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Adeus “Chico cego”

24-07-2020 - Francisco Pereira

A negra ceifeira levou o meu amigo “Chico cego” e hoje estou triste, estou pesaroso apetece-me gritar à trovoada e ao atroz firmamento encastelado por nuvens escuras que a vida é uma merda, uma injustiça do caraças, mas depois lembro-me do Chico e ele não faria nada disso...ele iria rir-se com aquele sorriso franco e genuíno que tanto nos fará falta a partir de hoje.

O Chico, era uma força da natureza, um músico de eleição, um excelente amigo que gostava genuinamente dos seus amigos, dono de um dos mais notáveis e agudos sentidos de humor de que tenho memória, nunca ouvi ao Chico uma má palavra, excepto talvez quando chocou com um carro estacionado em cima do passeio, coisa vulgar aqui pela terra, eu vi esse episódio e foi ver se estava bem, entretanto diz-me ele com calma.

- Tou bem obrigado, bati com as canelas nas hastes deste manso, mas pronto, temos de perdoar-lhe porque os tem grandes e na cabe na estrada. Era assim o Chico.

Ver passar o Chico, cruzarmo-nos com ele ou ficar ali na esquina à fala com ele era respirar “boas energias”, o rasto de felicidade que o Chico arrastava a trás de si, talvez contrastando com os seus dramas interiores que os teria seguramente, esse rasto de luz quase invisível mas que se estivéssemos atentos víamos bem, espalhava-se a cada bom dia, a cada anedota, a cada laracha ou a cada dichote que o Chico largava às pessoas que ia encontrando.

Eu conhecia o Chico há mais de 30 anos, já ele era homem feio e eu um puto inconsciente, de quando em vez ouvia-o tocar em farras fadisteiras pelo Faroeste ou mais tarde na saudosa Tendinha, o Chico era cego, ou antes devido a uma doença ocular cegara já adulto, era na altura militar na Força Aérea, operador de radares quando a infausta patologia o apanhou e o Chico cegou, mas via mais que muitos que não são cegos.

Pouco importava o Chico era de uma força inaudita, vê-lo caminhar aqui pela terreola, uma verdadeira armadilha para pessoas com dificuldades de locomoção e ou necessidades especiais, com vagar mas com certeza era mais um motivo para admirar aquele excelente ser humano, e parece que o estou a ver surgir ali da travessa da Olaria com a sua bengala a tactear o chão, fumando a sua cigarrilha.

- Então ó Chico!

- Quem é? – perguntava-me o Chico, por vezes quando o ruído era muito ele não conseguia distinguir a voz do seu interlocutor, coisa que em condições normais fazia com uma proficiência fantástica.

- É o maneta mais bonito do Ribatejo – dizia-lhe eu.

- Ó Miguel, vi logo que eras tu. – Dizia-me com aquele seu ar malandro, tratava-me pelo meu segundo nome, porque segundo ele dizia isto era uma confusão de “chicos” que não se podia, depois invariavelmente contava uma anedota, real ou inventada, mas que fazia sempre rir a bandeiras despregadas.

- Hoje fui à associação dos cegos contar anedotas de cegos, é pá os gajos iam-me matando, não sabem que sou cego, tas a ver isto pá – o Chico contava estas coisas e quem o estava a ouvir não resistia a soltar umas saudáveis gargalhadas.

A sua forma de exorcizar os seus fantasmas, encontrou-a num sentido de humor, numa humildade e numa humanidade extremas, tinha sempre uma boa palavra para toda a gente, era de uma bonomia extraordinária, uma boa influência para todos os que tínhamos a sorte de se cruzar com ele.

- Então Chico, como estás?

- Tou chateado pá, vinha ali dos lados do Zé Carvalho e esbarrei com um cego...

- Magoaram-se... – perguntei eu.

- Não, estou irritado porque o gajo vinha a correr e eu não o vi!

Risota geral, este gajo não se podia levar a sério, contava aquilo de uma forma que quase acreditávamos, e nem percebíamos que o Chico estava a gozar com a nossa cara, mas ninguém levava a mal, porque o Chico era assim, o Chico era uma alma gentil e delicada que espalhava alegria e bom humor, quantas vezes afastando os nossos negrumes e aqueles que conseguem isso, são com certeza boas pessoas.

A negra ceifeira levou o meu amigo “Chico cego”, não mais o vou ouvir contar anedotas, egoisticamente temo esses tempos, vai faltar-me o seu humor, vai faltar-me a sua cordialidade e bonomia, adeus Chico até um dia pá!

Sentidas condolências à sua família.

Francisco Pereira

 

 

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