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A NEBLINA E O TEJO

25-10-2013 - João Chamiço

Seis anos eram os que tinha aquele menino que pulou da cama a meio da noite, quando o pai se apressava para se por a caminho.

Eram 4h30 de uma madrugada tépida de verão. As pestanas tentavam teimosamente fechar-se sobre os seus olhitos baços de sono, e a permanente lembrança do aconchego dos lençóis adensavam-lhe ainda mais a vontade de ficar na cama. Porém, a carroça de grandes rodas de madeira e ferro, rapidamente se pôs ruidosamente em marcha pelos caminhos, umas vezes de macadame e outras vezes, as mais das vezes, apenas de terra e calhaus.

Ver o rio Tejo pela primeira vez e mesmo passar para lá dele, fazer a travessia do rio lá na Barca da Amieira, juntamente com a carroça e o macho e uma data de gente nunca antes vista, era uma odisseia a que nem todas as crianças tinham oportunidade de ter acesso. Daí que todos os sacrifícios valessem a pena, ainda que isso implicasse saltar inusitadamente da cama a meio da noite em vez de ficar comodamente deitado até para lá do nascer do sol.

A casa, no Vale da Feiteira, na freguesia da Comenda, rapidamente desapareceu do alcance da vista e a marcha pachorrenta da carroça prolongou-se por tantas horas que mais parecia que os levava em busca de algum lugar num qualquer fim do mundo apenas imaginário.

Depois, finalmente a povoação de Amieira do Tejo primeiro, uns longos metros de um velho caminho feito de pedaços de granito, e logo o cais, ali ao fundo onde o caminho acaba abruptamente e o rio começa.

- Que barca enorme! Exclamou ele admirado com a dimensão da jangada que haveria de os levar a bom porto já na outra margem do grande rio, tão enigmático como as nuvens brancas quase eternas que se avistavam a quilómetros de distância a pairar sobre o vale em que o Tejo desliza, ora calmamente, ora furioso e revolto em direcção a S. Julião da Barra.
- Que nuvem é aquela pai? Aquela ali, tão branca, que se estende ao longo de todo aquele vale!
- Estou a ver. – Aquela nuvem está ali todos os dias, ou quase, é a neblina provocada pela evaporação das águas do Tejo, sempre que determinadas condições atmosféricas se conjugam. E elas conjugam-se muitas vezes!.
- Isso quer dizer que é já ali o Tejo?
- É o Tejo sim, mas não é já ali!. Apenas parece que é já ali!. Vais ver que é muito mais longe do que parece!.

À hora marcada, o barqueiro mandou subir; primeiro a carroça e a mula, depois umas dezenas de pessoas que esperavam pacientemente pelo momento de embarcar como se fossem atravessar o mar em busca da terra prometida.

A canzoada não parava de ladrar a toda a gente que chegava, mas no momento de embarcar, também eles subiram à barca. Aconchegaram-se a um canto de onde observavam ininterruptamente a corrente. Todas as bocas caninas se emudeceram tão estranhamente que mais parecia haver ali um prenúncio de tragédia. Ou será que os cães, ao contrário das pessoas que ali iam, sabiam por instinto que ali passara o cortejo fúnebre de uma das mais conhecidas e ilustres rainhas de Portugal, a rainha Santa Isabel, aquando da transladação do seu féretro de Estremoz para Coimbra, e por isso faziam reiteradamente aquele silêncio?

As mãos do barqueiro pareciam de ferro, quando este empunhou uma vara enorme que ia firmando no fundo do leito fazendo deslocar a barca até à margem oposta, lá onde o Alentejo acaba e a Beira principia.

Três ou quatro impulsos da grossa vara, e eis a Beira Baixa, ali,  no cais do lado norte do rio.

A Estação do "Fratel – Barca da Amieira", servia os passageiros da linha da Beira Baixa que moravam de um e outro lado do caudal, e estava agora ali, à mercê dos embarcados mal puseram os pés em terra firme na margem direita do rio.

Os pimentos vermelhos que a ruidosa carroça transportava destinavam-se à Fábrica de São José das Matas onde iriam ser moídos e transformados em pimentão, e era nestes meios rudimentares de transporte que eram carreados desde as terras de produção nas Polvorosas e noutras herdades das redondezas.

As giestas floridas de amarelo que cobriam os campos na primavera, há muito que se haviam transformado em arbustos apenas verdes e fecundos cobertos de vagens repletas de sementes prestes a eclodirem.

As flores brancas das estevas haviam perdido todas as pétalas e estas eram agora apenas plantas sequiosas, de folhas luzidias e peganhentas. Das suas belas flores alvas não restavam agora senão as coroas esturricadas pelo sol.

Os tojos e os sargaços também se haviam rendido ao implacável rigor do estio, e todas as flores das papoilas vermelhas haviam caducado de vez e já se haviam despedido até à próxima primavera.

Quando finalmente se avistou a Fábrica de pimentão, já o sol se aprestava a “afundar-se” para lá da linha do horizonte.

 O animal de jugo estava completamente exausto, e o seu pelo repassado de suor, mais parecia ter atravessado uma tromba de água, e mesmo assim era como se voasse. Parecia ter a certeza de que era ali que se iria livrar da pesada carga que o atormentava desde alta madrugada. Ainda que algumas breves paragens pelo lhe tivessem permitido retemperar as forças e aconchegar o estômago com algumas favas e alguns grãos de aveia que sorvia de um saco se serapilheira em que enfiava o focinho até à orelhas repescando minuciosamente cada pequeno grão.

O miúdo de seis anos, vencido pelo cansaço, depressa adormeceu mau grado a dureza do lastro da carroça e o permanente saltitar.

O regresso a casa aconteceu já noite adentro, quase à mesma hora a que se iniciara a viagem no dia anterior.

As nuvens brancas continuavam lá, e o miúdo de seis anos, revivia a lembrança de toda aquela novidade interrogando-se se,  a barca e aquele “estranho” barqueiro que usava a força dos seus braços como meio de locomoção serrando os grossos punhos em volta de uma espessa vara que fundeava vigorosamente no leito sinuoso do rio, lá estaria também e até quando!

40 anos mais tarde voltei ao rio. Voltei ao velho cais. Sim, voltei!

Já perceberam que era eu mesmo, aquele miúdo de seis anos que saltou da cama a meio da noite para ir ver o Tejo e aquela estranha neblina que se avistava de longe parecendo querer manter dissimulado o rio lá bem no fundo da ravina, mas que ao mesmo tempo o denunciava com a sua quase eterna presença.

Se subirmos ao Alto Pina, na Atalaia, e estendermos o olhar para norte na direcção da Ladeira, o mais provável é podermos observar aquele manto branco que em certos dias nos turva a visão a ponto de nos parecer observar uma cordilheira de montanhas.

40 Anos depois retomei o percurso no mesmo sítio, e a viagem não demorou senão uns 25 minutos. De automóvel claro!.

O Castelo de Amieira continuava lá como antes e o cais da “Barca da Amieira” também.

A barca estava em seco, não sei se “moribunda”, e não havia sinais de haver por ali barqueiro algum de grossos braços que me conduzisse ao outro lado do rio.

A neblina que se avistara de longe desde que o dia clareara, já se havia dissipado, mas na manhã de amanhã ela irá quase de certeza marcar presença no mesmo lugar.

Vá-se lá adivinhar se os cães, se ainda os lá houver, irão parar misteriosamente de ladrar perante a eminência do embarque, e vá-se lá adivinhar se, não haverá gente, nem carroças nem mulas, nem outro vigoroso barqueiro que os leve a todos a bom porto.

João Chamiço

 

 

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