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Boas Palavras

18-12-2020 - Maria do Crmo Vieira

As boas palavras não servem para nada se não conduzirem

a qualquer coisa. […]. Estou cansado de palavras que não

conduzem a nada. O meu coração adoece quando recordo

as boas palavras e todas as promessas quebradas.

Chefe José, Tribo dos «NezPercés», 1877

Intemporais são as palavras do Chefe In-Mut-Too-Yah-Lat-Tat (1840-

-1904), baptizado de Chefe José, após a sua capitulação, a 5.10.1877, perante as forças do general Howard. Palavras dirigidas ao presidente norte-americano, Rutherford Hayes (1822-1893), num discurso, de uma dignidade comovente, que achámos por bem prolongar, tal nele revemos o que acontece no mundo por força dos que, detendo o poder ou as armas, soltam, sem pejo, a sua falsa bondade, invocando invariavelmente a civilização, o progresso ou o que consideram ser o bem do povo, em nome do qual falam: Ouvi falar e falar, mas nada foi feito. […]. As palavras não pagam o meu povo morto.Não pagam o meu país agora percorrido pelos brancos. […]. As boas palavras não me devolvem os meus filhos. As boas palavras não darão saúde ao meu povo e não o farão deixar de morrer […]. Apenaspeço ao Governo para ser tratado como todos os outros homens. […]. Pedimos que sejamos reconhecidos como homens.[…].

Seja em ditadura seja em democracia, somam-se situações históricas, incluindo a actualidade (pense-se no Brasil), em que o lamento do Chefe José, perante a perda da sua terra e a violação de todos os tratados, ecoa em nós.A própria atrocidade aparece semprebondosamente envolta em palavras que a justificam, como um acto justo, correctivo, mas no qual, efectivamente, só acreditam alienados, sádicos, oportunistas ou racistas. São assim, e seja qual for a sua origem geográfica, os promotores da civilização ou da pureza e supremacia étnicas, os «salvadores da pátria e do povo» ou ainda «os guardiães do templo». Foi com cobertores infectados de varíola, pretensamente oferecidos para protecção do frio, que se dizimaram tribos da América do Norte, no séc. XIX;com autos de fé, cruzadas e «guerras santas» se vilipendiou e vilipendia a ideia de Deus; com a escravatura africana e com o colonialismo, tão em sintonia com a supremacia branca e a sua ganância de riqueza alheia, se interrompeu barbaramente a história desses povos, e muitos são também os heróis aclamados que se empenharam nessa «politica imperial», nomeadamente Churchill que ufanamente se incluiu na «raça de alto nível»;os Gulag soviéticos (sistemas concentracionários) que funcionaram entre 1918 e 1957 e onde morreram milhões de homens e de mulheres, acusados, na sua maioria, e invariavelmente, de «inimigos do povo, a soldo do estrangeiro», de «sabotagem económica» ou «pertença a organizações contra--revolucionárias», devendo expiar os seus crimes através do «trabalho que os reeducaria», um trabalho exemplarmente explorado, exaustivo e gratuito. Gorki (1868-1936), escritor docilmente obediente ao regime, fará, em 1934, juntamente com mais 30 escritores, devotos de Estaline, a apologia desse «trabalho que prepara a redenção»;os nazis «saudaram» os prisioneiros dos tenebrosos campos de concentração com asfrases «A cada um o que merece»ou «O trabalho liberta», porque efectivamente achavam que havia quem não tivesse direito a existir, aliando o seu anti-semitismo às já tradicionais dizimações em massa, ocorridas com a expansão europeia em diferentes continentes (África, América, Ásia).Em sintonia com todos os espaços de abjecto aprisionamento de pessoas, a absoluta arbitrariedade da lei, a total ausência de direitos, situação facilitada, e até incentivada, pelos «salvadores da pátria» aos quais se aplicam, à perfeição, as palavras de Todorov, na sua obra «A Conquista da América»: O homem que massacra não mostra a bestialidade que se diz guardada em cada um de nós; ele é o homem cheio de futuro, desprovido de qualquer sentimento moral e que mata porque isso lhe dá prazer.

Em Democracia, ideal que exige contínuo alerta e aperfeiçoamento, a mentira e a negligência voluntária são estratégias infelizmente usadas e facilmente assimiladas por quem se deixa alienar ou abdica de pensar por si próprio ou é ainda incapaz de compaixão. É por isso que os migrantes deixaram de ser tema de Informação e continuam a ser reenviados, com a ajuda da União Europeia, para os infernosde onde saíram; é por isso também que se minimiza o significado das saudações nazis, abrindo caminho à violência contra o Outro; é por isso ainda que Ihor Homenyuk foi sadicamente assassinado e os assassinos se encontram em casa, em doce prisão.

As «boas palavras» não restituem a vida aos milhares de migrantes, nem a vida IIhor Homenyuk. Estamos todos cansados de palavras que não conduzem a nada. Indignarmo-nos é a atitude certa!

Maria do Carmo Vieira

 

 

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