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Ana Gomes é vítima de um crime com demasiados suspeitos

07-12-2018 - Paulo Pena

A eurodeputada portuguesa foi alvo de uma notícia falsa posta a circular por uma rede internacional cautelosa. A história envolve um milionário do Cazaquistão que teve negócios com Donald Trump e que a Rússia quer prender. O Facebook fechou a página. A Interpol e a Polícia Judiciária estão a investigar.

Há duas semanas, no dia 14 de novembro, o e-mail oficial da eurodeputada portuguesa Ana Gomes, do PS, recebeu uma mensagem. Vinha assinada por Kevin Holland, que se fazia passar por jornalista. "Cara Ana, vou publicar uma história no EU Anti Corruption sobre a sua visita ao Cazaquistão e particularmente sobre uma fotografia sua com Gaini Yerimbetova." Começava assim omail.

Holland acrescentava que não queria sugerir que Ana Gomes conhecesse os "contactos de Yerimbetova com Mukhtar Ablyazov", mas deixava no ar uma ameaça. "Parece sério, dada a natureza do seu cargo no comité sobre crimes financeiros." Ana Gomes é vice-presidente da Tax 3, a comissão de inquérito do Parlamento Europeu que investiga crimes financeiros, elisão e evasão fiscal.Mukthar Ablyazov é um financeiro e ex-político, cazaque que a Rússia quer extraditar de França, que financiou operações imobiliárias de Donald Trump na Geórgia e em Nova Iorque. Ablyazov pode ser um dos pontos-chave da investigação de Robert Mueller aos negócios de Donald Trump com a Rússia.

Mukthar Ablyazov é um ex-banqueiro do Cazaquistão acusado de desviar dez mil milhões de euros de fundos.

O artigo de que Kevin Holland (um pseudónimo, como veremos) falava no e-mail apareceu online logo no dia seguinte. "As ligações da eurodeputada Ana Gomes ao mundo obscuro de um fraudulento global." A acusação não podia ser mais clara. O texto explica logo a abrir: "Ela pode ter sido involuntariamente cooptada pelo perpetrador de um dos maiores crimes financeiros da história - Mukthar Ablyazov." O artigo não está assinado. A página não tem qualquer contacto. Consegue ser tão anónima que não permite localizar qualquer origem.

A explicação para tudo isto é o início de uma outra história que começa na Malásia, continua na Holanda, na Rússia, no Cazaquistão, na Polónia, na Suíça, em Malta, nos EUA, em Lisboa e em Bruxelas. Está a ser investigada pela Europol e pela Polícia Judiciária. É uma história de segredos e mentiras. Mas só sabemos o nome das vítimas e uma delas é Ana Gomes.

Bitcoins e mail suíço

No dia 16 de agosto, poucos minutos antes das duas da tarde, foi registada na Malásia a página EU Anti Corruption. A empresa (o provedor de serviços) chama-se I Love www e faz parte da Shinjiru Technology Sdn Bhd, uma companhia de serviços informáticos sediada em Kuala Lumpur. "Se está à procura de alojamento offshore e quer manter-se anónimo online, escolha o alojamento BitCoin e proteja a sua identidade!", diz o anúncio na página da empresa malaia. "O nosso sistema permite-lhe permanecer anónimo e com identidade protegida pagando com BitCoins."

site registado anonimamente na Malásia ficou alojado em dois servidores distantes. Um da empresa Hostkey, que tem sede em Amesterdão e em Moscovo, e outro em Kuala Lumpur, da Schinjiru.

Quem fez tudo isto? É um segredo bem guardado. Quem quer que fosse sabia que ao contratar a Schinjiru, na Malásia, o anonimato ficava garantido. Nem o pagamento do serviço deixa rasto, se for feito através da moeda digitalbitcoin, que não é regulada.

"Não conheço, nem nunca fui contactada por Ablyazov", Ana Gomes

No mesmo IP do site que difama Ana Gomes funcionam outras 23 páginas alojadas nos mesmos servidores. São todas com esquemas fraudulentos. Uma delas copia o grafismo e a informação de um banco inglês e tenta levar as pessoas a fornecer os seus dados privados. Chama-se Birmingham Credit Union e não existe. Já foi denunciado como um site falso.

Nos e-mails que enviou a Ana Gomes, o suposto jornalista Kevin Holland (que não tem qualquer registo profissional) também garantiu que se manteria anónimo. O seu remetente, "Kevin Holland 69", usa uma conta no Protonmail, um dos mais seguros e anónimos do mundo. Foi criado por investigadores europeus do CERN, em 2013, e hoje é o mais bem-sucedido serviço de encriptação de mensagens, com mais de dois milhões de utilizadores. A sede é na Suíça, um dos países do mundo onde as leis garantem maior privacidade. Desde março, o Proton permite, por exemplo, a um utilizador aceder a este serviço de mail através do sistema Tor. Ao contrário dos outros correios eletrónicos normais, este não permite conhecer o local de onde um e-mail é enviado.

Por isso, o site EU Anti-Corruption é anónimo do princípio ao fim. Não há registos de nenhum criador, de quem o paga, de quem manda mails em seu nome. E é aqui que a história se complica um pouco mais.

Facebook fecha página

Apesar de estar "limpo" de qualquer nome, ou caixa de correio eletrónico, o site apresenta-se como oficial. Tem um símbolo que parece uma mistura de vários: uma águia heráldica polaca ao centro, doze estrelas em volta (e não as 28 da bandeira da União Europeia), uma balança, símbolo da justiça.

Até o nome é uma tentativa de criar confusão com um outrosite, oficial, chamado EU Anti-Corruption Initiative - que tem o apoio da União Europeia e do governo dinamarquês para combater a corrupção na Ucrânia.

Há, no entanto, um requinte especial. O site justifica o seu anonimato com esta declaração: "Somos uma plataforma de notícias gerida por jornalistas e voluntários de todo o continente [europeu] preocupados com o aumento da corrupção na União Europeia." Usam até uma frase adaptada de um conhecido mote do grupo de hackersAnonymous: "Estamos em lado nenhum. Estamos em toda a parte."

Desde segunda-feira, quando dois responsáveis do Facebook se dirigiram ao gabinete de Ana Gomes, em Bruxelas, para tomar conhecimento desta história, o sitedeixou de ter uma página na maior rede social. Primeiro, o Facebook bloqueou os textos partilhados sobre Ana Gomes. Durante a semana passada, bloqueou também a própria página da suposta organização.

Essa página tinha 23 mil seguidores, quase todos falsos -trolls, na linguagem do meio -, com ligações a outros sitesde desinformação que as autoridades suspeitam ser promovida pelos serviços secretos russos. Os dois únicos perfis reais que comentavam as notícias na página acusavam-na de fazer fake news.

A pista de Malta

A suposta notícia sobre Ana Gomes foi partilhada por pessoas bem reais. Os membros de um grupo de apoiantes do Partido Trabalhista, no poder em Malta, foram dos primeiros a conhecer a versão errada da história da eurodeputada portuguesa e do milionário cazaque. A página Laburisti sal Mewt publicou no Facebook a notícia falsa. Deste grupo de apoiantes do partido maltês fazem, ou fizeram, parte a presidente do país, Marie Louise Preca, o primeiro-ministro, Joseph Muscat, além de vários ministros. O partido é membro do PSE, tal como o PS.

No ano passado, pouco tempo antes de ser assassinada, a jornalista maltesa Daphne Galizia, que investigava o caso dos Panama Papers e as ligações de políticos do país a offshores, denunciou o Laburisti (o tal que difama Ana Gomes) como um "grupo de ódio".

A ligação, neste caso, é óbvia. Ana Gomes liderou o grupo de eurodeputados que se deslocou a Malta para indagar os responsáveis políticos locais sobre as investigações à morte da jornalista Daphne Galizia. Na altura, Ana Gomes lamentou que "os desenvolvimentos verificados em Malta nos últimos anos tenham suscitado graves preocupações quanto à situação em matéria de Estado de direito, democracia e direitos fundamentais, nomeadamente a liberdade dos meios de comunicação social e a independência das forças policiais e judiciárias".

Como vemos, o site que agora difama Ana Gomes tem leitores em Malta. Mas há outras pistas no caminho que a Polícia Judiciária e a Interpol têm de avaliar.

Putin, Trump e Ablyazov

O texto sobre Ana Gomes é apenas um dos muitos que aparecem no site sobre o milionário do Cazaquistão Mukthar Ablyazov. Há outros que o ligam a uma ONG polaca, a Open Debate. Ablyazov parece ser o alvo preferido do grupo que quer expor a corrupção na União Europeia.

Há um detalhe relevante. Ablyazov esteve preso entre 2013 e 2016 na União Europeia, em Fleury-Merogis, França. E tem processos judiciais em Inglaterra e nos EUA.

Até 2009, quando fugiu do Cazaquistão, Ablyazov era o líder do BTA, o maior banco do país. Em 2005, decidiu atribuir um empréstimo de 300 milhões de euros a uma empresa, a Silk Road Group, para fazer investimentos imobiliários na Geórgia. Era uma soma absurda e um projeto megalómano.

Donald Trump, em 2012, à chegada ao aeroporto de Tbilisi, na Geórgia. Um dos projectos que assinou era o de uma torre com o seu nome construída por um grupo financiado por Ablyazov.

Foi, aparentemente, um esquema de evasão fiscal e de lavagem de dinheiro. A Silk Road Group não é propriamente uma empresa - é um conjunto de empresas sediadas em várias partes do mundo. Um dos seus maiores investimentos estava destinado à Batumi Riviera Holding (imobiliária que iria desenvolver uma região pobre da Geórgia) que era detida pela Tbilisi Central Plaza, que tinha a sua sede em Malta.

Ablyazov fugiu do Cazaquistão depois de apoiar um partido rival do do líder Nursultan Nazarbayev. O Estado cazaque tomou conta do banco BTA e acusou Ablyazov de se apoderar de dez mil milhões de euros indevidamente através de 600 empresas-fantasma. O banqueiro nega e diz que as acusações contra si são políticas.

O seu financiamento ao Silk Road Group, de 300 milhões, tem efeitos a milhares de quilómetros de distância. Donald Trump recebeu um milhão de dólares pelo seu patrocínio a um edifício de 47 andares, com um casino, na cidade de Batumi. Ali iria nascer, conforme o acordo assinado em 2012, durante uma visita de Trump à Geórgia, a Batumi Trump Tower. Um empreendimento do Silk Road Group, pago com o dinheiro que Ablyazov lhe entregara antes de fugir do Cazaquistão. A torre nunca chegou a ser construída. Trump retirou o seu nome do acordo pouco antes de entrar na campanha presidencial, em 2016. Mais recentemente, uma investigação do consórcio de jornalistas OCCRP também ligou o dinheiro de Ablyazov a um empreendimento imobiliário de Trump no SoHo, em Nova Iorque.

O envolvimento de Trump neste carrossel de dinheiro está a ser investigado pelo FBI. Mas essa não é a última pista deste caso.

Há mais quem conheça a ligação entre Trump, a Geórgia e o dinheiro do Cazaquistão: o Kremlin. A Rússia pediu à França que extraditasse Ablyazov para Moscovo. O ex-primeiro-ministro socialista francês, Manuel Valls, chegou a concordar com esse pedido, quando o cazaque estava preso. Mas uma decisão do Conselho de Estado francês fez parar a extradição, considerando que o processo judicial russo era motivado por "razões políticas" e fazia prever o uso de tortura. A comissão de Direitos Humanos da ONU, bem como a Amnistia Internacional, tinham alertado para essa possibilidade também.

Putin cumprimenta Trump à margem das cerimónias dos 100 anos do fim da Grande Guerra, a 11 de novembro, em Paris.

Mas este quebra-cabeças em que uma notícia falsa tenta ligar a eurodeputada portuguesa a um bilionário do Cazaquistão terá tido um motivo. Talvez seja o seu papel na investigação europeia aos offshores. Ou as suas críticas ao papel de políticos de Malta nesse processo. Tudo pode não passar de uma operação mais vasta, destinada a pressionar a extradição do banqueiro cazaque para Astana ou para Moscovo. Ou ainda uma forma de retratar, para os cidadãos europeus, as "ligações" políticas de Ablyazov, para desacreditar a sua participação em acontecimentos reais e documentados - como o seu financiamento de projetos imobiliários de centenas de milhões.

Ana Gomes não tem resposta para a pergunta que falta responder: quem tentou ligá-la a este processo? Por isso, nas últimas semanas fez chegar o seu pedido de investigação à PJ, à Europol, à polícia belga e disso deu conta a Antonio Tajani, presidente do Parlamento Europeu, aos três presidentes das comissões parlamentares que integra (Negócios Estrangeiros, Libe e Tax 3) e a Cristian Dan Preda, que chefiou a visita dos eurodeputados ao Cazaquistão. E acrescenta uma garantia: "Não conheço, nem nunca fui contactada por Ablyazov."

Artigo Publicado originalmente no Diário de Noticias

 

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