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A hipocrisia do aborto mata as mulheres

03-05-2019 - Patricia Nudi Orawo

A oposição ao aborto é tão intensa que, mesmo quando as mulheres têm direito legal a interromperem a sua gravidez, pode ser extremamente difícil aceder aos serviços necessários ao exercício desse direito. Mas, pior do que isso, os opositores do aborto tendem a ignorar as falhas que levam originalmente as mulheres ao ponto de quererem abortar.

Numa perspectiva moral, existem fortes razões para respeitar a liberdade pessoal e a autonomia corporal de uma mulher, em vez de forçá-la a pôr em risco a sua saúde ou o seu bem-estar por levar até ao fim uma gravidez indesejada ou insegura. Porém, dado que esta questão está pejada de desinformação e distorcida por argumentos deslocados, os debates políticos não vão frequentemente a lado nenhum a menos que considerem o aborto, antes de mais, como uma questão de saúde.

Consideremos o caso do Quénia. Apesar de ter uma das leis sobre o aborto mais progressistas de África – uma mulher tem direito a interromper a gravidez se “existir necessidade de tratamento de emergência, ou se a vida ou saúde da mãe estiverem em risco, ou se for permitido por qualquer outra legislação escrita” – a oposição persistente ao aborto tem prejudicado a sua implementação. E isto sem falar das mulheres que não têm direito a abortar segundo estas regras.

Mas está bem documentado que a ilegalização do aborto não põe termo à prática. Mais propriamente, quando as autoridades detêm pessoas que alegadamente fazem abortos de forma segura, como acontece no Quénia, as mulheres acabam por recorrer a pessoas que usam métodos altamente perigosos para realizar a mesma tarefa. Por exemplo, perfuram os úteros das mulheres com objectos cortantes, sentam-se sobre os ventres das mulheres para expulsar os fetos, e receitam misturas perigosas.

Para evitar estes fornecedores clandestinos, as mulheres tentam induzir abortos através da ingestão de grandes quantidades de analgésicos, ou envenenando-se com detergentes. Algumas morrem; outras ficam sem útero; outras ainda são deixadas a gerir complicações como fístulas cervicovaginais.

Depois de anos de trabalho em saúde reprodutiva, posso dizer fundamentadamente que as mulheres não interrompem gravidezes por capricho. Não pagam a uma pessoa sem qualificações para esfaquear o seu útero porque lhes apetece. Condená-las não alterará as suas opiniões; nem a priorização do desenvolvimento de um feto relativamente às necessidades, direitos e bem-estar da sua mãe. Tudo o que fará é aumentar a probabilidade de arriscarem a sua saúde e as suas vidas ao procurarem um aborto de risco.

Se queremos reduzir a procura pelos serviços de aborto, temos de reconhecer que são frequentemente a conclusão de uma série de falhas sistémicas que começam durante a infância, quando seria necessária uma educação sexual abrangente (ESA). Uma ESA instrui os jovens relativamente ao sexo e aos relacionamentos de uma forma adequada à idade, culturalmente sensível, realista, não incriminatória e cientificamente exacta, e pode aumentar a utilização dos contraceptivos e reduzir as taxas de ocorrência de gravidez em adolescentes, especialmente se seguir uma abordagem sensível ao género, concentrando-se na capacitação das jovens no sentido de protegerem a sua própria saúde.

Uma educação assim não é um privilégio, mas antes um direito. No Quénia, o Artigo 35º da constituição garante a todos os cidadãos “o direito de acesso às informações detidas por outrem e necessárias ao exercício ou protecção de quaisquer direitos ou liberdades fundamentais”. Isto inclui o direito aos cuidados de saúde reprodutiva, consagrados no Artigo 43º.

Mas, tal como o direito ao aborto, o direito à ESA é frequentemente desconsiderado, devido à resistência moralizadora de líderes religiosos e dos movimentos anti-escolha, bem como a outros factores, como a deficiente divulgação do currículo e a escassez de professores adequadamente formados. Como consequência, permanecem amplamente difundidos mitos e equívocos.

Isto, juntamente com a escassez no financiamento e os factores culturais (tais como a falta do envolvimento masculino nas questões de saúde reprodutiva), contribuem para a fraca adopção de contraceptivos, com apenas 58% das mulheres no Quénia que deveriam usar contraceptivos modernos a fazê-lo. Não surpreende que a ocorrência de gravidezes adolescentes seja inaceitavelmente elevada.

Chegou o momento de abordarmos as falhas sistémicas que fazem com que as raparigas e as mulheres acabem mutiladas ou mortas. Nesta área, um pouco de prevenção equivale a bastante cura: contracepção nos orçamentos da saúde, ESA de qualidade nas escolas, e serviços de saúde reprodutiva adaptados aos jovens.

Mas a cura também deve constituir opção. As regras que punem mulheres devem ser substituídas por leis modernas, alinhadas com os regimes internacionais de direitos humanos, e que protejam a liberdade reprodutiva das mulheres, garantindo nomeadamente o acesso a serviços de aborto seguros. Também são necessárias orientações escritas para acabar com a vitimização dos prestadores de serviços de aborto.

Como pode um governo que não consegue assegurar a ESA ou investir de forma adequada no planeamento familiar penalizar as suas mulheres por gravidezes indesejadas? Como pode uma sociedade que ignora o sofrimento das mulheres culpar as vítimas pela sua inacção? Aqueles que não fazem nada para evitar gravidezes indesejadas – e que fazem tudo para castigar as mulheres afectadas pelas mesmas – não podem reclamar para si a superioridade moral.

PATRICIA NUDI ORAWO

Patricia Nudi Orawo é uma advogada do Kisumu Medical and Education Trust no Quénia.

 

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