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...mansos corriam os regatos…

09-07-2021 - Francisco Pereira

Viviam-se tempos de trevas, há cem anos. A guerra que fora a Grande, construída por sábios homens para acabar com todas as guerras futuras, ainda matava, inderectamente. Vivia-se o rescaldo dessa guerra, vivia-se igualmente o rescaldo da terrível “pneumónica” a que também chamaram “Gripe Espanhola”, entre uma e outra ocorrência, milhares de vidas tinham sido colhidas pela negra ceifeira, entre eles o meu bisavô, que tendo sobrevivido a guerra, sucumbira à terrível maleita, deixando a minha bisavó viúva, uma jovem mulher de vinte e quatro anos, com três filhos a cargo, numa altura de carestias várias, fome e desacatos, com governos que se sucediam e caiam quase como um dominó arrastado pela brisa, junte-se a isso os desacatos anarquistas, as bombas e as greves, mais as crianças que choravam, tal como a República que mal se sustinha, tanto que ainda era criança de colo.

Mas nada disso fez esmorecer a minha bisavó, Maria, era o nome dela, um nome tipicamente português, um nome que evoca tanto sacrifício, tanto sofrimento e tanta dor, o rio de Cronos foi correndo imparável, inexorável, sabendo que corre para o fim dos tempos, a bisavó, conseguiu por portas e travessas, arrostando os maiores perigos e desmandos criar os três fedelhos, sozinha, porque não quis mais homens junto de si, ou talvez os tenha tido à socapa, em encontros fortuitos, mas em casa nunca mais nenhum pisou excepto os filhos quando se fizeram homens.

À minha bisavó Maria doíam ainda, ela que casara, ainda uma menina, com os seus parcos dezasseis anos de existência de pobreza e miséria, como era daqueles tempos de antanho, prática comum, tempos que parecem ter sido há milhares de anos, mas foram apenas há meros cem anos, lapso temporal ao qual estou certo, que o mesmo Cronos, como é sabido senhor dessas temporalidades intemporais não deve dar a miníma importância, ele que do tempo deve ter outra noção, já para nós pobres mortais, escravos desse mesmo Tempo, cem anos parecem uma eternidade, mas não são.

À minha bisavó Maria doíam ainda as dores da violência, o bisavô, tinha mau vinho, piores fígados e muito fel, atributos que volta e meia lhe atraiçoavam o carácter e o discernimento, onde ao que parece pontuavam a bonomia e a pacatez, no entanto sempre que o néctar de Baco lhe toldava o espírito, o homem transmutava-se, os seus demónios interiores saiam tresmalhados e corriam soltos pelas charnecas, livres, livres para infernizar a vida daquela que era a sua esposa, e muito sofrera a minha bisavó Maria com a pancadaria, de uma vez quase perdera um olho, de outra o malvado algoz, partira-lhe um braço, quanto fora esse sofrimento, aferrolhado por detrás das portas de madeira velha puída, corroída pelo caruncho, alegoria de como corroída era aquela relação assimétrica de poder, em que um ser podia e se permitia tudo sobre outro ser.

A minha bisavó Maria representava nela só, um oceano imenso de violência onde tantas outras Marias, estavam representadas, mulheres que vogavam à deriva, sem terem tábua de salvação alguma a que se pudessem agarrar, sofriam caladas, invisíveis, pois que as vizinhas sofriam do mesmo mal, todas irmãs das funestas acções de homens maus, bêbados violentos e sem vergonha, ninguém metia a colher, porque o respeitinho era bonito e quem mandava era o homem. E passaram meros cem anos, quão diferente é hoje.

Infelizmente, pouco diferente está, a violência doméstica entre casais continua a ser uma das nossas mais tenebrosas características enquanto sociedade, passaram meros cem anos, a bisavó Maria, morreu há muito, já a não conheci, dela nem retratos tenho, só estas memórias que vieram pela voz de minha mãe, e que provam o quanto quase nada mudámos, as cabeças continuam tão ou mais doentes como as de há cem anos, continuamos a matar por posse, por ciúme, por insegurança, continuamos a agredir, a maltratar a desqualificar de mil maneiras e feitios, expondo filhos à desgraça, expondo-os a uma degradação que potencialmente criará mais maus adultos, gente incompleta, gente que roça a psicopatia e ou a sociopatia, gente perturbada que agride, e o pior é que este país, este Portugal que se diz modernaço, digital e tal, tanto maltrata as vítimas, um país que abandona as crianças, os velhos e as mulheres, à sua sorte, um país que falha em defender os mais frágeis, que falha vergonhosamente em defender os que sofrem, um pais permissivo, onde reina a impunidade, onde os criminosos têm todos os direitos, já as vítimas são atiradas para o oblívio, essa prateleira de arquivo onde a vida vale pouco e o sofrimento não vale mesmo nada.

E quando perguntavam à bisavó Maria, porque é que nunca mais tinha querido casar, ela sorria, já velhinha, de cabelo todo branco cuidadosamente penteado para trás enrolado em trança, que cobria com um lenço de ramagens que lhe enquadrava o rosto redondinho marcado pela passagem do tempo, ela dizia “à filha, os homes... olha, três por nove ruas inda vão apertados” e soltava sonoras gargalhadas rindo a bom rir, fazendo refulgir os olhos castanhos, mesmo aquele que ficara para sempre marcado, assim mansos corriam os regatos...

Francisco Pereira

 

 

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