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«Estamos em cima de uma crise como a de 1929 ou pior. Temos de fazer escolhas»

15-11-2013 - R.Vida Judiciária

Entrevista de Raquel Varela à Revista Vida Judiciária, Outubro de 2013

Como avalia o binómio receita/despesa da nossa segurança social, tendo em conta a atual conjuntura e os elevados gastos com pensões e, particularmente, com desemprego e rendimento social de inserção (RSI)?

A despesa sobe, e não é por causa do RSI. Houve até com este Governo um corte de quase 100 000 pessoas que deixaram de receber. Para mim o problema do RSI não é o valor, trata-se de um valor baixo, de mera reprodução biológica, que garante que aqueles trabalhadores disponíveis mas desempregados continuam vivos e disponíveis (e por isso pressionam para baixo os salários dos que estão empregados). Trata-se de gestão da força de trabalho, mas o que ganham mal dá para comer. Comem mal.

O problema do RSI é que ele significa, ele produz, alguma letargia social. Dependência – não é por acaso  que é aconselhado pelo Banco Mundial para evitar revoluções e revoltas sociais. É óbvio que as pessoas devem receber algo se estão mal, mas creio que o direito ao trabalho não pode ser substituído pelo direito a um rendimento mínimo.

Volto à sua questão. Há uma quebra na Segurança Social mas é porque há desemprego, precariedade e cortes salariais e porque o Estado descapitaliza a Segurança Social e não porque as pessoas vivem mais. Permita-me dar alguns exemplos. Os fundos de pensões da Marconi, CGD, PT, ANA foram transferidos para o Estado, hoje valem menos 1/3 (eram 4560 milhões e valem hoje 3386 milhões); dívidas acumuladas à segurança social (são já mais de 9 mil milhões, mais do que o orçamento do SNS). 1,4% do PIB já é gasto em formação profissional (na verdade trata-se de, passe a expressão, «entreter» os trabalhadores para as empresas não perderem lucros em momentos de baixa da produção). Antes, as paragens da produção, a diminuição de encomendas eram assumidas como riscos do investimento; agora envia-se a factura para a Segurança Social. Os programas ditos de apoio ao emprego são uma forma de delapidar recursos e não apoiam o emprego. Em 1991 uma empresa podia ser dispensada de pagar segurança social por 3 anos se contratasse um trabalhador por tempo indeterminado. Hoje a empresa contrata um trabalhador 6 meses, despede-o e quem paga esses 6 meses é a segurança social. Temos até a utilização do fundo da Segurança Social para «ajuda humanitária ao Kosovo»! E utilização do fundo para financiar o Estado, obrigando ao investimento em títulos da dívida pública.

Constatamos, por outro lado, que tem sido necessário que o Estado vá cobrindo o défice da segurança social, através de transferências do Orçamento do Estado. Esse não é precisamente um indicador de que a segurança social não é sustentável só com as suas receitas?

Por exemplo, o fundo de pensões da Banca foi transferido para o Estado, mas para pagar dívidas à banca e às farmacêuticas. Hoje, saem do OE 530 milhões anuais para pagara as pensões destes pensionistas. Mas o que têm os pensionista da segurança social, que toda a vida descontaram, a ver com isto? Nada. Transformou-se um problema da banca e das farmacêuticas (dois dos sectores mais lucrativos do mundo) num assalto ao salário social de quem trabalha.

Ou será necessário diversificar as fontes de financiamento da segurança social? O que é que defende a este nível?

Como disse, mantendo relações de trabalho padrão (pleno emprego e salários decentes) e não permitindo a sua descapitalização, a segurança social é superavitária. Não é preciso diversificar as fontes, embora seja claro que as grandes empresas que têm muita tecnologia e poucos trabalhadores pagam muito menos do que deviam. Nem sequer tinha sido necessário introduzir o factor de sustentabilidade, então pelo Governo PS – ele já foi induzido, quanto a nós erradamente, para fazer face à descapitalização por parte do Estado, que de um lado usa os fundos para sectores que não devia e do outro promove e regula a flexibilização laboral. O trabalho não foi desregulado. É a política, por isso escolhas, que define as relações laborais. O trabalho foi flexibilizado por regulamentação estatal.

O volume de desemprego em Portugal é dos mais elevados da Europa (apesar dos ligeiros decréscimos do últimos 3 meses). Crê que a segurança social tenha condições financeiras para continuar a pagar estas obrigações sociais?

O subsídio de desemprego é um desconto dos trabalhadores. Não é uma benesse da segurança social. Portanto, se ninguém mexer nesse dinheiro, ele tem que lá estar. Não acho é que haja condições de haver uma sociedade sustentável – como sociedade humanizada, civilizada – com estes índices de desemprego. Não é só a segurança social, nada é sustentável com tanta gente desesperada sem trabalho.

Para finalizar, gostaria de lhe pedir uma/duas ideias centrais sobre aquilo que deveriam ser, em sua opinião, as prioridades do Governo em matéria de segurança social e como forma de garantir a sua sustentabilidade. Se fosse ministra da tutela o que faria?

Devolvia todo o dinheiro roubado. Torno a dizer que é roubado porque as pensões e reformas são salário social – é um salário diferido no tempo. São remunerações do trabalho feito pelos trabalhadores. Suspendia o pagamento da dívida pública, que é uma renda fixa de capital. Era de 70% do PIB em 2008, agora é de 130%. O chamado resgaste é inteiramente um resgate da banca. Produzimos 100 e pagamos 130. Isto é possível? Não. O que faria mais? Iniciava um programa geral de pleno emprego com redução do horário de trabalho sem redução salarial. A segurança social voltava imediatamente a ser superavitária. Quem perdia? Quem tem…contas na Suíça! A Alemanha invadia-nos? Seria uma novidade histórica num contexto destes. Suspendiam os investimentos? E as consequências que isso teria em toda a Europa? Pergunto eu, se me permite: como olhariam para nós os outros povos da Europa? Falo dos povos da Europa, não dos actuais dirigentes políticos. Olhar-nos-iam como uns caloteiros que falharam o pagamento de uma dívida honrada ou como um povo corajoso que seria daí para a frente um exemplo de resistência e civilização?

Podia mentir e responder que faria uma renegociação da dívida favorável, propunha eurobonds… Mas isso é uma utopia histórica, assente na ideia de que na Europa seria possível um movimento como o que unificou os EUA no final do século XVIII. Isso aconteceu no quadro do início do desenvolvimento histórico do capitalismo. Estamos no século XXI, acreditar que essa solução é viável descansa as consciências, mas não impede a regressão social porque é o mesmo que acreditar que os empresários alemães vão abdicar de uma parte dos seus lucros para os trabalhadores portugueses, gregos, alemães. O que se verifica hoje é que a Europa não está a resistir, de forma civilizada, isto é, sem impor retrocessos sociais, à sua primeira grande crise. 50 milhões de desempregados, precarização e generalização dos empregos parciais com baixíssimos salários, descapitalização da segurança social – este é o cenário europeu.

Com sinceridade, eis o que pondero: estamos em cima de um 1929. Estou convencida disso. Pode ser que me engane. Mas se eu estiver certa, e tantos outros colegas que pensam o mesmo, o sistema financeiro mundial teria colapsado em 2008 sem ajudas milionárias. Mas essas ditas ajudas não caem do céu. A sociedade tem limites produtivos, um bolo que não cresce indefinidamente. A conta foi enviada para o único lugar que produz – salários e pensões (salários diferidos). Porque esta crise deixou claro que dinheiro não produz dinheiro – a economia de casino só existe se e quando se valoriza na produção real. Isto é numa palavra, nos salários. Estamos em cima de um 1929 ou pior porque a acumulação foi muito maior, porque estamos no meio de um processo de globalização muito mais extenso.

Temos de fazer escolhas, que não são mais possíveis no quadro da proposta keynesiana de esquerda de que lucros e salários podem crescer juntos. Há um keynesianismo de direita que é o militarismo, a criação de uma economia de guerra, que é como têm vivido os EUA, parcialmente desde a II Guerra Mundial. Ora, estamos numa fase, acho, em que ou crescem os lucros ou os salários, e se forem os salários a baixar isso tem um significado – queda geral dos padrões sociais de civilização, crescimento da barbárie. Este ano venderam-se em Portugal 75 000 comprimidos por dia para doenças do foro psíquico, há 100 mil crianças em risco, generalizam-se as cantinas sociais (a nova sopa dos pobres), há 1 milhão e 400 mil desempregados. Isto não é uma expressão de barbárie social? Temos de ter coragem para impedir isto – pelos pensionistas, pelos nossos pais, avós, mas também por nós e pelos nossos filhos.

 

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