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DEMOCRACIA PARTICIPATIVA E PODER AUTÁRQUICO

05-03-2021 - Francisco Garcia dos Santos

Na sequência do meu artigo publicado na passada semana relativo à tentativa de golpe de Estado ocorrida em Espanha em 1981, mais conhecido por “23-F”, e subsequente consolidação do regime monárquico constitucional e sistema democrático pluralista parlamentar, à data já sufragados positivamente pelos Espanhóis medianteaprovaçãoda Constituiçãode 1978 por referendo popular e votação universal e livre que legitimou democraticamenteas instituições do poder político espanhol e Don Juan Carlos de Borbón como Rei, ocorreu-me, no que a Portugal concerne, escrever umas linhas sobre aconsagração do princípio dademocracia participativa na Constituição da República Portuguesa de 1976.

Tal princípio encontra-seplasmado nas normas da al. c) do artigo 9º:

- compete ao “Estado defender a democracia política, assegurar e incentivar a participação democrática dos cidadãos na resolução dos problemas nacionais”;

do nº 1 do artigo 48º:

-incumbe o Estado assegurar que “todos os cidadãos têm o direito de tomar parte na vida política e na direcção dos assuntos públicos do país, directamente ou por intermédio de representantes livremente eleitos”;

do nº 1 do artigo 52º, que consagra que:

- “Todos os cidadãos têm direito de apresentar, individual ou colectivamente, aos órgãos de soberania, aos órgãos de governo próprio das regiões autónomas ou a quaisquer autoridades petiçõesbem assim o direito de serem informados, em prazo razoável, sobre o resultado da respectiva apreciação”;

e do artigo 109º que prescreve:

-“A participação directa e activa de homens e mulheres na vida política constitui condição e instrumento fundamental de consolidação do sistema democrático…”.

todas da nossa Lei Fundamental.

Sem pretender historiar, ainda que de forma sintética, a participação do povo na vida política e suas formas de auto-governo desde a fundação de Portugal como país eReino (Estado) independente e soberano em 5 de Outubro de 1143, o que ocorreumediante o“Tratado de Zamora” celebrado por Dom Afonso Henriques e seu primo Don Afonso VII de Leão, até nossos dias, para o “poder autárquico”, que é o que no caso interessa, refira-se apenas as múltiplas cartas de foral concedidas aos burgos, como então se designavam as localidades e suas circunscrições territoriais, depois designados deconcelhos, e hoje municípios, que permitiam aos seus habitantes auto-governarem-se e apenas dependerem do poder régio -forais esses cuja outorga se iniciou no reinadodo próprio Afonso Henriques no Séc. XII, prosseguindo nos dos seus sucessores, até para que os burgueses servissem de contra-poder ao dos senhores da alta nobreza e alto clero terratenentespolítica e militarmente poderosos, pois o povo dos burgos aforados constituía uma reserva de lealdade política e de poderio militar para opróprio Rei, pois, em caso de guerra civil ou contra terceiros, os mesmos tinham a obrigação de fornecer ao monarca homens de armas.

Esta é a origem do municipalismo característico e tradicional da organização político-administrativa portuguesa durante séculos, o qual, juntamente com a participação dos representantes do povo, designado por “Terceiro Estado” (o primeiro era a nobreza e o segundo o clero) nas Cortes (assembleias consultivas e, por vezes, até legislativas, do Rei e do Reino), poderá hoje dizer-seter sido o embrião da democracia participativa em Portugal, tal como, também na Idade Média, ocorreuna Europaem várias cidades-Estado republicanas mercantis da Liga Hanseática, inicialmente situadas no nordeste do ocidente europeu, respectivo norte-central e báltico, como, a título de meros exemplos, foramas portuárias deAmsterdão, Hamburgo, Danzig (Gdansk), etc., e na Península Itálica as Repúblicas de Veneza, Génova e Florença.

Com efeito, o poder político da burguesia mercantil e de auto-governo a nível estadual surge muito claro entre os Séc. XII e XIV d. C., mas com uma natureza maisaristocrática do que democrática, no sentido dos respectivos conceitos clássicos estabelecidos na segunda metade do Séc. IV a. C. pelo grande filósofo ateniense Aristóteles.

O que se verifica hoje em Portugal éo princípio dademocracia participativaser quase “letra morta”. Por um lado, porque as instituição do direitopetiçãoprevisto no artigo 52º e do referendo popular consignado no artigo 115º, estealiás extenso e pormenorizado, ambos da Constituição, muitíssimo pouco têm tido acolhimento junto do, ou promovidos pelo, poder político legislativo e executivo, nomeadamente a Assembleia da República, desde 25 de Abril de 1974 e vigência desta III República iniciada com a entrada em vigor da presente Lei Fundamental de 1976; por outro, porque só na primeira década do Séc. XXI foram permitidas candidaturas de listas de cidadãos independentes nas eleições para as autarquias locais, mas ainda assim com requisitos que dificultam a constituição das mesmas. Porém, esta possibilidade legal constituiu um pequeno avanço na prática da participação directa dos cidadãos na vida e na decisão política constitucionalmente previstas.

De facto, após tal permissão pela Lei Eleitoral para as Autarquias Locais, as listas e movimentos independentes de cidadãos a concorrerem e a vencerem eleições para os órgãos do poder localtêm vindo progressivamente a aumentar, atingindo já a segunda maior cidade e município do País, Porto, e um dos maiores da Área Metropolitana de Lisboa,Oeiras,assim como vários outros relevantes no interior do território continental português, como, a título de mero exemplo,é o caso do de Estremoz, no Alentejo.

Consta ter dito oúltimo Presidente do Conselho (Primeiro-Ministro) Prof. Marcello Caetano, anterior a 25 de Abril de 1974, que o modelo democrático liberal britânicoseria bom para Portugal, mas que “os Portugueses não (estavam) preparados para a democracia”.

Logo após o golpe de Estado de 25 de Abril de 1974, os militares do MFA (Movimento das Forças Armadas) exerceram, tutelaram e condicionaram o poder políticomediante “governos provisórios” emanados do mesmo; eleições de 1975 para a Assembleia Constitucional condicionadas e controladas pelos militares, que escolheram os partidos que puderam ou não concorrer às mesmas; sujeição dos deputados constituintes a umas quantas previsões no texto da Constituição exigidas pelos militares no acordo militar-civil denominado “Segundo Pacto MFA-Partidos”, como a consagração dum órgão de poder castrense não eleito, o Conselho da Revolução, vigilante da Assembleia da República e do Governo, com poderes de apreciar e decidir sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da legislação; e ainda o total poder legislativo e tutelar das Forças Armadas pelo do dito Conselho-tudo isto perdurando até à primeira revisão da Constituição de 1976, aliás nunca sujeita a referendo popular, ocorrida em 1982, quando o Conselho da Revolução foi extinto e substituído pelo Tribunal Constitucional, e a Instituição Militar foi submetida aos órgãos de soberania civis democraticamente eleitos.

O descrito no parágrafo anterior valeu a Portugal ser considerado por eminentes cientistas e sociólogos políticos mundiais uma ditadura militar, ainda que “disfarçada” de democracia, no período 1974 a 1982 -e com razão, diga-se!

De notar,pelo seu significado, ospormenores de o primeiro Presidente desta III República democrática e livremente eleito, General António Ramalho Eanes, no acto de tomada de posse em 1976 na Assembleia da República ter comparecidoenvergando a farda do Exército com as respectivas 5 estrelas de Comandante Supremo e efectivo das Forças Armadas, pois acumulava os poderes e funções de Presidente da República com as de Presidente do Conselho da Revolução e de Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas (nem Salazar teve tanto poder), mas já na tomada de posse após a sua reeleição em 1980 trajou à civil, e no retrato oficial na galeria de Presidentes da República existente no Palácio de Belém também está com trajo civil.

Servem estes últimos parágrafos para assinalar que, ao longo do período decorrido entre 1974 e 1982, parece terem os militares do MFA e do Conselho da Revolução entendido, tal como Marcello Caetano, que os Portugueses não estavam preparados para a democracia.

Ironias da História!

Voltando à questão da democracia participativa e poder autárquico, com a revisão da Lei Eleitoral para as Autarquias Locais pela Assembleia da República promovida e aprovada pelas bancadas parlamentares do PS e PSD em 2020, como tem sido noticiado nos últimos dias, o novo texto da mesma, na prática, não só dificulta muitíssimo que listas independentes e de movimentos de cidadãos concorram a eleições autárquicas, como, sobretudo, torna quase impossívelque estes consigam vencer uma eleiçãopara governarem livremente um município. Como é sabido, a Provedora de Justiça já requereu ao Tribunal Constitucional a apreciação da constitucionalidade de algumas normas introduzidas nessa Lei pela dita revisão, precisamente aquelas que agora obstaculizam a participação de listas de listas e movimentos de cidadãos independentes nas eleições autárquicas e possibilidade de governarem livremente os municípios em que sejam vencedores.

Ora, só quem acreditar no Pai Natal poderá não ver na presente redacção da referida Lei um encapotado propósito do “centrão dos interesses”, consubstanciado no PS e noPSD, de não perder o controlo caciquista e nepotista das autarquias locais, deixar de poder colocar boys e clientelas políticas nas estruturas político-administrativas municipais e respectivas empresas, e ainda não verfugir das suas mãos centenas ou milhares de milhões de Euros provenientes das endémicas, grandes e obscuras negociatas efectuadas no âmbito das câmaras municipais e de algumas juntas de freguesia dos grandes municípios de Portugal.

Concluindo:

A captura e sequestro do Estado e sua administração pública central, desconcentrada e periférica pela oligarquia partidocrática e cleptocrática há muito vigente, que exerce o poder no em benefício próprio e não no dos Portugueses, é uma insofismáveltriste e revoltante realidade.

Este é mais umcapítulo da novela que traduz de forma evidente a caducidade e podridão desta III República.

Francisco Garcia dos Santos

 

 

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