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Devolver a natureza pública aos sistemas públicos de saúde

07-12-2018 - Mariana Mazzucato

O National Health Service do Reino Unido comemorou este ano o seu 70º aniversário, e agora será um bom momento para reflectirmos sobre o passado do NHS e para ponderarmos o seu futuro. O NHS é, desde há muito, uma fonte de inspiração para os debates mundiais sobre a saúde. Mas se não conseguir uma posição mais sustentável, poderá tornar-se num mau exemplo.

Em 1948, quando o NHS foi criado, a sua missão de fornecer cuidados universais de saúde de elevada qualidade era audaciosamente radical. Com o passar do tempo, no entanto, veio a representar um pilar fundamental do estado social moderno, juntamente com a educação e as prestações públicas para a velhice.

Actualmente, porém, o NHS enfrenta dificuldades crescentes, provocadas pelos anos de “austeridade” que se seguiram à crise financeira de 2008, bem como por mudanças mais genéricas no modelo de negócio da indústria farmacêutica. Com a gestão empresarial cada vez mais orientada para indicadores financeiros restritivos, como as receitas trimestrais, as empresas farmacêuticas aumentaram os preços dos medicamentos, e é o NHS   quem está a suportar esses custos. Para piorar a situação, muitos medicamentos nem sequer existiriam se não fosse o investimento público. No ano passado, o NHS de Inglaterra gastou mil milhões de libras (1,28 mil milhões de dólares) na aquisição de medicamentos que receberam investimentos do Conselho do Reino Unido para a Investigação Médica e de outros organismos públicos. Nos Estados Unidos, o   National Institutes of Health   (NIH)  gasta mais de 37 mil milhões de dólares todos os anos em investigação biomédica, especialmente em áreas que apresentam um risco acrescido para o sector privado. E, em todo o mundo, o sector público paga perto de dois terços de todos os custos iniciais da investigação e desenvolvimento da indústria farmacêutica.

Os preços elevados dos medicamentos podem provocar efeitos em todo o mundo que ultrapassam a saúde pública. Criam uma enorme barreira no acesso aos medicamentos para dois mil milhões de pessoas   e empurram 100 milhões de pessoas para a pobreza extrema todos os anos. Para além do sofrimento humano, esta realidade acarreta custos económicos elevados. O capital humano perdido inclui não apenas os que são afastados da população activa e tributável por doença pessoal, mas também as pessoas que deixam de trabalhar para cuidarem dos doentes.

Sobretudo, é cada vez mais difícil conciliar os objectivos de assegurar o acesso dos pacientes a medicamentos eficazes, de gerir a despesa crescente com cuidados de saúde, e de incentivar a inovação. Mesmo que o acesso aos cuidados de saúde estivesse assegurado, e os preços fossem bem geridos, ainda existiria um problema com o rumo actual da inovação em saúde. As doenças que não criam mercados com possibilidades de crescimento são em grande parte ignoradas. Entre 2000 e 2011, só 4% dos medicamentos recém-aprovados se destinavam a doenças negligenciadas e que afectam principalmente os países de baixo e médio rendimento. Entretanto, nos EUA, 78% das novas patentes de medicamentos entre 2005 e 2015 estavam relacionadas com medicamentos que já existem no mercado. E na Europa, entre 2000 e 2014, 51% dos medicamentos recém-aprovados eram versões modificadas de medicamentos existentes, e por esse motivo não ofereciam benefícios de saúde adicionais.

Como os sistemas de saúde frequentemente não conseguem fornecer aos pacientes os tratamentos de que precisam a um preço que consigam pagar, e como a inovação em saúde não responde às necessidades públicas de saúde, ostatus quo   não é sustentável. Mas restaurar a natureza pública da provisão e inovação em saúde obrigará a uma transformação análoga à que os fundadores do NHS levaram a cabo há 70 anos.

Para tal, o primeiro passo consiste em reconhecer o papel vital dos governos para o desenvolvimento de novos tratamentos e medicamentos. Em vez de apenas financiarem a inovação, os governos precisam de começar a orientá-la, com o mesmo nível de envolvimento que dedicam aos gastos com a defesa. Isto significa alinhar o financiamento de investigação a montante com as aplicações e os objectivos públicos a jusante.

A indústria farmacêutica não deixará de argumentar que o envolvimento do governo reprime a inovação. Mas foi uma abordagem orientada para a missão e liderada pelo estado que colocou um homem na lua, criou a Internet, e preparou o caminho para os automóveis sem condutor. Os governos e as sociedades que servem devem ser ambiciosos, ao mesmo tempo que colocam uma questão prática: o que estamos a tentar alcançar?

Quando soubermos essa resposta, podem ser aplicadas medidas legislativas e regulamentares que permitam a prossecução dos nossos objectivos colectivos, e que encorajem a experimentação ascendente. Por exemplo, os prémios podem ter vantagens relativamente aos preços, no estímulo ao investimento privado. E os processos aquisitivos governamentais poderiam certamente estar mais alinhados com o rumo pretendido da inovação.

De forma ainda mais relevante, os legisladores precisam de abordar a financeirização da indústria farmacêutica, que está apenas preocupada com o valor para o accionista, em vez de preocupar-se com todas as partes interessadas. Entre 2007 e 2016, as 19 empresas farmacêuticas no índice S&P 500 em Janeiro de 2017 gastaram 297 mil milhões de dólares na recompra das suas próprias acções, para aumentar o preço das suas acções, e consequentemente o valor das opções que os seus executivos têm sobre as acções. Isto equivale a 61% dos seus gastos combinados em I&D durante o mesmo período.

Enquanto prevalecer este modelo de negócio, a subida dos preços continuará. Como aconteceu recentemente com um antibiótico, os CEO afirmarão que protegem os interesses dos seus accionistas, ao deixarem que os preços subam até ao limite máximo permitido pelo mercado, e ao abusarem dos direitos de propriedade intelectual para extraírem rendas monopolísticas. O licenciamento de patentes tornou-se demasiado difícil, e as patentes são frequentemente adquiridas por motivos estratégicos e não pelo seu carácter inovador, como se pretendia originalmente.

Para que os cuidados de saúde voltem a estar alinhados com o interesse público, ainda podemos voltar-nos para o NHS para sermos inspirados. A missão dos seus fundadores consistia na criação de um sistema que serve todas as pessoas, que é gratuito no ponto de entrega, e que satisfaz as necessidades dos pacientes, e não a sua capacidade de pagar. Os legisladores actuais devem reafirmar essa missão fundamental. Só alinhando a inovação com as prioridades de uma sociedade civilizada poderemos transportar os cuidados de saúde até à próxima fronteira.

Mariana Mazzucato

Mariana Mazzucato é Professora da Economia da Inovação e Valor Público e Diretora do Instituto UCL para Inovação e Propósito Público (IIPP). Ela é autora do Valor de Tudo: Fazendo e Tomando na Economia Global, que foi indicada para o Prêmio do Ano do Financial Times-McKinsey Business Book.

 

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