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Roite idn

04-07-2014 - Jacques Gruman

Lamentavelmente, por descuido, má fé ou, pior, preconceito, setores da esquerda ainda defendem posições que se espelham no lixo anti-semita.

Em casa pequena, não há cantos inacessíveis. O Menino entrava no quarto dos Grandes quando queria ouvir rádio, asas valvuladas para um espírito prisioneiro. O velho Halicrafters, carcaça de ferro e projetado para radioamadores, foi há pouco ressuscitado e repete, orgulhoso, os chiados da velha tecnologia. Para chegar lá, passava por uma velha estante com portas de vidro. Dentro, livros mal arrumados e papéis misteriosos. Dava um jeito de bisbilhotar e lia nomes estranhos nas lombadas meio gastas. Guy de Maupassant, Romain Rolland. Alguém ainda se lembra deles ? Eram volumes alentados, que desanimavam o leitor iniciante, interessado não apenas nos textos, mas também na quantidade de ilustrações que diminuíam a carga de leitura. Que o diga a coleção inteira do Monteiro Lobato, devorada com prazer – e sem a culpa que os neo-intérpretes jogam em quem está chegando agora na obra do admirável taubatense. Um dia, o olho bateu num livro meio escondido. Cavaleiro da Esperança, dum tal Jorge Amado, a quem seria apresentado aos 13 anos com o deslumbramento da novidade erótica. Claro, naquela altura do campeonato e da explosão hormonal adolescente, quem é que estava interessado em miséria, tenentismo, relações de poder, luta de classes ? Bom era procurar nas muitas páginas dos outros livros do baiano as descrições detalhadas dos encontros sexualizados, com doses generosas de palavras proibidas.

Quem era o Cavaleiro da Esperança? Por que alguém se interessaria por ele? Descobriu, muito tempo depois, que havia sido um presente dado ao Zissi pela irmã Malvina. A mesma que lhe daria Judeus sem dinheiro no bar-mitzvá. Clássico da literatura de esquerda, realismo socialista, escrito por um militante judeu do Partido Comunista dos Estados Unidos, descreve as condições de trabalho desumanas a que foram submetidos os imigrantes judeus nas chamadas sweat shops da indústria têxtil nova-iorquina, no início do século vinte. Aquilo era mais do que um presente: era uma declaração de intenções, um convite à valsa. E o Menino saiu a bailar.

Malvina e seu marido, o tio Bóris, vieram da Bessarábia, um lugar muito pobre e que oferecia poucas perspectivas de uma vida melhor. Eram típicos roite idn, judeus vermelhos. Cultivaram a cultura da clandestinidade, forçados pela perseguição incansável dos inimigos ideológicos. Ganharam aos olhos do Menino uma dimensão épica, dessas que namoram o mito. Personagens interessantes, persuasivos, de fala mansa e carinhosa. Foram irmãos de navio de outros bessarabianos progressistas que aqui chegaram, reforçando as correntes judaicas de esquerda que militaram na vida política brasileira. Sem abandonar as raízes culturais, empreenderam a difícil jornada pela construção do socialismo. Conheci uma brava bessarabiana, que, ainda adolescente, já estava fichada pela polícia local como perigosa “subversiva”. Fugiu para o Brasil para não ser presa.

Para os não iniciados, conhecer essa história pode ser uma novidade. Há muita ignorância sobre os judeus. Um exemplo banal. Está nos dicionários: judiar quer dizer, entre outros mimos, fazer sofrer, atormentar, maltratar. Na longa e polivalente malha do anti-semitismo, a imagem do judeu é eclética. Pode ser o sovina, o ardiloso, o traiçoeiro oportunista, o financista ganancioso, o capitalista frio. Isso não impede que o associem às tentativas de “destruir a sociedade ocidental” através do socialismo. O anti-judaísmo moderno tem raízes antigas. Já no século IV, o Sínodo de Elvira proibiu o casamento entre judeus e não judeus. No século VI, o 3º Sínodo de Orleães proibiu que os judeus tivessem servos ou escravos cristãos. No mesmo Sínodo, proibiu-se que os judeus saíssem às ruas durante a Semana da Paixão. No século XV, o Conselho da Basileia proibiu que os judeus tivessem títulos académicos. A lista é monumental e será sempre incompleta. As caricaturas infames que se construíram ao longo dos séculos, frequentemente com chancela eclesiástica, convergem para um livro execrável, que garante “provar” o caráter maléfico dos judeus. É Os protocolos dos sábios de Sião.

Nos Protocolos, descreve-se uma suposta conspiração judaica mundial, tentáculos alcançando setores tão diversos quanto os meios de comunicação e o sistema bancário internacional. Está provado que foi uma invenção de paternidade vária e objetivo claro: municiar governos reacionários com justificativas para perseguir e, não raro, massacrar os judeus. Apesar de ser uma invenção estúpida, ainda hoje há quem os cite como “alerta” contra o “perigo judaico”. Disse Umberto Eco, autor de O Cemitério de Praga: “Houve sempre alguém que o publicou novamente, defendendo sua autenticidade. E a história continua a mesma hoje na internet. É como se, depois de Copérnico, Galileu e Kepler, se continuasse a publicar livros didáticos afirmando que o Sol gira ao redor da Terra”. Lamentavelmente, por descuido, má fé ou, pior, preconceito, setores da esquerda defendem posições que se espelham no lixo anti-semita registados nos Protocolos. Sob pretexto de criticar o expansionismo israelita, falam de domínio judaico sobre a mídia, lobby financeiro e hegemonia dentro do imperialismo norte-americano (sic). Renunciam às categorias analíticas marxistas para mergulhar no ódio e na irracionalidade.

Hoje, sou um roiter id. Tal como Bóris, Malvina e tantos outros, continuo uma longa tradição do que os judeus tradicionalistas chamam de Tikun Olam, ou seja, consertar o mundo. Sem ilusões sobre ajudas messiânicas e ciente dos tempos históricos. Como bem disse Eduardo Galeano, a História é uma senhora caprichosa, lenta. Não se comove com a pressa com que cada geração se lança à transformação do mundo, casada com suas utopias.

 

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