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Política em Portugal: o reino onde os pobres não entram

17-08-2018 - João Pedro Henriques

É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um pobre em Portugal ascender às elites da política. E é mais assim em Portugal do que noutros países europeus. Porquê?

Parafraseando o Evangelho de São Marcos ("é mais fácil passar o camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar o rico no Reino de Deus"), este é um dos grandes paradoxos da política em Portugal: sendo um dos países com um nível de escolaridade média mais baixa da Europa, é no entanto, em simultâneo, um dos países com uma classe política mais elitista.

A política nacional é um território onde, genericamente, os pobres não entram. Existem, é claro, exceções - mas que fazem o habitual serviço das exceções: confirmam a regra.

Basta olhar para o panorama das atuais lideranças partidárias com assento no Parlamento. Jerónimo de Sousa é a exceção: nasceu em meios desfavorecidos da periferia operária de Lisboa (Loures, onde aliás ainda vive), começando a trabalhar aos 14 anos como afinador de máquinas. Filiou-se no PCP depois do 25 de Abril e ascendeu na hierarquia do partido por via do sindicalismo metalúrgico.

De resto, temos António Costa (filho da elite intelectual de Lisboa); Rui Rio (educado num dos mais seletos colégios privados do Porto, o Colégio Alemão); Catarina Martins (filha de pais professores, classe média do funcionalismo público); Assunção Cristas (mãe médica, pai herdeiro de empresas na Angola colonial).

E se olharmos para o panorama geral das lideranças partidárias em Portugal desde o 25 de Abril constata-se exatamente o mesmo, desde os "pais fundadores" do regime (Mário Soares, Álvaro Cunhal, Sá Carneiro e Freitas do Amaral, todos originários de meios sem dificuldades), passando para as gerações seguintes: Cavaco Silva (filho de um proprietário agrícola e comercial do Algarve), Jorge Sampaio (elite do funcionalismo público), Carlos Carvalhas (proprietários rurais de Viseu). E as outras a seguir também: António Guterres, Durão Barroso, José Sócrates, Pedro Passos Coelho, António José Seguro, Manuela Ferreira Leite, Marques Mendes, Pedro Santana Lopes, Manuel Monteiro, Paulo Portas, só para dar alguns exemplos; ou ainda o corpo fundador do Bloco de Esquerda (Francisco Louçã, Fernando Rosas, Miguel Portas e Luís Fazenda): nenhum deles nasceu na pobreza e, nalguns casos, muito pelo contrário.

António Ferro (esq.) foi o principal artífice da imagem, interna e externa, do regime de Salazar (sentado, tendo o escultor Francisco Franco a fazer-lhe um busto). Ferro não terá chegado a ministro por não ser licenciado.

Mais uma vez, há sempre exceções. Mas na verdade é preciso procurar com uma lupa para as encontrar. Vítor Constâncio, por exemplo, foi quase tudo em Portugal - membro do governo, governador do Banco de Portugal, líder do PS -, chegando na UE ao cargo de vice-presidente do BCE, apesar de ter sido criado num dos bairros mais pobres de Lisboa, o Bairro da Liberdade.

Ora, o que acontece é que Portugal não tem apenas uma classe política em que os pobres pouco ou nada entram. Na verdade, essa marca distingue o país dos outros da UE, nomeadamente Espanha, Itália, França, Alemanha, Reino Unido ou os países escandinavos.

"Portugal sempre teve uma elite política mais elitista do que as outras"

António Costa Pinto, cientista político no ICS (Instituto de Ciências Sociais), tem dedicado o essencial do seu esforço como investigador nos últimos anos ao estudo das elites políticas não só portuguesas como europeias. Foi, por exemplo, um dos coorganizadores de um estudo sobre o recrutamento de todos os ministro dos países da Europa do sul entre 1840 e 2000 ("Quem governa a Europa do sul", edições Imprensa de Ciências Sociais). Baseado no que estou estudou, assegura: "Portugal sempre teve uma elite política mais elitista do que as outras."

E a coisa não é de hoje. Como tudo, tem uma raiz histórica: na 1.ª República, fundada em 1910, "a grande maioria dos ministros eram licenciados" - algo particularmente extraordinário num país com quase 80% de analfabetos; depois Salazar (filho de um feitor agrícola de Viseu) recrutou essencialmente nas elites académicas da universidade (Coimbra, em particular, a universidade onde se formou). Conta-se até que António Ferro (1895-1956), o principal artífice da propaganda do Estado Novo e da imagem (interna e externa) do regime liderado por Salazar, nunca chegou a ministro porque o ditador recusava não licenciados no seu executivo.

Qual foi então o fator que distinguiu - e ainda distingue - Portugal dos restantes países. Costa Pinto avança uma explicação: por múltiplas circunstâncias, no espaço entre as duas grandes guerras do século XX, "não existiram em Portugal grandes partidos que romperam com as formas tradicionais de recrutamento" do seu pessoal, recrutando a partir da base da hierarquia social e em vez de a partir das classes médias ou do topo.

Esses partidos foram, nos restantes países, os partidos comunistas, fascistas e trabalhistas. Nos comunistas, o recrutamento fez-se em grande parte - e até com formas de discriminação positiva - nos setores operários (o que explica que hoje o líder do PC português seja um operário); os partidos fascistas como o alemão e o italiano e até um pouco o espanhol também se afirmaram mobilizando os setores mais desfavorecidos da sociedade, que alguns qualificam mesmo como a ralé; e os partidos trabalhistas, que deram origem aos partidos socialistas e sociais-democratas, também nasceram a partir de estruturas sindicais (daí chamarem-se trabalhistas).

Nada disso houve em Portugal. O PCP nasceu em 1921 e no final dessa década já tinha sido declarado ilegal. Cinco décadas na clandestinidade (até ao 25 de Abril de 1974) nunca lhe permitiram tornar-se um grande partido de massas - e muito menos um partido dominante. Os fascismos italianos e alemão e a sua forma de organização e recrutamento também nunca se transladaram para o partido único do Estado Novo, a União Nacional, uma organização que Salazar nunca permitiu que fosse de massas; e o PS português, que é o partido homólogo dos partidos trabalhistas europeus, não teve origem sindical, sendo antes formado a partir de elites liberais (advogados, nomeadamente, começando pelo próprio Mário Soares).

A pobreza e o combate à pobreza ocupam uma parte significativa dos discursos políticos hoje em dia. Mas a pobreza nunca foi um território que tivessem habitado.

Fonte: DN.pt

 

 

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