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TRIBUNAL CONSTITUCIONAL DECLARA QUE PGR NÃO PODE ORDENAR ESCUTAS

15-01-2021 - Rui Verde

Desde 2017, têm surgido da penumbra em que os tribunais foram colocados uns raios de luz, sob a forma de decisões judiciais, que animam os espíritos mais pessimistas. Lembramo-nos da decisão corajosa sobre a liberdade de expressão da juíza Josina Falcão aquando da absolvição de Rafael Marques e Mariano Brás, ou, mais recentemente, das decisões cautelares cuidadosamente elaboradas relativamente a Isabel dos Santos.

Agora temos mais uma boa decisão, desta vez do Tribunal Constitucional, que declara a inconstitucionalidade da possibilidade de o Ministério Público (MP) e a Procuradoria-Geral da República (PGR) ordenarem, autorizarem e validarem escutas e gravações ambientais em locais privados e condicionados ou de acesso vedado. Nesse sentido, os artigos 6.º, n. º3, 8.º, n.º 3 e 17.º, 18.º, 19.º, 20.º, 21.º e 22.º da Lei n.º 11/20, de 23 de Abril (Lei da Identificação ou Localização Celular e da Vigilância Electrónica), foram tidos como inconstitucionais, logo inaplicáveis na ordem jurídica angolana.

Esta decisão foi tomada no âmbito de um processo de fiscalização sucessiva da Constituição promovida pela Ordem dos Advogados, que originou, a 15 de Dezembro de 2020, o acórdão n.º 658/2020, cuja relatora foi a juíza Maria da Conceição Sango (na foto). Por coincidência, esta é a juíza que está no centro das atenções devido a um outro projecto de acórdão que vazou para as redes sociais relativamente à chefia da Comissão Nacional Eleitoral e que está a gerar intensa controvérsia dentro e fora do tribunal.

Contudo, neste caso, a juíza Sango foi acompanhada por nove dos seus colegas. Na decisão judicial do Tribunal, apenas não surge a assinatura do juiz conselheiro Carlos Magalhães (que, segundo o site do Tribunal, está em efectividade de funções), embora não se saiba se discordou do acórdão ou se meramente não participou nas deliberações.

Maria da Conceição Sango parece ser uma juíza que pretende mudar a jurisprudência do Tribunal, apostando num activismo judicial a favor do Estado de Direito democrático. A juíza Sango foi eleita para o Tribunal Constitucional pela Assembleia Nacional. Licenciou-se em Direito em 1990, pela Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto; mais tarde em 1997, realizou um mestrado em Administração Pública, pela Escola Brasileira de Administração Pública – EBAP, da Fundação Getúlio Vargas, Brasil. Na sua carreira pré-judicial, destaca-se o facto de ter sido directora do Gabinete Jurídico do Secretariado do Conselho de Ministros de 1997 a 2002, bem como provedora de justiça-adjunta da República de Angola, em dois mandatos, tendo cumprido o primeiro de 2006 a 2010 e o segundo a partir de 2010, de onde saiu para o Tribunal Constitucional. Exerce também funções docentes na Universidade Agostinho Neto, na área do Direito Administrativo.

Trata-se obviamente de uma pessoa a acompanhar neste novo tempo de enfoque no poder judicial de Angola.

Em relação à decisão do Tribunal relatada por Maria da Conceição Sango, a sua fundamentação é curta e simples, ocupando apenas cinco páginas.

Para estribar a sua decisão, o Tribunal começa por referir que o sistema processual penal escolhido para Angola se baseia no princípio do acusatório. Segundo esse princípio, ao Ministério Público cabe um papel tendencialmente parcial de parte que realiza a acusação, sendo errado conferir-lhe simultaneamente poderes de garantia dos direitos e liberdades dos arguidos.

Na prática, quem quer acusar não vai estar especialmente atento à defesa das liberdades do potencial acusado, raciocina o Tribunal. Por essa razão, deve ser outra a entidade a garantir essas liberdades.

A Lei n.º 11/20, de 23 de Abril, ao conferir poderes ao Ministério Público para ordenar, autorizar e validar escutas, está a conferir a este uma vantagem apreciável sobre o arguido, não existindo imparcialidade na decisão de escutar. Ademais, este poder de autorizar escutas viola a separação de poderes, pois na prática está a conferir poderes judiciais ao MP.

Portanto, temos dois fortes argumentos de natureza constitucional neste caso.

Em primeiro lugar, a necessidade de se respeitar o equilíbrio e a igualdade entre as partes no âmbito do processo penal. O princípio de igualdade de armas entre PGR e arguidos tem aqui consagração na práxis constitucional.

É evidente que este realce tem especial importância neste tempo de combate à corrupção. Temos visto que vários processos têm sido instruídos pela PGR de forma muito incipiente.

Ora, ficamos agora todos avisados de que a malha se apertou, e os tribunais estarão mais vigilantes. Os processos contra a corrupção têm de surgir nos tribunais “à prova de bala”, se não acabam todos por ser reduzidos a nada.

O segundo argumento de natureza constitucional aduzido neste caso liga-se à separação de poderes e à necessidade de se entenderem as diferenças de funções entre juízes e procuradores. Os primeiros julgam segundo o direito os factos que lhes são apresentados; o MP acusa e apresenta os seus factos. São funções diversas que não se devem confundir.

Naturalmente, neste passo tem especial importância a institucionalização dos designados juízes de garantia, cuja efectivação tarda. Informação recente dava conta de que em Janeiro iriam começar os cursos de preparação desses juízes. Esperemos que sim, e que esta decisão apresse esse procedimento. Os juízes de garantia devem entrar em funções o mais cedo possível.

Além dos argumentos de natureza constitucional, este Acórdão tem a particularidade de conceder peso ao direito internacional, no caso, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos. Este pacto internacional é um dos três instrumentos que constituem a Carta Internacional dos Direitos Humanos e foi aprovado pela Assembleia-Geral das Nações Unidas em 1966. Os outros dois são a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o Pacto Internacional dos Direitos Económicos Sociais e Culturais. A questão mais relevante é constatar que um alto tribunal angolano aplicou uma norma de direito internacional para declarar a inconstitucionalidade de uma lei ordinária nacional. Pode parecer um acontecimento corriqueiro no direito teórico, mas é um grande passo na prática jurisprudencial doméstica.

Fonte: Maka Angola

 

 

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