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A “Ataniça”
Estórias do tempo da outra senhora.

05-02-2021 - Francisco Pereira

Era uma menina pequena, de tez morena com longos cabelos negros entrançados, era franzina, sempre descalça que não havia dinheiro para sapatos, porque lá em casa eram muitas as bocas e os tostões eram precisos para o pão, por ser assim pequenita e franzina, os colegas de chamavam-lhe “Ataniça” que é como quem diz «enfezada», com muito bem sabemos os miúdos são seres muito cruéis entre si, a pequena “Ataniça” odiava aquela alcunha que a apoucava, que lhe trazia à lembrança a sua vida de miséria em que a malvada da fome não a largava, mais o frio que o seu vestidinho de chita, não afastava.

A Segunda Guerra Mundial acabara à apenas uma meia dúzia de anos, em Portugal o racionamento de bens continuava, nas terras da província a elite terra-tenente dominava as vidas, os campónios analfabetos vivem entre a fome e a miséria, como sempre tinham vivido, com a canga da quase servidão imposta por um Estado que se dizia Novo, mas que mais não era o mesmo que sempre fora, ranchos de filharada a chorar, roídos de fome, essa era a realidade bem conhecida da “Ataniça”, a mãe, era uma camponesa analfabeta que um infeliz acidente deixara viúva, vivia a braços com cinco filhos, o mais velho teria uns 10 anos, acabada a instrução primária, trabalhava já como pastor, a “Ataniça” que tinha uns oito anos era a segunda mais velha, tomava conta dos outros mais pequenos, enquanto a mãe ia trabalhar.

Aqueles tempos eram negros para os pobres, os desvalidos dessa sociedade que hoje nos parece estranha, a “Ataniça” faltava muitas vezes à escola, para ficar a cuidar dos irmãos, aos trambolhões lá fora andando até à “terceira classe” como se dizia, e um belo dia depois de faltar dois dias seguidos à escola, lá veio a Guarda buscar a mãe para ir ao Posto prestar declarações sobre o facto da pequena rapariga estar a faltar à escola, ninguém perguntava as razões disso acontecer, ninguém perguntava se tinham o que vestir ou o que comer, ninguém queria saber desses detalhes, ameaçada de multa, a mãe lavada em lágrimas comprometeu-se a mandar a rapariga à escola, assim no dia seguinte, a “Ataniça” lá seguiu para a escola com os irmãos ao colo e outros pela mão, caminhando com passinhos curtos subindo a ladeira até ao terrapleno onde ficava a escola.

A “Ataniça” frequentava a «terceira classe» da instrução primária, como então dizia a nomenclatura da época, mas os pequenos não a deixavam descansar, mesmo estando dentro da sala de aulas, tinha de se levantar do seu lugar para cuidar dos seus «xixis» e «cocós», exasperada com aquela situação que a ninguém aproveitava, a professora, arranjou uma solução, passava trabalhos de casa, depois a “Ataniça” iria à escola um ou dois dias por semana, para mostrar os trabalhos e para assistir às aulas desse dia, levando mais trabalhos, e foi assim que a pobre rapariga fez a terceira classe, não indo porém mais além, o seu percurso académico que ficou por ali, eram tempos negros para os pobres, naquele Portugal de um Estado que se dizia Novo, mas que era o que sempre fora.

Esta é apenas uma «estória» sobre aqueles tempos de miséria, pelos quais muitos hoje suspiram como se fossem os de uma qualquer «idade de ouro», perdida. É um pouco do percurso de uma criança que passou como se costuma dizer “as passas do Algarve” para crescer, entre a miséria e a fome, é um percurso que muitos ainda vivos conheceram bem, e que outros mais felizardos nunca conheceram, sobre a vida no Portugal profundo, o Portugal rural, dominado por elites corruptas, mudou pouco para os dias de hoje, onde o nepotismo oligarca e o clientelismo mafioso dominavam tudo, tal como hoje, incluindo os quase servos campónios, tudo supervisionado e abençoado pelo centralismo estatal, que na capital do país dominava todos os aspectos da vida diária do cidadão.

Não pretendo fazer juízos de valor, ao trazer este relato, nem tentar demonstrar, qualquer conflito entre um hipotético Bem contra outro igualmente hipotético Mal, o relato é só isso mesmo, um relato pessoal de alguém que passou aqueles dias, outros terão seguramente passado melhor e haverá até quem tenha passado ainda pior seguramente, não é um ajuste de contas ou um interesse pedagógico que me fez trazer este relato, é tão-somente mostrar, que a realidade se compõe de milhares ou quiçá de milhões de pequenas «estórias» de outras tantas “Ataniças”, que não tiveram capacidade de fazer ouvir a sua voz e nem haver alguém que pudesse contar a sua “estória” quantas vezes cheia de dramas, de miserabilismo, uma outra coisa que a “Ataniça” me disse e que me fez ainda mais questionar esses tempos e a realidade desse Estado que se dizia Novo, mas que afinal era tão velho e malfazejo como sempre fora, disse-me ela com ar grave.

- Sabes, não me esqueço, é do frio, e de nunca ter tido durante aqueles anos todos, sequer um par de alpercatas para calçar…

Francisco Pereira

 

 

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