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ECONOMIZAR NO CONSENTIMENTO

04-01-2019 - Zahra Moloo

No dia 29 de Novembro, após duas semanas de negociações contenciosas na Conferência das Nações Unidas sobre Biodiversidade realizada em Sharm El Sheikh, Egipto, 196 países chegaram a acordo relativamente a regras rigorosas sobre a utilização da chamada genética dirigida. Tendo em conta as profundas consequências de uma tecnologia que leva a que um determinado conjunto de genes se propague por toda uma população — modificando-a fundamentalmente, ou mesmo eliminando-a — tais regras são extremamente necessárias. Porém, serão suficientes?

Alguns países teriam preferido uma moratória integral sobre a liberação de organismos a genética dirigida — uma visão partilhada por muitos povos indígenas, activistas da soberania alimentar, e as organizações da sociedade civil de África. O acordo final das Nações Unidas foi ao encontro desta expectativa, reconhecendo as “incertezas” inerentes à utilização da genética dirigida — que os oponentes designam como “exterminadora” — e exortando os governos a serem muito cautelosos na liberação de organismos modificados por meio da investigação experimental.

Segundo o acordo, estas experiências apenas devem realizadas quando “tiverem sido levadas a cabo avaliações de risco caso a caso cientificamente sólidas” e se estiverem em vigor “medidas de gestão dos riscos para evitar ou minimizar potenciais efeitos adversos”. Além disso, as organizações que pretendem libertar este tipo de organismos devem obter o “consentimento prévio, livre e informado” das comunidades potencialmente afectadas.

No presente contexto, nada disso parece estar a acontecer. Considere-se o registo da Target Malaria (a organização que realiza mais experiências no domínio da genética dirigida a nível mundial) cujos trabalhadores foram incluídos nas equipas oficiais de negociação de pelo menos dois países africanos para se manifestarem contra as limitações excessivas.

A Target Malaria deverá iniciar em breve a implementação de um plano na África Ocidental e Central para lançar mosquitos “andro-estéreis” geneticamente modificados (não sujeitos à genétiva dirigida) nas aldeias de Bana e de Sourkoudingan, no Burquina Faso, como primeiro passo para o lançamento posterior de mosquitos provenientes da genética dirigida. O objectivo é reduzir a população das espécies que transmitem o parasita responsável pela malária.

Contudo, ainda não está claro que a Target Malaria tenha obtido algo próximo do “consentimento prévio, livre e informado” por parte das aldeias. Na verdade, a Target Malaria transmitiu vídeos de pessoas das comunidades locais que apoiam o projecto, tendo-lhes apresentado os jornalistas. No entanto. quando fora do âmbito da Target Malaria para conhecer as comunidades locais que seriam afectadas, ouvi uma história muito diferente, que relatei numa curta-metragem.

para debater o projecto com os habitantes locais nas áreas afectadas do Burquina Faso — primeiro acompanhada por dois activistas e, posteriormente, por um tradutor — surgiu um padrão claro. As pessoas que têm autoridade política no centro de Bana conheciam a Target Malaria e revelaram-se surpreendentemente hostis em relação a nós. Célian Macé, que efectuava uma reportagem para o jornal francês   Libération, deparou-se com problemas semelhantes ao tentar acesso ao Bana e ao Sourkoudingan.

Na periferia das aldeias — ainda dentro do alcance da zona de libertação dos mosquitos — as pessoas mostraram-se bastante mais à vontade quando entrevistadas. Além disso, revelaram-se, de um modo geral, muito menos conhecedoras do projecto da Target Malaria e da genética dirigida. Acresce que as informações de que dispõem sobre ambos provêem de uma única fonte: A Target Malaria.

As aldeias próximas também pareciam não ter informações suficientes. Os organismos da genética dirigida destinam-se a propagar-se indefinidamente, e os mosquitos, especialmente as fêmeas, podem atravessar correntes de ar em altitudes relativamente elevadas (40-290 metros), onde os ventos podem conduzi-los para zonas situadas a centenas de quilómetros de distância. Isto significa que o consentimento teria que ser assegurado muito para além da fase de lançamento.

No entanto, na aldeia de Nasso, perto de Bana, as autoridades informaram-nos que, embora se tivessem reunido com a Target Malaria, ainda tinham dúvidas e preocupações quanto aos potenciais efeitos adversos do lançamento dos mosquitos. Os grupos da sociedade civil que exercem a sua actividade na zona das aldeias de teste também não foram adequadamente consultados sobre o trabalho da Target Malaria

Quanto mais entrevistas realizava, mais claro ficava que a população local não tinha sido envolvida num debate genuinamente participativo sobre o projecto da Target Malaria, nem tinha dado o consentimento informado. Pelo contrário, várias pessoas que entrevistei pediram que a libertação experimental de mosquitos geneticamente modificados fosse interrompida até que os riscos e efeitos tivessem sido adequadamente investigados e até que a sociedade civil em todo o Burquina Faso estivesse plenamente informada.

A falta de compromisso da Target Malaria relativamente ao consentimento está patente na sua própria retórica, que evita a palavra inequívoca “consentimento”, mas usa regularmente termos como “compromisso” e “aceitação da comunidade”. Essa escolha pode indicar que os líderes da organização já decidiram avançar com o lançamento.

Reforçando esta conclusão, após a convenção das Nações Unidas, a Target Malaria tentou estabelecer uma distinção entre a exigência de consentimento, prévio, livre e informado no contexto da investigação médica sobre indivíduos (um domínio onde aquele é exigido) e num contexto de saúde pública. Segundo a organização, “não é logisticamente possível obter o consentimento de cada pessoa afectada” pelo lançamento de mosquitos geneticamente modificados.

Contudo, a razão pela qual é difícil obter o consentimento informado de todas as pessoas afectadas por experiências genéticas é a mesma razão pela qual fazê-lo é absolutamente essencial. Trata-se de uma tecnologia altamente controversa, com potenciais efeitos ecológicos de longo alcance e com consequências ainda desconhecidas no que diz respeito à saúde. Garantir o consentimento de apenas um número reduzido de habitantes locais não é suficiente.

Uma vez que que as experiências da Target Malaria no Burquina Faso estão entre as primeiras deste tipo, servirão como um forte precedente para experiências semelhantes em todo o mundo. Com propostas para o lançamento deste tipo de organismos em territórios indígenas na Nova Zelândia, na Austrália e no Havai incluídas na agenda dos próximos anos, é necessário estabelecer um limiar claro para o significado do consentimento informado e para a forma de protegê-lo.

ZAHRA MOLOO

Zahra Moloo é jornalista de investigação, documentarista e investigadora.

 

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