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O problema dos mitos à esquerda sobre a Síria

16-03-2018 - Loubna Mrie

Por que é que ainda há vozes à esquerda que justificam o bombardeamento indiscriminado do regime sírio em Ghouta Oriental?

À medida que o número de mortos em Ghouta Oriental, no subúrbio de Damasco, atinge quase 700 em duas semanas e continua a aumentar, muitas das chamadas vozes progressistas continuam a justificar a carnificina.

Muitos estão convencidos de que o regime está a lutar contra a al-Qaeda em Ghouta Oriental, que, por sua vez, usa civis como escudos humanos, razão pela qual as centenas de mortos não seriam culpa do regime.

Há vários anos que um grande número de pessoas de esquerda no Ocidente e Oriente compram a propaganda do regime. Do académico australiano Tim Anderson, que afirmou que Bashar al-Assad não esteve envolvido em homicídios em massa de civis e foi simplesmente demonizado pelo ocidente imperialista, aos jornalistas britânicos e estado-unidenses Robert Fisk e Seymour Hersh, que alegaram que o regime não usava armas químicas em vários ataques contra civis, figuras públicas de esquerda continuam a acreditar que a ditadura de Assad é um bastião do anti-imperialismo na região e que precisa de ser apoiada.

Recusam-se a aceitar que mais de 500 mil pessoas foram mortas na guerra, a grande maioria pelo regime, que, ao contrário dos rebeldes, possui, e usa indiscriminadamente, o poder aéreo (incluindo bombas de barril lançadas a partir de helicópteros).

Embora existam razões históricas para esses equívocos por grandes fações da esquerda, estes são indesculpáveis no meio da atual destruição atroz e perda de vidas na Síria.

Para mim, é inexplicável que pessoas que defendem a justiça social e os direitos humanos em todo o mundo mantenham o apoio a um regime que explorou a sua população economicamente e torturou  e matou civis inocentes das formas mais horríveis possíveis. Ou que as pessoas que conseguiram ver além da propaganda de guerra imperial dos EUA não consigam ver o equivalente russo.

Desde que fugi da Síria, em 2014, tenho ouvido dois mitos de esquerda sobre o que está a acontecer no meu país. Quero falar de ambos mais abaixo.

É um plano de mudança de regime contra um governo legítimo.

Muitas pessoas que não acompanhavam a Síria em 2011 e 2012 talvez não tenham percebido que o atual conflito começou com uma verdadeira revolta no país.

Em março de 2011, os sírios, inclusive eu, juntaram-se à Primavera árabe, e tínhamos todos os motivos para isso.

Sonhávamos com mudanças políticas e socioeconómicas, eleições justas e um Estado que nos respeitasse e aos nossos direitos. E ninguém nos pode dizer, especialmente alguém do "mundo livre", que a nossa revolta não foi justificada.

O atual presidente, Bashar Al-Assad, chegou ao poder em 2000. Não, não através de eleições ou mesmo de consultas com partidos ou consenso entre líderes comunitários e religiosos. Ele simplesmente "herdou o trono" do seu pai, Hafez, após a sua morte.

Também Hafez não foi eleito: chegou ao poder em 1970 através de um golpe militar.

Os sírios da minha idade, e as três gerações anteriores, nunca votaram na sua vida adulta. A única coisa em que votei foi na versão árabe do programa Ídolos.

A Síria da minha infância era um estado policial repressivo. Cresci a acreditar que as paredes tinham ouvidos e que não se podia criticar o regime, mesmo nas nossas próprias casas.

Nas escolas recebíamos lavagens cerebrais diariamente. Eu frequentei as escolas do partido Baath, onde o retrato do presidente adornava cada parede. Todas as manhãs, durante a saudação da bandeira, pedíamos a imortalidade de Hafez al-Assad antes de irmos para as aulas. Memorizámos canções louvando-o e ao Partido Baath, tínhamos de recitar os seus discursos. Ele era nosso líder e pai. Quando Hafez morreu em 2000, eu tinha 9 anos. Chorei porque a pessoa que sempre me disseram ser imortal morreu como um humano normal.

O país pertencia à família Assad. Não podíamos fazer negócios sem passar por eles. Os familiares e os associados próximos de Assad tinham controlo direto sobre todas as licenças de importação e contratos governamentais.

O primo de Bashar, Rami Makhlouf, é o homem mais rico da Síria. Makhlouf controla a principal empresa de telefones móveis, canais de TV, jornais pró-governo e, antes da guerra, costumava controlar a indústria de petróleo e gás do país.

Antes de 2011, não era permitida nenhuma atividade política, ao ponto de que mesmo participar em reuniões políticas poderia conduzir a prisão e tortura durante vários anos. Após a breve "Primavera de Damasco", no início dos anos 2000, onde ousamos esperar que as coisas mudassem sob Bashar, e a posterior repressão, percebemos que ele seria como o pai.

Só que acabou por ser pior.

Em março de 2011, quando vimos os tunisinos e egípcios a mobilizarem-se e a derrubar os seus ditadores, achámos que também poderíamos exigir mudanças. Apesar de toda a repressão e propaganda institucionalizadas, os sírios ainda correram o risco e saíram para as ruas. Pessoas de todos os setores da sociedade e origens juntaram-se aos protestos: cristãos, drusos, muçulmanos, sunitas, alawitas, ismaílias, palestinianos, circasianos, etc., jovens e velhos, homens e mulheres, exigiam mudança.

Sabíamos que o preço das mudanças seria alto, mas não tínhamos ideia de que seria tão alto. Os manifestantes foram mortos a tiro. Perdi muitos dos meus amigos, fui baleada. Testemunhei pessoas a serem baleadas nas costas por franco-atiradores e polícias. As pessoas começaram a desaparecer em massa, para nunca mais voltar; algumas apareceram mortas depois das prisões. E foi nesse momento que Bashar perdeu qualquer legitimidade que poderia ter tido como ditador.

Então, não, esta não é uma mudança de regime imposta pelo Ocidente. Isto é uma revolta contra um ditador ilegítimo. Tivemos e ainda temos todos os motivos para exigir a mudança.

Não nos importa de que lado se posicionam os EUA na nossa luta. A mudança de regime, quando é exigida pelas pessoas que sofreram sob o autoritarismo, é legítima. Que vários poderes, como os EUA e os seus aliados no Golfo e na Turquia, se tenham envolvido no conflito (e, na verdade, o militarizaram) não deslegitima a nossa luta. E esperamos que os movimentos internacionais de esquerda nos apoiem, não que nos ignorem ou ridicularizem.

Os jihadistas estão escondidos em Ghouta. O regime sírio está a combatê-los

Como em qualquer conflito caótico, a radicalização encontrou terreno fértil na luta síria. Quando as pessoas estão expostas a uma tremenda pressão e injustiça, infelizmente algumas irão radicalizar-se.

O facto de algumas pessoas terem seguido um caminho mais radical nos últimos sete anos não significa que todas as que são anti-Assad também sejam terroristas.

Na Síria - em Ghouta em particular -, temos grupos armados, como Jaish-al Islam e Failaq al Rahman, Ahrar al-Sham, Hay'et Tahrir al-Sham (que tem uma presença muito pequena, apesar do que Assad tenta fazer acreditar) e outros - todos os quais cometeram violações e abusos dos direitos humanos.

No entanto, isso não significa que Ghouta seja povoada por terroristas. Muitos sírios, não apenas em Ghouta, mas também em áreas rebeldes, resistiram ao extremismo e à opressão de todos os lados. Um bom exemplo são as ativistas Razan Zeytouneh e Samira al-Khalil, que documentavam violações de todos os lados em Ghouta Oriental, pelo que foram ameaçadas tanto pelo regime quanto por grupos armados na região. Foram sequestradas em dezembro de 2013 e não foram vistas desde então; as suas famílias responsabilizaram o Jaish al-Islam.

Por isso, sim, existiram violações praticadas por grupos armados, e sim, também bombardearam áreas civis em Damasco. Mas, observando os abusos de um único lado, perde-se o ponto: primeiro, a população geral em Ghouta Oriental - que sofre mais - não está a lutar; segundo, o regime está a matar em grande escala. Os bombardeamentos provocados por rebeldes mataram 64 civis em fevereiro em toda a Síria, enquanto o bombardeamento do regime matou 852. O regime também prendeu, fez desaparecer, torturou e executou dezenas de milhares de pessoas.

E as acusações russas de que os grupos armados estão a usar os civis como escudos humanos são muito familiares. Sempre que os israelitas bombardeiam Gaza, usam a mesma narrativa; aqueles 1 500 civis que morreram no verão de 2014 também eram todos "vítimas de escudos humanos". Os EUA também disseram o mesmo sobre as quase mil pessoas que perderam a vida durante a ofensiva em Raqqa.

A Arábia Saudita, o Qatar, a Turquia, os EUA e Israel estão todos envolvidos neste conflito, mas pode dizer-se o mesmo da Rússia e do Irão. Grupos rebeldes mataram civis, e também o regime – e também em grande escala. Não se pode condenar os crimes de um lado sem condenar os crimes do outro e continuar a achar que se está a defender a justiça.

Artigo de Loubna Mrie, publicado pela Al Jazeera. Tradução de Érica Almeida Postiço.

 

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