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Como a globalização matou a nossa mãe

01-02-2019 - Matthew Caruana Galizia, Andrew Caruana Galizia, Paul Caruana Galizia

A rede mundial que viabiliza o crime organizado e a corrupção transnacionais é, tragicamente, uma das mais duradouras histórias de sucesso da globalização. Por conseguinte, é também um dos seus defeitos mais mortíferos. Enquanto os frutos e os lucros do crime circulam sem problemas através das fronteiras, a aplicação da justiça e da lei permanece encurralada pelas fronteiras nacionais, e é constantemente enfraquecida e contrariada. Entretanto, os jornalistas que tentam documentar esta situação são intimidados, encarcerados e assassinados.

Enquanto as forças do crime e da corrupção globais continuam a delapidar a nossa liberdade e a nossa segurança, os jornalistas assassinados pelo seu rasto ensinaram-nos lições poderosas sobre como devemos responder. Estas lições dizem respeito não só ao jornalismo, mas também à aplicação da lei e ao tipo de sociedade onde queremos viver.

Uma destas jornalistas foi a nossa mãe, Daphne Caruana Galizia. Foi assassinada em Malta, a 16 de Outubro de 2017, pela explosão de uma bomba colocada sob o banco do condutor do seu carro quando se dirigia ao banco para desbloquear a sua conta, que fora congelada pelo ministro da economia do país. Este foi o último de uma série de ataques que ela suportou devido aos seus relatos, mas não foi a última violação que Malta sofreria relacionada com as suas revelações.

A nossa mãe, uma arqueóloga qualificada, descobriu uma rede de corrupção que envolvia grandes negócios multinacionais, venda de passaportes, e uma sofisticada operação global de branqueamento de capitais, e foi seguindo as pistas até que estas a levaram ao coração do governo de Malta.

O resultado não foi o que ela esperava. Em vez de demissões, surgiram represálias. Foram esmagados núcleos de independência institucional em Malta que tinham sobrevivido a quatro anos de populismo. E a nossa mãe, um farol de esperança e coragem para centenas de milhares, incluindo juízes e responsáveis pela aplicação da lei, foi executada em plena luz do dia.

As pessoas que ela expôs continuam em cargos públicos, enquanto os que batalham por justiça para o seu assassínio são agredidos publicamente. Ao expor a venalidade dos poderosos num lugar onde as instituições são pouco mais do que fachadas, o trabalho da nossa mãe gerou uma reacção que a matou, e que actualmente asfixia a vida pública do país.

Não admira, portanto, que em 2018 Malta tenha tido a maior queda nas classificações relativas à liberdade de imprensa na Europa, uma região onde se verificou o declínio mais rápido em todo o mundo. O país também piorou nas classificações relativas à democracia e nos  indicadores relativos ao estado de direito, e está no lugar cimeiro do incitamento ao ódio.

Evidentemente que o impacto do crime e da corrupção globalizados não se limita a Malta e à Europa. Como resposta, os jornalistas de investigação reuniram-se em redes globais, como o Daphne Project. E tanto os Panama Papers como os Paradise Papers demonstram que o jornalismo de investigação pode ser eficaz para obrigar a uma maior transparência, para enfraquecer as redes criminosas, e para aumentar os custos da corrupção política suportados pelos seus perpetradores.

Mas apesar de os jornalistas cooperarem internacionalmente cada vez mais, as autoridades nacionais responsáveis pela aplicação da lei ainda jogam à apanhada no combate ao crime e à corrupção. Em consequência, o impacto do jornalismo de investigação varia grandemente com os países e ao longo do tempo. Em países onde as autoridades responsáveis pela aplicação da lei são independentes do governo central e dos interesses privados, e onde o público pode canalizar eficazmente as suas reivindicações através de instituições políticas receptivas, o jornalismo de investigação pode ter um impacto imediato sobre a prevenção da corrupção e da captura pelo estado.

Mas em países onde falte a vontade ou a capacidade para erradicar o crime e a corrupção organizados, e com um público demasiado polarizado para se unir contra os seus inimigos, a transparência e a responsabilização convincentes podem ter resultados perversos. Nesses locais, os jornalistas continuam a ser perseguidos – com consequências perigosas tanto para as comunidades locais como para a economia global.

Quando os jornalistas são atacados, isso significa normalmente que as sociedades onde exercem actividade são tão corruptas que as suas principais instituições de aplicação da lei e os seus controlos democráticos já se encontram fundamentalmente comprometidos. Isto transforma os jornalistas de investigação nas últimas pessoas posicionadas entre o estado de direito e aqueles que tentam violá-lo, e faz com que o seu trabalho seja simultaneamente mais perigoso e menos eficaz.

A fase mais recente da globalização deu-nos Moneyland, uma vasta área de recreio para os criminosos organizados e cleptocratas que orientaram jurisdições mais fracas, como Malta, para o serviço ao capital ilegal. A resposta certa a esta situação não consiste no refúgio em fronteiras nacionais, mas sim na criação de uma nova entidade global, concebida para enfrentar a natureza transnacional do crime e corrupção organizados. Para começar, os organismos responsáveis pela aplicação da lei podiam aprender com o jornalismo, e trabalharem de forma urgente no desenvolvimento da abordagem assente numa rede de confiança, que o crime organizado já aperfeiçoou.

À medida que o mundo parece entrar numa nova fase da globalização, não devemos permitir que sejam concedidas novas oportunidades ao crime e corrupção globais. Caso contrário, o nosso futuro colectivo pertencerá a uma aliança de dinheiro ilegal, desinformação, e ao tipo de divisões que roubou ao nosso país a sua jornalista mais proeminente.

MATTHEW CARUANA GALIZIA

Matthew Caruana Galizia é um jornalista e engenheiro de software que trabalhou em investigações sobre corrupção internacional para o Consórcio Internacional de Jornalistas de investigação.

ANDREW CARUANA GALIZIA

Andrew Caruana Galizia é um parceiro de Liderança Global e Líder de Inteligência Estratégica no Fórum Económico Mundial.

PAUL CARUANA GALIZIA

Paul Caruana Galizia é editor financeiro da Tortoise e membro visitante da London School of Economics.

 

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