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As Veias abertas da Europa

30-03-2018 - Carlos Alberto Mattos

Dois filmes em cartaz tratam de questões ligadas à história alemã no século XX que ainda ecoam na consciência atual. Em Pedaços fala de neonazismo com ramificações pela Europa e preconceito contra imigrantes. Western mostra ressonâncias do alinhamento da Bulgária com a Alemanha nas duas guerras mundiais.

O neonazismo está ativo na Alemanha e tem braços internacionais. A sociedade europeia talvez ainda hesite em tratá-lo como a ameaça que realmente representa. É disso que fala Em Pedaços, o novo filme de Fatih Akin, alemão de origem turca responsável por obras pesadamente dramáticas como Contra a Parede e Do Outro Lado. O tema central é o luto de uma mulher levado às últimas consequências.

A alemã Katja é casada com um ex-traficante turco que se reabilita depois de passar pela cadeia. Uma explosão terrorista no bairro turco de Hamburgo mata seu marido e o filho, deixando-a devastada. Sua suspeita de que os responsáveis foram neonazistas acaba se confirmando, e o caso vai a tribunal.

Muitos críticos estrangeiros apontaram esquematismo e maniqueísmo na forma como Akin pinta os preconceitos e a tipologia dos personagens. Esse não é um diretor que prime mesmo pela sutileza. Mas os seus temas talvez não requeiram mão leve nem punhos de seda. Por tratar-se da morte de um imigrante envolvido no passado com o tráfico e da dor de uma viúva que consome drogas, as vítimas tendem a ser encaradas como réus, como estamos cansados de ver por aí. Só podiam "estar metidos em alguma"... Katja passa pelos rituais e manipulações do tribunal – que ocupam boa parte da metragem – e acabará compreendendo que a justiça só virá de suas próprias mãos. Resta saber se ela se comportará como a justiceira catártica que uma plateia comum esperaria.

Nem tudo funciona a contento no mecanismo dramático detonado por Fatih Akin. As etapas do luto de Katja são marcadas com ênfase exacerbada. Os envolvidos com o crime e sua defesa carregam as máscaras da maldade no rosto, numa espécie de acusação determinista. Parte do módulo da vingança na Grécia tem ações pouco plausíveis. Ainda assim, Em Pedaços é um filme duro e forte como deve ser. Desbancou favoritos ganhando o Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro e deu à prolífica e minuciosa atriz Diane Kruger o prêmio de melhor atuação feminina no Festival de Cannes.

Um faroeste sem duelo

"texto_detalhe" é uma coprodução entre Bulgária, Alemanha e Áustria. Sua trama (ou quase ausência de uma) é informada pelo histórico de relações entre esses três países, que foram aliados nas duas guerras mundiais. Daí várias referências de admiração e desconfiança no contato de um grupo de operários alemães com os moradores de um vilarejo búlgaro onde chegam para iniciar a construção de uma usina hidrelétrica.

O título do filme ressoa vagamente na figura do protagonista, o caladão Meinhard, que se afasta dos colegas para estabelecer relações de amizade e trabalho com os aldeões locais. Seu vínculo com um cavalo o caracteriza como um cavaleiro solitário na semântica do faroeste. A expectativa do duelo também ronda Meinhard com relação a diversos personagens, embora seja sucessivamente desfeita pela abstenção ou a conciliação.

Numa estranha simbiose, o clima de hostilidade convive com uma crescente fraternidade entre os alemães rudes e os búlgaros pacatos, refletindo talvez sentimentos nacionais arraigados. Isso se dá em frequentes diálogos bilíngues, nos quais o entendimento é alcançado por gestos e identificação de sentimentos em lugar de palavras. Quase todo o elenco é de atores não profissionais, recrutados num longo trabalho de casting pela diretora alemã Valeska Grisebach.

Este é o segundo longa-metragem (depois de Seensucht) em que Valeska retrata um mundo eminentemente masculino. Isso sem contar sua contribuição para o roteiro de Toni Erdmann, cuja diretora Maren Ade atua como produtora de texto_detalhe. É uma forma que eu diria cautelosa de entrar no cipoal de rivalidades, emoções reprimidas e condutas obscuras de um grupo de homens, alguns deslocados em terra estranha, outros plantados em sua remota bolha de civilização.

É também uma forma bastante vaga e rarefeita de mostrar esse encontro. A falta de continuidade das sequências e um laconismo quase permanente produzem uma sensação de distanciamento e mesmo de perplexidade. Havia momentos em que eu me sentia um alemão diante de um filme que falava búlgaro, se é que me faço entender nesse português metafórico. texto_detalhe talvez seja uma parábola da Europa atual, mas uma cifrada em demasia.

No Araguaia e no Alemão

Entre as estreias desta semana destacam-se dois documentários brasileiros. Soldados do Araguaia enfoca as memórias e os traumas de um grupo de homens humildes recrutados na juventude para servir de bucha de canhão no combate à guerrilha no sul do Pará. Com grande sobriedade e contundência, o filme de Belisário Franca traz à tona um ângulo da História bem pouco conhecido.

Mais modesto em suas intenções, mas também eficaz no que se propõe, Surf no Alemão, de Cleber Alves e Eduardo "BR" Dorneles, é uma apresentação do projeto homónimo, conduzido por Wellington Cardoso no Complexo do Alemão, conjunto de favelas do Rio de Janeiro. Desde 2011, o simpático e generoso Wellington vem atraindo crianças da comunidade para as pranchas, fazendo do surfe uma ferramenta de melhoria da educação e da formação pessoal da garotada, afastando os meninos do tráfico e do crime. Muitos o chamam de "pai", o que deixa claro o vácuo de paternidade de tantos filhos ali.

Sem patrocínio, contando apenas com o apoio do Cades (Centro de Aprendizagem e Desenvolvimento do Surfe) e de alguns indivíduos como o surfista profissional Phil Rajzman, o projeto é digno de toda atenção e reconhecimento. O valor de Surf no Alemão é sobretudo de inspiração e motivação para atitudes louváveis como a de Wellington Cardoso.

Fonte: Carta Maior

 

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