio das medidas com tacticismo e sem fio condutor, que não dignifica os actores envolvidos.

Além disso, desde 2020, não há decreto-lei de execução orçamental nem divulgação dos respectivos dados, o que revela falta de transparência e impede o escrutínio, pervertendo a responsabilidade política. Assim se justifica, que o OE possa apresentar aumentos de despesa e investimento que nunca virão a ser executados, mas satisfazem, artificialmente, os seus parceiros da geringonça desengonçada.

O dilema do ministro das Finanças, conhecido entre pares por “ministro do orçamento” (MEO), reside na escolha entre um OE aprovado com muitas cedências -que descaracterizam o programa do Governo - ou aumentar a contenção orçamental. Equação de difícil resolução.

Os interesses alheios ao interesse nacional levam o primeiro-ministro (PM) a fazer concessões, para lá do perímetro do orçamento – caso da legislação laboral-, revertendo ou adiando reformas que os seus parceiros da Concertação Social não aceitam. As medidas aprovadas agravam a produtividade e a competitividade. Ou seja, a falta de uma agenda reformista continua a transformar os orçamentos em propaganda e moeda de troca da sobrevivência do Governo!

Portugal foi dos países que menos gastou no combate à pandemia. A despesa adicional foi em média um terço das que foram efectuadas nos países da UE e metade da média do que se fez no mundo. É inexplicável a retracção orçamental do Governo face àquela tragédia o que vai ter forte impacto na grande divergência do país em relação aos nossos parceiros europeus. Aliás, no último ano em que o país não está submetido ao limite do défice e o Governo anuncia crescimento económico, é incompreensível propor no OE a correcção do “saldo estrutural” num momento decisivo da nossa vida colectiva.

Acresce que os estímulos à economia em 0,5% do PIB, sem incluir os investimentos dos fundos europeus, são irrelevantes. O PRR que é um instrumento extra passou a ser o verdadeiro OE numa economia que vai continuar frágil. Inquietante mistificação!

Pese embora se registem algumas medidas de apoio às famílias e economia, não se identifica qualquer ideia que represente uma redução tangível da carga fiscal. Os dois milhões de pobres e cerca de três milhões de pensionistas vão ficar na mesma. E não há incentivos robustos para as empresas como se não criassem emprego que parece ser monopólio do Estado. O OE é pura ficção.

Enquanto não houver uma profunda alteração da política fiscal, que estimule as empresas e o investimento, será impossível existir crescimento robusto, bem como reter e atrair talentos que precisamos para gerar valor acrescentado. Por outro lado, a marca deste OE, que tem como referência defesas ideológicas de sectores considerados estratégicos, crescimento anémico e dívida exponencial não pode ser a realidade que o país reclama.

Os cidadãos não devem ser colocados perante a inevitabilidade da ingovernabilidade. O que está de facto em causa é o risco do país ter de pagar uma factura pesada para o futuro em nome da estabilidade. A opção é problemática entre outro dilema: a ficção de um OE e o risco da instabilidade política em tempos de grande incerteza. O país ficará sempre a perder.

A irracionalidade parece estar a levar os actores políticos a dar um passo em falso. E acabarão por fazer exactamente o que dizem não desejar, cria-se uma expectativa que, mesmo podendo ser falsa, conduz ao comportamento que a torna verdadeira. Estamos claramente a mudar de ciclo político. E se o PM não quer levar o país para um novo pântano tem de alterar o seu estilo de liderança.

Num país que continua a ser adiado a crise política não se resolve com a aprovação do OE, sendo inevitável a crise do regime. A realidade vai acabar por se sobrepor à fantasia.

O autor não seguiu o acordo ortográfico.

José Manuel Neto Simões

Capitão-de-Fragata (Reformado)

 

 

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