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O Vietname e o dilema da nova riqueza

08-03-2019 - Tran Le Thuy

Cinco dias antes de o presidente dos EUA, Donald Trump, e do líder norte-coreano, Kim Jong-un, se reunirem em Hanói para a sua segunda cimeira, dois antigos ministros vietnamitas das comunicações foram detidos e acusados de “infracções relacionadas com a gestão e a utilização de capitais públicos”. Alegadamente, os dois responsáveis aprovaram a compra, pela empresa estatal de telecomunicações, de um operador privado de televisão por mais de quatro vezes o seu valor estimado, com uma perda para o estado no valor aproximado de 307 milhões de dólares.

De forma semelhante, há poucos meses, dois vice-ministros da polícia, um ministro dos transportes e um antigo presidente da empresa petrolífera estatal foram levados a tribunal por acusações de venderem propriedades estatais a empresas privadas abaixo do seu valor. Conjuntamente, estes casos são sintomas de um elevado nível de captura do estado – uma forma de corrupção, frequente nos países do antigo bloco soviético, em que intervenientes privados poderosos usam infiltrados para conseguirem o controlo de instituições e bens públicos.

Tal como a Coreia do Norte, o Vietname começou a abrir a sua economia, mas permitindo pouca ou nenhuma propriedade privada. Porém, três décadas depois, o Vietname – como muitos países em desenvolvimento – não está imune aos efeitos negativos das elites extractivas. Existem provas da influência indevida de empresas privadas poderosas sobre as políticas internas. Segundo um comentário no   Diário do Povo   do antigo presidente vietnamita Trương Tấn Sang, a corrupção é hoje pior do que em qualquer outro momento nos 70 anos de história do Partido Comunista do Vietname. “Há colaboração entre os que detêm o poder e os capitalistas, para abusar das políticas estatais”, escreveu. “Combinam negócios que beneficiam grandemente algumas pessoas e grupos, mas que causam danos imensuráveis ao orçamento do estado e que perturbam a economia”.

Não obstante, o modelo híbrido de governação socialista e economia de mercado do Vietname tem sido amplamente divulgado como um exemplo que Kim deve seguir. Entre 2007 e 2017, a   riqueza   do Vietname cresceu 210%, e, segundo a empresa de consultoria imobiliária Knight Frank, mais de 200 vietnamitas possuem activos disponíveis no valor mínimo de 30 milhões de dólares. Ao expandir-se em 320% entre 2000 e 2016, a classe dos “super-ricos” do Vietname está a crescer mais rapidamente que a da Índia (290%) e a da China (281%). E se a tendência actual continuar, terá crescido mais 170% – de 14 300 para 38 600 milionários – até 2026.

Uma parte significativa destes   nouveaux riches   (NdT: em francês, no original) adquiriu a sua riqueza aproveitando-se de lacunas no sistema governativo. Este clientelismo prosperou na ausência de regulamentações claras que governassem a posse de propriedades e os conflitos de interesses por parte dos responsáveis públicos. Um motivo óbvio é que os funcionários do governo costumam receber salários excessivamente baixos: mesmo o primeiro-ministro não ganha mais do que 750 dólares por mês.

Neste cenário, o PCV iniciou uma campanha anti-corrupção sem precedentes, ao mesmo tempo que publicitou os seus esforços para combater “grupos de interesses” e combater a captura do estado. Até agora, a acusação de alguns altos responsáveis aliviou o descontentamento do público. E a cimeira de Hanói, juntamente com a guerra comercial de Trump contra a China, parece ter canalizado mais investimento directo estrangeiro para o Vietname, aliviando dessa forma alguma pressão sobre a economia, e consequentemente sobre o governo. Mas, a longo prazo, o Partido não poderá depender dessas situações excepcionais.

Além disso, o anterior crescimento do Vietname baseava-se largamente na especulação imobiliária e bolsista, e não na produção industrial, na tecnologia e noutros sectores de elevado valor acrescentado. Mas se o país pretende avançar na cadeia de valor global e alcançar um crescimento mais sustentável, são necessárias reformas políticas profundas.

Durante os últimos três anos, os grandes teóricos do PCV têm motivado uma discussão pública sobre a introdução de mais mecanismos de controlo no sistema. Para além dos julgamentos anti-corrupção, existem planos para reduzir o número de funcionários públicos e de aumentar os salários dos que permanecerem.

O PCV parece ter-se inspirado em Singapura e nos países nórdicos para a concepção do seu novo plano de desenvolvimento. O seu objectivo consiste em passar de um modelo baseado na mão-de-obra barata e no investimento industrial, poluente e intensivo em capital, para um modelo baseado em tecnologias avançadas e serviços, que garantiria um crescimento mais sustentável e equitativo.

A avaliar pelas declarações públicas, os líderes do Partido parecem ter reconhecido que a corrupção flagrante e o rápido crescimento das desigualdades representam uma ameaça à sua legitimidade. Contudo, falta apurar se os actuais esforços de fiscalização levarão a reformas políticas significativas, a salvaguardas mais rigorosas contra a corrupção, e a regulamentos mais claros para a posse de propriedades, para que os ricos não precisem de depender de infiltrados para acumularem e protegerem a sua riqueza.

Grande parte da retórica do PCV tem-se centrado na necessidade de “moralidade e ética” por parte dos responsáveis governamentais. Mas seria melhor aceitar que o interesse próprio é uma característica humana poderosa e inevitável. Ao simplesmente ordenar que os responsáveis governamentais se comportem de forma honesta, apelando ao seu sentido de dever público, o Partido arrisca-se a desperdiçar a oportunidade para criar mecanismos mais fortes e mais racionais para a monitorização da corrupção.

Quanto às tentativas do Partido para transformar a economia, vale a pena notar que, durante a preparação da cimeira Trump-Kim, o primeiro-ministro vietnamita Nguyễn Xuân Phúc tomou medidas sem precedentes para reforçar a imagem pública do seu país, seleccionando pessoalmente alguns pratos vietnamitas para os jornalistas estrangeiros. No passado, o Partido encarou sempre a imprensa estrangeira como uma ameaça a evitar, devido a críticas anteriores sobre o historial dos direitos humanos no Vietname. Mas, agora, o objectivo é estimular a indústria do turismo, confirmando o Vietname como um destino turístico de topo.

Quando a viatura de Kim percorreu Hanói esta semana, muitos vietnamitas aplaudiram, não porque sentiam falta das políticas económicas fechadas da década de 1980, mas porque a cena fazia lembrar as próprias negociações do Vietname para normalizar as relações com os EUA, em 1993/4. Esse êxito diplomático preparou o caminho para que uma parte significativa da população vietnamita fosse retirada da pobreza.

Mas embora muitos vietnamitas tenham desfrutado de anos de melhoria das condições de vida, o modelo económico das três últimas décadas tem de ser transformado. O Vietname está novamente numa encruzilhada. Apesar de Kim e Trump não terem chegado a acordo, esta semana, para acabar com as sanções dos EUA, Kim ainda parece querer percorrer o caminho vietnamita. Se estiver verdadeiramente interessado em copiar o modelo híbrido de governação socialista e de economia de mercado do Vietname, terá de estar consciente dos riscos envolvidos.

TRAN LE THUY

Tran Le Thuy é jornalista e pesquisador em Hanói.é jornalista de investigação em Hanói.

 

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