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"Depois da operação já não sou o mesmo. Isto é muito solitário"

04-01-2019 - Ferreira Fernandes

O DN foi ver e ouvir, conversar e estar com o mais fugidio (acreditem) e fascinante (já sabem) dos políticos portugueses.

Na véspera e também nesse dia, o Presidente estivera já nos funerais da enfermeira e do piloto do malogrado helicóptero do INEM - sem declarações públicas. Fizera, ainda, uma viagem breve, de dez minutos, na cabina de um TIR - um vídeo expunha a conversa entre dois cidadãos, um Presidente curioso e um motorista com queixas dos horários pesados. Resumindo, um, acidente de helicóptero, logo, mais uma tragédia com misteriosas e especulativas responsabilidades. E, dois, anúncio de próximo levantamento de coletes amarelos, logo, podendo arrastar camionistas... Isto é, prováveis tsunamis alertaram a vontade de fazer de Marcelo Rebelo de Sousa.

O Presidente é uma pessoalizada brigada de intervenção rápida. Em ambos os casos, ele armou-se de forma eficaz: discrição, num caso, e tornando pública uma conversa, no outro. Consolou os familiares das vítimas em sussurro. E disse "ora, Fernando... grande casa...", passeando o olhar pela cabina, enquanto apertava o cinto de segurança e o camionista se punha à estrada. Às vezes é o que basta aos capacetes azuis em terreno minado. Nem sempre chega, é verdade, mas, em chegando, é bom saber-se que essas armas existem e são reconhecidas pela comunidade que vive entre Minho, Algarve e ilhas. Mais vale a precipitação (na semana anterior, o Presidente aparecera num descarrilamento de um elétrico na Lapa, só com feridos ligeiros) do que a inação.

Mas mesmo em casos mais ligeiros Marcelo pensa como agir.

Naquela quarta-feira, 19, chegara ele dos dramas já narrados e regressou ao palácio com a noite tombada - ainda tinha a prometida entrevista para a Sport TV, a dar a António Simões, o velho campeão europeu benfiquista, acabado de fazer 75 anos. O Presidente olhou à volta, câmaras e holofotes, e lamentou o cenário: "Lá em cima seria mais empático." Ele sabia do que ia falar e trazia a tática adequada mas mudaram-lhe o estádio. Lá em cima era o andar da residência do palácio raramente vivida no quotidiano, só Ramalho Eanes fez os seus mandatos lá com a família - os aposentos são mais modestos. Ora, o futebol de que ele queria falar era íntimo, ele e o seu futebol, parte da sua vida, não uma gala da UEFA.

A entrevista para a Sport TV acabou por se fazer mesmo na Sala Império, um dos três faustosos salões do Palácio de Belém. Ali, onde o futuro rotundo D. Carlos, ainda príncipe e capaz de se inclinar, jogou bilhar, então desporto de nobre, hobby, e não o futebol do povo. Assim, para a década de 1950 a virar para a de 60, o Presidente invocou os nomes de Mokuna, Matateu, Vicente e Yaúca, e, ao fazê-lo, dançaram-lhe os braços, ergueu a cabeça e viu num relance o medalhão de D. João VI, pintado no centro do teto! O rei que foi rei do primeiro império europeu governado a partir das Américas foi também importante, foi, mas há que não misturar os períodos históricos: aqueles futebolistas, vindos de África (Congo Belga, Moçambique e Angola), foram reis da bola num pequeno mas, nessa matéria, vanguardista país europeu.

Uma das vantagens de entrevistar Marcelo é não haver interrupções desnecessárias mas só o fluir de uma mente brilhante. Simões e o jornalista da Sport TV deram o pontapé de saída, deixaram o mister ocupar o terreno e os 40 minutos de jogo. Marcelo cruzou as pernas, encostou a conversa ao pé esquerdo e nunca mais a largou, tal Messi nos tapetes de Belém. Deu para ver que aquele miúdo percebera aos 12 anos o sentido planetário do nosso futebol. Deu para ver que era cultura sedimentada, ele lembrava-se de que os relatos se interrompiam, assim: "Daqui Nuno Brás, perigo nas Antas!" Deu para ver que Marcelo sabia ler o fio da vida: "E na base, uma cabeça, que muitas vezes não lhe é reconhecida", assim definindo Cristiano Ronaldo...

Acabava a entrevista com António Simões fascinado: "Que organizador de jogo o senhor Presidente dava!" Disse ele, que jogou com Coluna.

Sendo as perguntas escusadas, a Sport TV foi brindada com palavras dignas dos melhores resumos da Premier League ou das noctívagas jogadas da NBA. Como numa triangulação de rapazes do Pepe Guardiola que acabava com um cesto de Le Bron, sentado no cadeirão aveludado no meio da Sala Império, o Presidente foi por uma espantosa história, passada com ele, 26 anos, na delegação da FPF, num Brasil-Portugal, no remoto estado de Goiás, 1975. Os nossos eram Tony, Humberto Coelho, Oliveira, todos de bigode e peitudos, treinados por José Maria Pedroto, lendário e manhoso, estávamos a ganhar e a aldrabar um bocado. Simões, 43 anos depois, em Belém, seguia atento o relato e um cameraman estava de boca aberta.

O jogo era amistoso mas os canarinhos eram todos de Goiás, não levavam afronta para casa quanto mais sofrerem-na dentro, na inauguração do estádio da capital do estado (daí o amistoso). Saiu confusão e viu-se Pedroto a chamar os nossos para abandonar o campo. Em Portugal era véspera do Verão Quente de Vasco Gonçalves e na bancada de honra estava o presidente Médicis, o mais duro e direitista dos militares brasileiros. O jovem Marcelo correu para o relvado e conseguiu dissuadir o abandono luso. Felizmente perdemos, senão talvez hoje não houvesse a CPLP. Acabava a entrevista com António Simões fascinado: "Que organizador de jogo o senhor Presidente dava!" Disse ele, que jogou com Coluna.

Do futebol ao mundo

Dali, Marcelo rumou para um jantar no Grémio Literário. Quer dizer, ainda desapareceu para um rápido encontro em pagamento de promessa - talvez um menino cego, talvez um político precisando de contactos -, o que levava a que os carros oficiais andassem sempre à procura do tempo perdido. As pedras do Palácio de Belém já de si impregnadas de história, neste mandato imbuíram-se de uma aura. Se a embaixadora da Índia mandava um presente natalício ao Presidente, ele vinha endereçado a "Excelentíssimo Presidente Marcelo Rebelo de Souza". Souza, como se escreve Sousa na Índia, não era acaso, são pormenores que dão a dimensão ao palácio fronteiro à estátua de Afonso de Albuquerque.

Se porventura a comitiva não ia atrasada, o Presidente perguntava, é um supor: "Em quanto tempo chegamos ao Beato?" O segurança consultava o relógio para dar uma resposta científica: "Em 35 minutos, senhor Presidente." Marcelo apostava: "Vão ser 40." E acertava sempre. Nem que fosse preciso, aproximando-se o Beato e arriscando-se o segurança a acertar, o Presidente mandar o motorista parar inopinadamente: "Tenho de levantar dinheiro no multibanco." Operação que demorava os cinco minutos necessários para favorecer o vaticínio presidencial. Daquela vez, porém, não havia tempo para apostas, chegou-se tarde ao jantar com a imprensa estrangeira. O Presidente parou à porta, para as câmaras nacionais enviadas pelos telejornais ainda a tempo de recolherem impressões presidenciais.

Belém tinha um jantar anual com os correspondentes estrangeiros mas o ritmo duplicou com o atual locatário, ora paga este ora pagam eles. O da semana passada foi no Grémio Literário e à chegada, sob o olhar do busto de Eça de Queirós, o Presidente abraçou uns e beijou outras, "olha esta cara bonita!", contacto fronteiro perigosamente próximo, as duas mãos pousadas nos ombros dela, entre um beijo numa face e outro noutra. À volta as conversas gerais desvalorizavam os nossos coletes amarelos, com o que Eça parecia concordar, pois as novidades do Sud Express chegavam cá sempre atrasadas. A prova é que o Presidente ainda beijava caras bonitas e proclamava-o sem escândalos de #MeToo.

A mesa era tolamente ao comprido, como se fossem 40 os comensais e não 39 mais um. Dando as costas à varanda, o Presidente, a meio de um dos lados longos. Frente a ele, as pessoas sentavam-se compostas, maior ou menor desvio da face dava para ver e ouvir o essencial, Marcelo. Do lado dele, à esquerda e à direita, é que os jornalistas se obrigavam a uma torção de coluna. Soubesse daquele jantar a recente capa da Time sobre o perigo do jornalismo, o torcicolo talvez fosse eleito a personalidade do ano.

O Presidente abraçou uns e beijou outras, "olha esta cara bonita!", contacto fronteiro perigosamente próximo, as duas mãos pousadas nos ombros dela, entre um beijo numa face e outro noutra

Mais uma vez as perguntas-respostas, desta vez ilusão coletiva. Claro, o Presidente iria jogar esse ténis sozinho, como de costume, parecendo, no entanto, dar grande mérito aos apanha-bolas que lhe atiravam as perguntas. Nos seus encontros com microfones, mais do que diários quase sempre, Marcelo vai referindo o que faz as épocas (a incógnita do rumo da Europa), pano de fundo, e os alertas (a queda de um helicóptero) que bem podem ser assuntos mais sérios. Nos dias em que o DN andou à volta da Presidência, os temas foram sempre repetidos e, no derradeiro dia, quando o jornal teve o privilégio de um longo encontro, ouviu quase o mesmo. As perguntas, então, tal como as do jantar com os correspondentes em Lisboa, eram mero sinal para o que o Presidente dissesse o que já tinha decidido dizer.

Pequenas encenações. Quando lhe disseram por onde ir para se sentar, o Presidente aproveitou para lançar: "Ah, a esquerda sempre no meu caminho!" Quando se decidiu a ordem dos perguntadores, fingiu contrariedade: "Pela esquerda, tinha de ser..." Na verdade os jornalistas estrangeiros fingiam entrar no jogo. Não ignoravam que Portugal era governado pelo alinhamento dos astros que permitiu que dois homens com bom senso, práticos e com algum respeito republicano se encontrassem no mesmo momento e tenham entendido desde há três anos que era assim ou o desastre.

Marcelo falava para o mundo, enfim, para correspondentes que talvez mandassem três linhas. Aproveitou que um lançasse uma bela fórmula: "Portugal é o único país normal da Europa?" Nunca acaricies um gato no sentido do pelo, ele não parará de ronronar. O Presidente buscou na história o primeiro país global (e encontrou-o, pois ele estava perto), falou sem falar de Gilberto Freyre e do nosso aconchego em quaisquer longínquas latitudes e longitudes e, naturalmente, aproveitou a deixa do jornalista estrangeiro para também ele, Presidente do país, confirmar a análise de fora. Além de bons emigrantes, "somos os nórdicos de hoje, como eles eram nos anos 1950...", quer dizer, eleitos para tudo o que eram postos internacionais. Bons da base ao topo. Só cá dentro é que um bocado sofrendo de autoestima.

Mas cá dentro, surpresa, outro feito invejável. Os mandatos portugueses vão até ao fim: "Desde que fui eleito, foi um corrupio de mudanças de primeiros-ministros nos 28 países da União, só cinco cumpriram a legislatura. Com três anos no governo, já António Costa parece um senador..." E para que o elogio não subisse à cabeça da outra parte do tandem, Marcelo lembrou que também por cá a opinião pública passara a ser mais severa. Acrescentou: "Por vezes irrito-me um bocadinho porque os políticos entendem lentamente esses sinais." Como quem diz, o Presidente pode atirar a primeira pedra porque até já andou na cabina de um camião TIR.

"Desde que fui eleito, foi um corrupio de mudanças de primeiros-ministros nos 28 países da União, só cinco cumpriram a legislatura. Com três anos no governo, já António Costa parece um senador..."

Enfim, simples picardias, não fosse o Presidente ter exemplificado anacronismos que são bons de pôr em causa nas vésperas de um ano eleitoral: "Num mundo tão veloz, a União Europeia fecha em agosto... O governo reúne-se uma vez por semana..." Porém, os microfones nacionais que lhe haviam sido estendidos já por três vezes nesse dia, interpelavam-no era sobre o ponto da situação do inquérito a Tancos..., perdão, inquérito à estrada de Borba..., perdão, inquérito à queda do helicóptero, isso, sim, era o assunto premente da semana.

Não esperem que Marcelo não albarde o burro à vontade dos donos da informação, albarda. Ele falará sempre também do circunstancial, porque ele acha que tem um destino, e tem, quanto mais não seja porque olha Portugal com inteligência e tem a inteligência de saber que deve fazer pontes. E em nome dessas pontes ele está disposto a trilhar as vielas que lhe estendam. Mas volta sempre às pontes porque o feitio de Marcelo não é para becos ou precipícios - é pena é que essa qualidade a confundamos com ligeireza.

No Grémio Literário, ele lembrou que os seus apelidos, Rebelo de Sousa, entre os dos tempos da Outra Senhora, foram, com ele, dos mais importantes que se passaram para a democracia. Marcelo disse ter, assim, permitido àqueles que viam no seu pai "um governador bom" (Baltazar Rebelo de Sousa foi governador colonial em Moçambique) não se terem enquistado em tempos que definitivamente tinham acabado. Enfim, o Presidente reclamou-se de ter feito mais pontes. Na esteira disso, lembrou que a sua visita de 6 a 8 de março a Luanda iria começar no dia 5: durante a visita a Lisboa, "João Lourenço e a mulher entreolharam-se" e logo o convidaram para o aniversário do presidente angolano.

Marcelo é um "otimista contido", confessa-o sempre. Preferia que o Brexit não acontecesse? Preferia. Mas estando ele decidido não seria melhor tê-lo em conta? Seria. Ricardo Araújo Pereira apanhou-o muito bem na rábula de quem não se limita a uma escolha. Várias vezes, nos últimos dias, o Presidente falou do Brexit - não só com os jornalistas estrangeiros, mas também no Conselho da Diáspora, em Cascais, onde estavam vários portugueses que trabalham na City, em Londres. Disse que "o Brexit era o mais urgente problema europeu, embora talvez não o mais importante".

No encontro com a Associação de Imprensa Estrangeira, a pretexto de se marcar o próximo jantar, propôs julho. Explicou então ele que, já com os resultados das europeias, "vocês podem organizar apostas sobre as legislativas"

O que significava para Marcelo que os dados a trabalhar não eram o do dever ser (aí, para ele, adivinha-se que um segundo referendo que anulasse o Brexit era o melhor) mas o poder ser: "Portugal devia fazer que corra tudo bem aos seus aliados, a Europa e o Reino Unido." O contido não se deixava anular pelo otimista. Mas este também não deixava de o ser: "Todos os dias aumentam os investimentos recíprocos entre Portugal e o Reino Unido", não se cansou de dizer. O mundo excitava-o. No encontro com a Associação de Imprensa Estrangeira, a pretexto de se marcar o próximo jantar, propôs julho. Explicou então ele que, já com os resultados das europeias, "vocês podem organizar apostas sobre as legislativas".

Com Goucha e o Natal

O Presidente sabia quanto deve à televisão, gosta do meio e dos protagonistas. Manuel Luís Goucha também apareceu em Belém, de gravata espalhafatosa, para gravar um programa. "Como está esta grande figura?", disse o abraço presidencial. E insistiu: "Está com quantos, 52?" O apresentador riu-se encabulado. O programa da TVI foi gravado na sala de estar na residência do palácio, mais intimista, como convinha para se falar do Natal. "Bacalhau", lembrou o miúdo Marcelo, lá em casa não era peru.

Mesmo o experimentado Manuel Luís Goucha teve de espaçar as suas intervenções. Quis apressar as memórias do Presidente e ir para os natais tropicais do palácio do governador Baltazar Rebelo de Sousa, anos 1960, em Lourenço Marques, mas o filho Marcelo, hoje noutro palácio, insistiu em continuar nos anos 1950, Lisboa, quando ainda se escrevia ao Menino Jesus, não ao Pai Natal, e as prendas desciam pela chaminé.

No momento da foto em conjunto (quem não a quer com ele?), um holofote despencou, roçou um candelabro e espatifou-se no chão a um metro dos fotografados. O Presidente ficou calmo, agarrado à maquilhadora Sara, da TVI

A escolha da sala mais pequena podia ter acabado mal: no momento da foto em conjunto (quem não a quer com ele?), um holofote despencou, roçou um candelabro e espatifou-se no chão a um metro dos fotografados. O Presidente ficou calmo, agarrado à maquilhadora Sara, da TVI. Ela estava ao seu lado na foto para a compensar por ele não a deixar pôr-lhe pós ou cremes: "O meu amigo Nicolau Breyner preveniu-me: nunca deixe que o maquilhem!"

Tendo gravado com um rei das audiências, ainda descia as escadas, já o Presidente era contactado por telefone para outra entrevista com gente famosa. Recusou e teve de insistir na recusa: "Oh, não posso! Não precisa nada, você não precisa de ninguém para lançar o seu programa ... E, desculpe, agora tenho à espera o embaixador de Israel com um candelabro na mão." Pouco depois, Marcelo recebia na sala de audiências o embaixador Raphael Gamzov, homem grande que trazia um embrulho elegante e um saco de plástico com livros.

"Vou lê-lo para preparar a visita. A minha mãe era da Covilhã, perto de Belmonte, eu devo ainda ser um pouco judeu", disse-lhe Marcelo. Respondeu o embaixador: "Ninguém é perfeito."

O embaixador deu o presente e ofereceu-se para o desembrulhar. Um magnífico menorá de ouro, candelabro judaico de sete braços: "Há um igual na Casa Branca, oferecido pela sinagoga do Porto." O Presidente colocou-o com mil cuidados no tampo da mesa onde assina os diplomas. Raphael Gamzov convidou Marcelo a ir a Israel no próximo ano e entregou-lhe um livro de Shimon Peres. "Convidei-o a dar uma aula em Lisboa mas morreu semanas antes", revelou Marcelo. O embaixador ofereceu-lhe ainda, "prenda minha", o álbum de turismo Terra Santa. "Vou lê-lo para preparar a visita. A minha mãe era da Covilhã, perto de Belmonte, eu devo ainda ser um pouco judeu", disse-lhe Marcelo. Respondeu o embaixador: "Ninguém é perfeito."

A sexta-feira dos bloqueios dos coletes amarelos lusos revelou-se um fiasco. Uma elite de emigrantes de luxo, quase cem ("ainda só 20% de mulheres", ralhou o Presidente) reuniu-se na Cidadela de Cascais. Era o encontro anual do Conselho da Diáspora, um movimento patrocinado pelo Presidente Cavaco Silva e que Marcelo abraçou. Para os conselheiro, entre os quais, Durão Barroso, Marcelo desacelerou sobre o perigo do radicalismo em Portugal: "Todos os dias os portugueses dão-nos a lição de quererem tranquilidade." Não só as notícias o obrigavam a dizer, como ele é prático: radicalismo é um assunto interno e aquelas excelências eram para ser mobilizadas pelo mundo fora.

Marcelo focou-se nisso: espalhar a nossa influência já que andamos espalhados. Os nossos financeiros na City que se aproveitem do Brexit. Agora que o Brasil arrefecia, a América Ibérica era uma prioridade. Outra, era a África francófona - aproveitando a recente proposta de Macron, interessando-se pela África anglófona, Marcelo, em notável golpe de jiu jitsu, aproveitou-se do impulso do francês e aplicou-lhe o mesmo golpe. Depois, havia Angola a querer diversificar a economia, podendo Portugal "liderar essa transição". E ainda mais focado na plateia: a diáspora portuguesa com as da mesma língua. Com brasileiros na América, com angolanos na região que já lideram e cabo-verdianos no Senegal. O radioso sol de inverno da baía de Cascais deixava imparável, quase irritante, o otimismo do nosso Presidente.

Depois do mundo aos seus pés, o cidadão Marcelo Rebelo de Sousa teve um banho de humildade. Ao fim da tarde, meteu-se ao volante do seu Mercedes, classe A (é a gama baixa), e sozinho perdeu-se. O carro dos seguranças que o seguia não ousou indicar-lhe o caminho certo nem a discrição deles permitiu saber-se por que caminho andou, mas julga-se que foi confirmar o fracasso dos coletes amarelos. O certo é que chegou tarde à Cantina Velha, na Cidade Universitária. Ali, ponto alto das lutas estudantis em Portugal, 1962, o professor Lindley Cintra agredido pelos pides, ainda Marcelo Rebelo de Sousa era liceal e filho do regime salazarista. Na semana passada, o professor Cruz Serra, reitor da Universidade de Lisboa, esperava a mais alta autoridade do país para lhe dar um livro, A Constituição Inglesa, de W. Bagehot, um clássico de 200 páginas sobre uma coisa que não tem uma letra e pode tudo.

Mais de meio século depois, se a luta de classes já não é o que era, as suas razões e consequências eram visíveis para quem subisse os grandes degraus da Cantina Velha. Lá dentro, o já tradicional Natal da Comunidade Vida e Paz. "Não é sopa dos pobres, não é comida, é estar junto", disse Natacha, que num ano trouxe Sandra, que no ano seguinte trouxe Rita, e ali estavam as três, com a mais humilde das T-shirts, as brancas, que não coordenavam nada, só serviam. Pelos dois andares do grande edifício, servia-se quem chegava, por vezes, com a casa às costas, dois cobertores enrolados.

Podia tomar-se banho, fazer o Cartão de Cidadão, cortar o cabelo, abrir conta na Caixa Geral, escolher roupa usada e limpa ou simplesmente ter alguém para ouvir o que é ser rapaz e se suspeitar que talvez não seja bem assim. Também se podia fazer retratos gratuitos: uma mulher que já foi bela, ou estava somente demasiado carregada de carmim, fez de diva, de botas cruzadas e um cachecol frufru. Quis ver várias poses e quis a impressão de "essa, aí". Quis. Uma gentil voluntária ofereceu-se para jogar xadrez com um mendigo, nem reparou que ele era louro, russo ou ucraniano, e ela esteve uma hora a perder partidas cada vez com xeque-mates mais rápidos.

Com ou sem

Aquilo era Comunidade Vida e Paz, um mundo extraordinário e sem as quatro câmaras e os fotógrafos que esperavam o Presidente no sopé da escadaria. O Presidente disse qualquer coisa, subiu a escadaria e as câmaras e os fotógrafos subiram ao mundo extraordinário. À entrada, Marcelo pediu uma camisola branca de voluntário e vestiu-a sobre a camisa e a gravata. Depois foi estar e dar-se. Mão na mão, mãos nos ombros, dois beijos, selfies, abraçar casais ao par e inclinar-se para falar ao ouvido. Marcelo.

Beija uma mulher e o marido, desdentado, põem-se a saltar sobre os dois pés: "Ela nunca tinha beijado um Presidente!" A uma voluntária que se apresentou como sua aluna, disse: "Isso deve ter sido nos finais dos anos 1990..." Ela sorriu, tirara-lhe 20 anos: "Foi em 1978, na cadeira de [Direito] Constitucional." Marcelo desapareceu. Entrou na cozinha e perguntou: "A secretária de Estado onde está?" Cláudia Joaquim apareceu, preparada para tudo. "Já estive numa noite numa praça no Porto, gelada, de joelhos e ele sentado no chão. Falávamos com dois sem-abrigo, deitados."

O Presidente recebeu escuteiros e pobres da Cáritas de Setúbal, na sala das Bicas, acenderam uma vela e falaram do Natal. "Venham conhecer o palácio, a vossa casa", convidou. Passou pela capela, onde os quadros de Paula Rego intimidam e na sala de audiências mostrou a mesa: "O primeiro-ministro senta-se ali e eu aqui." Levou o grupo à galeria dos retratos dos antecessores, numa parede, os da República e do Estado Novo, a preto e branco, noutra, os da democracia, a cores. Deteve-se no de Teixeira Gomes: "Um dia perguntou: qual o primeiro navio que sai de Lisboa amanhã? Partiu num barco para a Argélia e nunca mais voltou." Rematou no seu retrato: "E esse velhinho sou eu", disse para o escuteiro mais miúdo. Neste ano, os netos de Marcelo não vieram como era costume passar as Festas a Lisboa, viviam no Brasil e foram viver com pai, Nuno, para a China.

O Presidente levou-me à sala de audiências. Não me convidou para a mesa onde dialoga com António Costa, levou-me para o sofá, ao lado do seu cadeirão. Havia dois copos de água, que não foram bebidos na hora e oito minutos em que o Presidente falou e eu mal disse duas frases. Levantou-se de rompante e encaminhou-me para a porta, por trás dos reposteiros as duas grandes janelas mostravam as luzes da noite. O Presidente parou no meio do salão e virou-se para mim: "Agora já percebeu porque hesito..." Hesita, o quê?, não perguntei porque ia conhecendo Marcelo Rebelo de Sousa. "Depois da operação à hérnia já não sou o mesmo. Foi de urgência... Isto é muito solitário. Com os meus netos cá não faria isto. Em 2020 decido... Dois anos, hei de cumpri-los bem. Mas mais cinco anos? Não sei..."

Elegante, passo lesto, dirigiu-se de novo para a porta e apertou-me a mão firmemente.

CRÓNICA DO REPÓRTER: SEM PERGUNTAS, COM RESPOSTAS

Ninguém entrevista Marcelo Rebelo de Sousa. As entrevistas (amorosas, profissionais, jornalísticas...) são combinadas entre pessoas. Lá está, quando Marcelo tem coisa mesmo importante para dizer, mais que uma pessoa já é demasia. Não que a outra ou as outras estejam a mais, ele mostra quase sempre e de forma genuína que ela ou elas contam para ele. As pessoas, aliás, são o seu assunto preferido e as pessoas sabem-no e gostam disso. Mas é uma perda de tempo propor-lhe uma entrevista. É um desperdício, em vez disso, não aceitar a aula sempre tão disponível que tem para nós o professor Marcelo. Ele está ali, onde estiver, para ensinar, dizer, exprimir e fazer sentir. Fazer sentir é o seu programa letivo atual, como os portugueses sabem.

Em corrida política, discutir e trocar opiniões com o concorrente Marcelo, aí, sim, talvez os adversários ganhem com isso, como já ganharam. Sobre os temas ele saberá quase sempre mais mas pode haver eleitores distraídos sobre o essencial, a reparar, e não gostar, que ele não debata em direto, paire algures - o que explicaria, aliás, a carreira política dele, com mais desaires do que vitórias. A única grande vitória do político Marcelo foi nas presidenciais de 2016, quando percebíamos que ele pairava mas, nesse tempo que se tem prolongado, era exatamente do que precisávamos. Um dia iremos voltar a deixar de gostar vê-lo pairar?

Marcelo Rebelo de Sousa concedeu-nos alguns dias assim, de mosca, sem evidentemente prejuízo para a República. Ele cruzava-se com o DN nos corredores de Belém, com a mesma desatenção dedicada aos bustos romanos da Sala das Bicas. Deixou-nos assistir a cumprimentos natalícios no seu gabinete e a telefonemas avulsos como se fôssemos discretos seguranças.

Entretanto, ao trazer este Presidente a um jornal, para perguntas e respostas, ficamos sempre, jornalistas e leitores, a perder. É o jornalista aceitar a figura de pé de microfone, como tantos se arriscaram nos programas que participaram com ele. Sem a vantagem, que tem o televisivo, de o apresentar, a ele, ao vivo, e, ao seu verbo, a cores. O DN pediu, pois, ao Presidente para, no palácio e fora dele, tomar este jornal como uma mosca, como se diz daquilo que está por ali, embora sem parecer.

Marcelo Rebelo de Sousa concedeu-nos alguns dias assim, de mosca, sem evidentemente prejuízo para a República. Ele cruzava-se com o DN nos corredores de Belém, com a mesma desatenção dedicada aos bustos romanos da Sala das Bicas. Deixou-nos assistir a cumprimentos natalícios no seu gabinete e a telefonemas avulsos como se fôssemos discretos seguranças. Fez de conta que dava por nós em momento popular, com o mesmo "então, por aqui?" que nos repetia duas horas depois num ato oficial, quilómetros adiante.

No palácio, na galeria de fotos, fingiu aceitar que éramos mais um chefe de escuteiros que lhe escutava os currículos dos seus antecessores em Belém. Num jantar, fez de conta que éramos mais um correspondente estrangeiro. Em uma só vez se deixou importunar por nós, substituindo a meio um faits divers que contava, por outro menos interessante, quando se deu conta de que testemunháramos o anterior horas antes. No seu gabinete oficial, durante 1:08 minutos marcados no gravador, fez questão de mostrar que o sofá à direita do seu cadeirão é cómodo até para um pé de microfone. Em troca, não o entrevistámos. Entretanto, mais importante, andámos a ouvi-lo e a dar conta dele.

Fonte: DN.pt

 

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