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Viajar em tempo de pandemia

24-04-2020 - Cândido Ferreira

Com descendência em Xangai, logo em janeiro temi o coronavírus e suspendi viagens de longo curso. Com o Civid-19 a saltar a muralha da China, e a salpicar o mundo nas semanas seguintes, depressa confirmei que raros países estavam preparados para enfrentar a pandemia, que se previa há décadas. E como escrevi, também em Portugal “dirigentes políticos incultos e malformados exibiam a sua total impreparação”.  

Tendo considerado a doença altamente mortífera, cedo sopesei a estratégia ao combate: “deixar andar e, na lógica dos terramotos, enterrar os milhões de mortos e relançar a economia; ou, retardando a sua progressão, evitar contágios e picos catastróficos, preparando arsenais e salvando o máximo de vidas humanas”.

Defensor do segundo cenário, não imaginava a longa saga que me estava reservada, com a “negação de evidências científicas por autoridades estrangeiras e portuguesas e a desvalorização da ameaça que pairava sobre Portugal”.   

Um combate inglório?

Logo em fevereiro, defendi, em encontros na AR, a formação dos guardas prisionais e a proteção da saúde dos reclusos, em prisões sobrelotadas. Excluindo a simpatia de dois ilustres deputados, João Ataíde e José Manuel Pureza, as propostas da APAR foram rejeitadas num estado de direito que, sendo um paraíso em segurança, se destaca pelas “péssimas condições das prisões e pela mais alta taxa de reclusão da Europa”.  

A 6 de março, já com o vírus em Portugal, a APAR resolveu reinsistir na libertação de alguns presos, quase tendo merecido linchamento popular. E silenciada foi depois a sugestão das detidas de Tires, exploradas por empresas privadas e pelo Estado, fabricarem as máscaras de que as prisões careciam.  

Será que, pela dignificação da nossa Justiça, esta crise não poderá contribuir para repensar práticas futuras, certamente com critérios iguais para ricos e pobres, mas, sobretudo, a centrar-se na inclusão social dos reclusos e seus familiares?

Parem, escutem e olhem…

A 8 de março, com a epidemia no início, garanti que a pandemia tinha mesmo de ser “levada a sério, que as variáveis eram imensas e se aproximava um furacão ainda mais ameaçador do que o Leslie”. Obrigatório, sugeria “um debate aberto, sereno e livre de indesejáveis aproveitamentos políticos ou corporativos, impeditivos das boas práticas médicas”.

Embora com incidência e mortalidade inferiores à de outros países, talvez mais bem equipados mas que tinham sido apanhados desprevenidos, era para mim uma evidência que Portugal deveria “armar com urgência os hospitais e escolas, os lares de idosos e prisões, a hemodiálise, as farmácias e os diversos centros de diagnóstico e de tratamento. E também médicos e enfermeiros, administrativos, técnicos e auxiliares de saúde, transportadores e quantos se encontram na linha da frente deverão preparar-se para aquela que pode vir a ser a mais heroica batalha das nossas vidas”.

Ao mesmo tempo, apelei à comunicação social “ocupada na rotina de selecionar políticos e comentadores e não em fornecer conhecimentos úteis”. E até apontei a novela criada em torno do “Presidente da República que, muito corajosamente, mais não fazia do que se apressar em testes inúteis e anunciar a ausência do posto de comando, em Belém,  por se ter refugiado a passar roupa a ferro”, na sua casa de Cascais.

Entretanto, a reportar a chegada ao aeroporto do primeiro infetado português, recebido com honras de Estado, havia de dizer que esse homem do povo, em segundos, ensinara “muito mais do que tudo o que as desautorizadas autoridades sanitárias não podiam: que o nosso país não está a ser dotado dos meios necessários e que, para além de apregoar lugares comuns, como lavar as mãos, o Ministério da Saúde não investe um minuto a recomendar as regras básicas de higiene”.

E acrescentei que “também na proteção civil e transportadores, mais do que ignorância, alastra uma pandemia de arrogância que chega à desobediência às medidas sanitárias mais elementares, impostas em algumas das Unidades de Saúde”. Para ainda denunciar que “a ausência de diretrizes na formação profissional, nesta altura do campeonato, já só podia ser considerada como criminosa”.

C om a opinião pública focada na insuficiência de testes, chamei à colação as “três primeiras figuras do Estado, que tendo tido inúmeros contatos físicos, apareciam em público juntas, sem guardar as distâncias recomendadas e sem usar máscaras de proteção”. Enquanto isso, “a AR reunia sem um único deputado protegido e até incumprindo determinações”. E também a “polícia aparecia sem máscaras, mais fazendo lembrar uma tropa munida de calção de banho, toalha e bronzeador”.

Face ao que assistia, defendi “uma linha de comando capaz de retirar as lições do Siresp, o sistema de segurança que, anedoticamente, só dava boa resposta quando não havia incêndios”. E também estranhei a quarentena dos aviões militares - entre eles o presidencial usado nos futebóis - que não recolhiam os portugueses, pelo estrangeiro.

Por fim… alguma ordem!

A 19 de Março, publiquei que “ juntando personalidades que estão na frente do combate ao surto, a Ordem dos Médicos promoveu um importante debate. As conclusões não oferecem dúvidas e vêm ao encontro de tudo aquilo para que tenho vindo a alertar, desde há várias semanas”. Os participantes, “apontando falhas na linha de comando, censuraram a exclusão de militares especialistas em guerra biológica e todos reiteraram a falta de meios, o atraso na implementação de medidas essenciais e concordaram com a falta de liderança, embora esse não fosse o momento de apontar o dedo, mas de agir”.

Reforcei eu então que ninguém saísse de casa, tendo-me atrevido a semear alguma esperança: “a pandemia parece sob controlo e, embora sem uma certeza estatística, estou mais otimista do que as entidades oficiais. Acredito que possamos ter uma Páscoa mais serena do que aquela que anunciam”. Não me referia, obviamente, ao fim da crise, mas sim ao melhor controlo do mostrengo que devassava os países limítrofes.

Nos dias seguintes avisei que o nosso SNS “acusava fadiga e que tal sensação também perpassava nas chefias, que teimavam em conduzir a crise”. Em conferência de imprensa, a desoras, “um exausto responsável afirmou ter estado reunido com onze autoridades administrativas, diversas”. E para não atear incêndios, até engoli o caos que ia pela montagem de hospitais de campanha, ao lado de hotéis encerrados…

Enquanto isso, a Ordem dos Médicos e as Universidades também não davam indícios de arriscarem responsabilidades e definirem diretrizes técnico-científicas. Por isso alertei que “qualquer cientista, qualquer médico, sabe o que são ensaios cegos, hoje bem regulamentados. Mas que, perante centenas de casos clínicos em que a mortalidade é quase 100%, a ética médica recomendaria ultrapassar as politicamente corretas boas práticas. A única atitude científica é testar nos nossos hospitais todas as armas ao dispor, na esperança de que alguma possa ser eficaz. Com os casos clínicos em crescendo, uma equipa de investigação pode tirar conclusões em curto prazo”.

Lembro que só em pleno abril a ciência portuguesa reconheceu a vantagem das máscaras, por mim já decretadas há várias semanas.

Os dez pecados capitais

Há quem sofra de claustrofobia, enquanto outros aproveitam o confinamento para ler, refletir e peregrinar pelos emaranhados labirintos da mente. Agradecendo o contributo de eméritos colegas e amigos, eis a síntese que retirei dessas minhas digressões:

1 – o crescente poderio da indústria farmacêutica, que logo se centrou na investigação de produtos dispendiosos e sem eficácia clínica comprovada;

2 - o eclipse da comunidade científica médica que, perante este poderoso lóbi, tardou em conjugar esforços e trocar ciência que permitisse enfrentar o combate;

3 - a falta de “munições”, como as máscaras e o gel, esgotados antes do primeiro tiro;

4 - a tónica na necessidade da ventilação assistida, de inglório alcance clínico, e não em tentativas de limitar complicações talvez evitáveis com a experimentação de outras estratégias tais como o uso de cloroquina, cortisona e antivirais já existentes;

5 – a obsessão mediática pelas vacinas, uma miragem ainda que “aldrabando” regras;

6 - o desfasamento de uma comunicação social focada na intriga política e que, para “evitar o alarme social”, adiou por meses a formação e o conhecimento;

7 - a impreparação de técnicos que se submeteram à “voz do dono” e não garantiram a coordenação do combate;

8 - a noção de que a primeira linha de defesa é o SNS e não a formação sanitária das populações, a começar pelos transportadores, proteção civil e forças de segurança;

9 - as assimetrias, as práticas diferentes e até o caos instalado nas estatísticas;

10 - o atraso na declaração do estado de emergência e, sobretudo, na aplicação de planos de contingência, desde os lares às prisões, das escolas ao Palácio de Belém.

Tendo distribuído profusamente essas noções pela comunicação social nacional, nem um só texto mereceu referência. Ao contrário do apoio de muita imprensa regional e do aplauso das redes sociais e de centenas de amigos e colegas.

A Ordem sim, mas nem o Sindicato Independente dos Médicos, que rasgadamente apoiei, me deu troco. Talvez por, de “inconformado”, ter escrito que há “três espécies de médicos: os que arriscam tudo, até o seu próprio prestígio, e fazem o impossível por salvar os doentes; os que fazem o impossível para impedir o sucesso alheio; e aqueles a quem, muito respeitosamente cumprimento, executam sem discussão o possível”.  

Como sair daqui…

Com tantas variáveis e devastação, a minha convicção não é forte, pelo que não me atrevo a profetizar auroras radiosos. Faço, no entanto, sinceros votos para que o nítido reforço de autoridade do Primeiro-Ministro e do Ministro das Finanças possa conduzir ao emagrecimento do Estado e a escolhas de gente mais competente, que possa acelerar a recuperação económica e social do nosso país.

Missão muito atribulada, quando é certo que ainda não vi nenhum governante a anunciar o pagamento de subsídios europeus contratualizados com milhares de pequenas empresas, o pagamento de dívidas em atraso ou mesmo a abdicação de certas mordomias que continuamos a pagar a políticos, muitos em lay-off.

Mas, ainda que num cenário escuro, seja-me como sempre permitido sonhar que, depois da tempestade, nada mais vai ficar como dantes e que melhores tempos nos animarão.

Sem lei-da-rolha…

Cândido Ferreira – ex-médico e escritor

 

 

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