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Pode a RBC sobreviver à financeirização?

21-06-2019 - Lena Lavinas

A renda básica de cidadania (RBC) nem de longe é um conceito novo, mas ganhou vida nova nos últimos anos. Tanto vozes da esquerda como da direita argumentam agora que uma RBC poderia ser a chave para lidar com grandes problemas sociais e estruturais, inclusive o desemprego tecnológico e o subemprego, a pobreza extrema, armadilhas da pobreza e desincentivos ocultos ao trabalho. Ao libertar as pessoas das algemas dos empregos de baixa qualidade e da burocracia sem fim, a lógica é que uma RBC lhes permitiria realizar todo o seu potencial.

É certamente um argumento tentador, especialmente numa altura de prolongada estagnação salarial, pobreza persistente, aumento da desigualdade e baixo crescimento económico. Mas, até agora, as únicas versões da RBC que foram testadas - em lugares como Canadá, Finlândia, Quénia e Holanda – são essencialmente apenas novas modalidades de subsídios de desemprego e prestações assistenciais. Estas experiências contradizem a lógica fundamental de um RBC.

Indubitavelmente, abordagens graduais para a RBC podem impulsionar a reforma da assistência social. Em particular, ao reduzir ou eliminar a necessidade de verificação dos recursos e outras formas de condicionalidade, esses chamados esquemas baseados na RBC podem aliviar o peso burocrático e os custos administrativos associados, ao mesmo tempo em que proporcionam um novo fluxo de rendimento aos pobres.

Os controlos e condicionalidades que caracterizaram os programas sujeitos a prova de recursos que proliferaram desde a década de 1990, principalmente nos países do chamado Sul Global, estão a revelar-se ineficazes. Tornar as transferências de rendimento verdadeiramente “livres de obrigações”, como salientou o filósofo belga e defensor da RBC, Philippe Van Parijs, seria uma enorme vitória. No entanto, isso pode acontecer não tanto em nome da justiça e da equidade, mas mais porque serve um novo regime de acumulação que pode garantir que todos tenham uma renda monetária regular e sem restrições. Em contrapartida, será concedido a todos os cidadãos o acesso permanente aos mercados financeiros, cujo avanço assumiu dimensões espantosas.

Em 1990, os ativos financeiros globais representavam 50% do PIB mundial, ou cerca de 150 biliões de dólares; em 2015, esse número excedeu 400% do PIB mundial, o equivalente a 500 biliões de dólares.

Sob o capitalismo financeirizado, os fluxos regulares de renda facilitam a incorporação ao mercado e a inclusão financeira. Eles servem como garantia adicional num mundo onde a dívida, adquirida através de vários tipos de empréstimo e linhas de crédito ao consumidor, é cada vez mais utilizada para pagar não apenas bens duráveis, mas também serviços como saúde e educação, que anteriormente constituíam a maior parte da provisão pública.

Inovações financeiras baseadas em empréstimos garantidos com base em rendimentos para pessoas físicas são um pilar de uma dinâmica de securitização que permite a contínua renegociação da dívida e, portanto, a contínua expansão e consolidação de novos instrumentos financeiros.A transformação da política social em garantias adicionais reflete a lógica do capitalismo financeirizado, que converte  transferências monetárias, pensões e outros esquemas monetários - isto é, fontes de fluxos regulares de rendimento - em ativos colocados à disposição do setor financeiro.

Quando a política social é utilizada principalmente para assegurar o serviço da dívida e garantir novos empréstimos, ela deixa de servir como mecanismo de desmercantilização, que era o seu propósito original. Em vez disso, torna-se um vetor para aumentar o rendimento familiar e também uma fonte de lucros financeiros para o sistema bancário e para a indústria de seguros.

Seguindo esse padrão, ao fornecer um fluxo de renda estável e, portanto, uma forma confiável de garantia adicional, paga pelo Estado, a RBC fortaleceria e até criaria mercados financeiros, particularmente para crédito ao consumidor, hipotecas e pensões.   Estando longe de servircomo uma rota revolucionária para libertar os indivíduos do chicote do mercado, a RBC pode acabar por subordinar todos os cidadãos ao capital rentista por meio do endividamento.

As coisas não  precisam  ser assim. Certas condições devem ser cumpridas para evitar que a RBC fique subordinada à mentalidade dominada pelafinança.

Isso significaria, em primeiro lugar, que a RBC tem de ser estabelecida não como um complemento às medidas de assistência, mas como um meio de desmercantilizar totalmente o acesso às necessidades básicas, incluindo alimentos, roupas e transporte. As  experiências atuais oferecem muito pouco dinheiro, Assegurar uma RBC em valor suficiente é a única maneira de diminuir o risco  de ela servir principalmente e predominantemente como garantia adicional.

Em segundo lugar, os governos precisariam de garantir serviços públicos vitais, tais como assistência médica, educação e formação universais e gratuitas. Políticas de habitação de qualidade - incluindo regulamentação agressiva de arrendamentos, aumento de impostos sobre a propriedade e uma oferta alargada de moradia a preços acessíveis - também seriam necessárias, sobretudo para impedir que o aumento do rendimento real estimulasse a especulação imobiliária.

Finalmente, a regulação do setor financeiro teria de ser fortalecida de forma considerável. Também deveriam ser introduzidos impostos elevados sobre as rendas financeiras, a fim de revitalizar a economia real.

Não há dúvida de que isto é um esforço enorme - e extremamente complexo. Mas deve ser enfrentado se o ideal de um rendimento básico for permanecer preservado e fundamentado em princípios sólidos e valores decentes.

LENA LAVINAS

Lena Lavinas, professora de Economia do Bem-Estar no Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autora da Aquisição da Política Social pela Financeirização: O Paradoxo Brasileiro.

 

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