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Porque a 'retoma' de Trump convive com a pobreza?

12-01-2018 - Ed Pilkington

O relator da ONU Philip Alston quer saber porque 41 milhões de americanos vivem na pobreza. O jornal britânico The Guardian acompanhou-o numa missão especial de duas semanas pelo lado escuro dos EUA.

Los Angeles, Califórnia, 5 de Dezembro

"Você precisa escolher. Se for recto, chega ao paraíso. Se virar à direita, chega lá."

Estamos em Los Angeles, no coração de uma das cidades mais ricas dos EUA, e nosso guia turístico é o General Dogon, vestido de preto dos pés à cabeça. Ao seu lado, caminha outro homem alto, grisalho e bem arrumado, de calça jeans e jaqueta. O professor Philip Alston é um académico australiano com um título formal: relator especial da ONU sobre pobreza extrema e direitos humanos.

O General Dogon, um veterano das ruas de Skid Row, anda a passos largos, segue em frente sem dizer nada quando pisa num rato morto e contorna um corpo enrolado em um cobertor velho laranja deitado na calçada.

Os dois homens continuam a caminhada quarteirão após quarteirão cobertos de barracas de camping rasgadas e abrigos improvisados de lona. Homens e mulheres estão do lado de fora, agachados ou dormindo, alguns em grupos, a maioria sozinhos, como se fossem figurantes em um filme distópico de baixo orçamento.

Chegamos a um cruzamento, que é quando o General Dogon para e apresenta as opções ao seu cliente. Ele aponta reto, para o final da rua, onde os brilhantes arranha-céus do centro de Los Angeles se erguem em uma promessa de riquezas divinas.

O paraíso.

Ele então se vira para a direita, revelando a expressão "black power" tatuada em seu pescoço, e conduz nosso olhar de volta a Skid Row, bairro bem no centro de Los Angeles. Naquela direção há 50 quarteirões de humilhação humana concentrada. Um pesadelo à vista de todos, na cidade dos sonhos.

Alston escolhe virar à direita.

Ali começa uma viagem de duas semanas ao lado sombrio do sonho americano. O foco do monitor da ONU, autoridade independente sobre os padrões de direitos humanos em todo o mundo, está desta vez nos EUA, um trabalho que culminou no lançamento de seu relatório inicial em Washington no dia 15 de dezembro.

Sua missão de levantamento de dados na nação mais rica que o mundo já conheceu o levou a investigar a tragédia em seu íntimo: as 41 milhões de pessoas que vivem oficialmente na pobreza naquele país.

Destes, nove milhões têm renda zero – não recebem um centavo sequer para se sustentar.

A viagem épica de Alston levou-o de uma costa à outra, de privação em privação. Começando em Los Angeles e São Francisco, atravessando o Sul profundo, voando até a mácula colonial de Porto Rico, e voltando à combalida terra do carvão na Virgínia Ocidental, ele explorou os efeitos colaterais da dependência americana da iniciativa privada e da omissão do poder público.

O jornal The Guardian obteve um acesso inédito ao enviado da ONU, acompanhando-o enquanto cruzava o país, esteve presente em suas principais paradas e pôde testemunhar em primeira mão a pobreza extrema que Alston investigava.

A missão tem um quê de revanche. Como o próprio relator especial da ONU afirmou: "Washington está muito interessado em apontar os fracassos da pobreza e dos direitos humanos em outros países. Agora é a vez dos EUA".

A viagem acontece em um momento crítico para os EUA e para o mundo. Teve início no mesmo dia em que os senadores republicanos aprovaram generosos cortes de impostos para os super-ricos, enquanto aumentavam os impostos de famílias de baixa renda. As mudanças irão exacerbar a desigualdade de riqueza no país, que já é a mais extrema entre as nações industrializadas: apenas três homens – Bill Gates, Jeff Bezos e Warren Buffet – possuem juntos a mesma riqueza que a metade do povo americano.

Poucos dias após o início da visita da ONU, os líderes republicanos deram um novo passo para acentuar a desigualdade. Anunciaram planos de reduzir programas sociais chave, verdadeiro ataque ao já degradado estado de bem-estar social.

"Olhe para cima! Olhe aqueles bancos, as gruas, os condomínios de luxo subindo", exclamou o General Dogon, que já foi um sem-teto em Skid Row e hoje trabalha como ativista na rede Lacan (Los Angeles Community Action Network). "Aqui em baixo, não há nada. Você vê as barracas uma atrás da outra, as pessoas não têm para onde ir".

A Califórnia foi uma escolha adequada como ponto de partida da visita da ONU. O estado simboliza a enorme riqueza gerada para 0,001% da população pelo boom da tecnologia, e o decorrente aumento nos custos de moradia que fez disparar o número de sem-teto. Los Angeles lida com uma crise de habitação sem precedentes: hoje 55 mil pessoas vivem nas ruas da cidade, a maior população de moradores de rua do país, o que representa um aumento de 25% em relação ao ano anterior.

Ressy Finley, 41 anos, está esterilizando o balde branco que usa para lavar a barraca onde vive há mais de uma década. Ela mantém tão limpo quanto possível o espaço composto uma massa de colchões e cobertores velhos e algumas pequenas posses, numa batalha perdida contra ratos e baratas. Ela também enfrenta infestações de percevejos de cama, e mostra grandes marcas em seu ombro deixadas pelos insetos.

Ela não tem nenhuma renda formal, e o que ganha como catadora de garrafas e latas não é o suficiente para pagar o aluguel médio de 1.400 dólares por mês por um pequeno apartamento de um quarto. Um amigo lhe traz comida em alguns dias da semana e nos outros ela depende de instituições de caridade próximas.

No decorrer de nossa rápida conversa, ela chorou duas vezes. A primeira, ao contar como seu filho pequeno foi tirado dos seus braços por assistentes sociais por causa de seu vício em drogas (ele tem hoje 14 anos, e ela nunca mais o viu). A segunda vez quando mencionou o abuso sexual que sofreu na infância a ao qual atribui a vida nas ruas e o consumo de drogas.

Por tudo isso, é notável a positividade de Finley. O que ela pensa do sonho americano, a ideia de que todos podem ter sucesso se se esforçarem? Ela responde, de pronto: "Eu sei que vou chegar lá".

Uma mulher de 41 anos que vive na calçada em Skid Row vai chegar lá?

"Claro que sim, contanto que eu mantenha a fé".

E o que "chegar lá" significa para ela?

"Quero ser escritora, poeta, empresária, terapeuta".

Robert Chambers ocupa a calçada seguinte à de Finley. Ele criou em torno de sua barraca uma área de paletes de madeira, o que em Skid Row equivaleria ao jardim de um chalé.No local, há uma placa onde está escrito "Homeless Writers Coalition" (Coalizão dos escritores sem-teto), grupo que ele dirige para dar dignidade aos moradores dali, em oposição ao que ele chama de aspectos "animalescos" de suas vidas. Ele se refere especialmente à falta de banheiros públicos que os obriga a se aliviar nas ruas.

As autoridades de Los Angeles prometem aumentar o acesso a sanitários, uma questão crítica dado o surto mortal de hepatite A que começou em São Diego e se espalhou pela costa oeste, levando a 21 mortes, principalmente por falta de saneamento em acampamentos para pessoas sem-teto. À noite, os parques e instalações locais são fechados justamente para manter os sem-teto fora.

Skid Row dispõe de nove banheiros para serem usados à noite para 1.800 moradores de rua. É um índice bem abaixo do exigido pela ONU em seus campos para refugiados sírios.

"É algo realmente desumano e, mais cedo ou mais tarde, você acaba desenvolvendo um comportamento animalesco", afirma Chambers.

Ele vive nas ruas há quase um ano, depois de ter sido despejado de um apartamento subsidiado por ter violado os termos de sua liberdade condicional por posse de drogas. Não há mais ajuda para ele, diz, não dá mais para “chegar lá”.

"A rede de segurança? É cheia de furos”.

Entre todas as pessoas que cruzaram o caminho do observador da ONU, Chambers foi quem mostrou mais desdém pelo sonho americano. "As pessoas não se dão conta – nada está melhorando, não há recuperação para pessoas como nós. Tenho 67 anos, problemas cardíacos, não poderia estar aqui. E talvez não esteja por muito mais tempo”.

Foi um carma muito pesado para um primeiro dia, e mexeu até com um experiente estudioso de adversidades como Alston. Como relator especial das Nações Unidas, ele já escreveu sobre a pobreza extrema e seu impacto nos direitos humanos na Arábia Saudita e na China, entre outros lugares. Nunca sobre Skid Row.

"Fiquei muito deprimido", disse mais tarde ao The Guardian. "As intermináveis de histórias de horror. Em certo momento, você se pergunta se alguém pode fazer algo para mudar isso".

Ele em seguida voou até São Francisco, para visitar o distrito de Tenderloin, onde sem-teto se reúnem, e caminhou até a igreja de Saint Boniface.

O que viu ali foi um bálsamo para sua alma.

São Francisco, Califórnia, 6 de dezembro

Cerca de 70 sem-teto dormiam nos bancos de trás da igreja, como podem fazer todas as manhãs da semana, com os fiéis rezando em harmonia na parte da frente. A igreja os acolhe dentro do conceito católico de caridade.

"Achei a igreja surpreendentemente inspiradora", disse Alston. "Era uma cena tão simples e uma ideia tão óbvia. Fiquei impactado – o que mais é o cristianismo, se não aquilo?"

Foi uma rara gota de altruísmo na costa oeste, num mar de hostilidade. Mais de 500 leis anti-população de rua foram aprovadas nas cidades californianas nos últimos anos. No nível federal, Ben Carson, o neurocirurgião que Donald Trump nomeou secretário de habitação, está dizimando os gastos do governo com moradia social.

Talvez o detalhe mais impressionante seja que, fora Saint Boniface e sua igreja irmã, nenhum outro lugar de culto em San Francisco acolha os sem-teto. Mesmo na temporada das festas de fim de ano, muitos começaram a trancar as portas apenas para excluí-los.

Como Tiny Gray-Garcia, também moradora de rua, descreveu para Alston, há uma atitude corriqueira que ela e seus companheiros enfrentam todos os dias. Ela a chama de "violência de virar a cara".

Esse traço cruel – a violência de virar a cara – é característico da vida americana desde a fundação do país. A libertação do jugo de um governo arrogante (a monarquia britânica) passou a ser equiparada nas mentes de muitos americanos com os direitos dos estados e a noção individualista de sucesso como resultado de esforço pessoal – uma visão boa para quem teve essa sorte, menos comum para quem não nasceu em berço de ouro.

Em oposição a essa visão criou-se a convicção de que a sociedade deve proteger o seu povo da fome ou do desemprego que sustentou o New Deal de Franklin Roosevelt e a Grande Sociedade de Lyndon Johnson. Nos últimos tempos, porém, os ventos sopraram fortemente na direção do "cada um por si". Ronald Reagan iniciou a tendência com os cortes de impostos dos anos 1980, seguido por Bill Clinton, cuja decisão, em 1996, de eliminar pagamentos de assistência social para famílias de baixa renda ainda castiga milhões de americanos.

Este ataque cumulativo faz muitas famílias lutarem para sobreviver, incluindo 15 milhões de crianças que vivem oficialmente na pobreza, com o menor acesso a programas sociais entre as economias industrializadas. Elas talvez enfrentem hoje a maior ameaça até agora.

Como o próprio Alston escreveu em um ensaio sobre o populismo de Trump e o violento desafio que representa aos direitos humanos: "São tempos extraordinariamente perigosos. Quase tudo parece possível".

Condado de Lowndes, Alabama, 9 de dezembro

A destruição dos direitos humanos sob Trump, combinada com a ameaça republicana de reduzir programas de assistência social no próximo ano para compensar alguns cortes de impostos para os ricos que tramitam aceleradamente no Congresso, prejudicará os afro-americanos de forma desproporcional.

Os negros são 13% da população dos EUA, mas 23% dos que estão oficialmente na pobreza e 39% dos sem-teto.

Em nenhum outro lugar o elemento racial da crise da pobreza nos EUA é mais claramente visível do que no Sul profundo, onde as feridas abertas da escravidão continuam a sangrar. O relator especial da ONU escolheu como sua próxima parada o Black Belt (cinturão negro), termo que se referia originalmente ao solo rico e escuro de uma faixa que cruza o Alabama, mas que ao longo do tempo passou a descrever sua população majoritariamente afro-americana.

A ligação entre o tipo de solo e a demografia não foi coincidência. O algodão se adaptou muito bem a esta terra fértil, estimulando, por sua vez, o comércio de escravos para colher a safra. Seus descendentes ainda vivem no Black Belt, em níveis de pobreza entre os piores do país.

Você pode traçar a história da vergonha americana, desde os tempos da escravidão até hoje, com um conjunto de gráficos simples. O primeiro mostra o solo propício ao algodão do Black Belt, depois a população escrava, seguido pela residência negra moderna e a extrema pobreza de hoje – todos ocupam exatamente a mesma meia-lua dentro do Alabama.

Há inúmeras formas de constatar o estado precário atual da comunidade negra do Alabama. Talvez a mais cruel seja a falta de acesso ao saneamento de tantas famílias do Black Belt. Milhares de pessoas continuam a viver rodeada de esgoto a céu aberto, situação normalmente associada aos países em desenvolvimento.

A crise foi revelada pelo Guardian há alguns meses por causa de uma endemia de ancilostomíase, parasita intestinal transmitido através de dejetos humanos. É comum na África e no Sul asiático, mas era considerado erradicado nos EUA há muitos anos.

Mas eis aqui o verme, sugando o sangue de pessoas pobres, no estado de origem do procurador-geral dos EUA de Trump, Jeff Sessions.

Uma doença de países em desenvolvimento de volta ao país mais rico do mundo.

O problema do esgoto a céu aberto é especialmente agudo no condado de Lowndes, uma comunidade maioritariamente negra que foi um epicentro do movimento pelos direitos civis, tendo sido uma das paradas da marcha de Selma para Montgomery, pelo direito ao voto, liderada por Martin Luther King em 1965.

Apesar da história digna de orgulho, Catherine Flowers estima que 70% das casas da área ou despejam seus resíduos diretamente na terra ou possuem fossas sépticas defeituosas, que não resistem a chuvas fortes.

Quando seu grupo, o Alabama Center for Rural Enterprise (Acre), pressionou as autoridades locais a apresentar soluções para o problema, o resultado foi o investimento de seis milhões de dólares na extensão dos sistemas de tratamento de esgoto para empresas cujos donos eram, em sua maioria, brancos, em detrimento das residências das famílias negras.

"É um exemplo flagrante de injustiça", diz Flowers. "As pessoas que não podem pagar seus próprios sistemas de tratamento são deixadas de lado, enquanto as empresas com recursos recebem serviços públicos".

Walter, um morador do condado de Lowndes que seu sobrenome não fosse publicado por medo de seu abastecimento de água ser cortado em represália, vive as consequências diárias dessa negligência pública.

"Se cai uma chuva forte, tudo volta para casa".

Essa é uma maneira educada de dizer que o esgoto borbulha de volta até a pia de sua cozinha, seu sanitário e banheira, enchendo a casa de um fedor nauseabundo.

Dadas as circunstâncias, o que ele pensa da ideologia que prega que, com esforço, qualquer um pode chegar lá?

"Suponho que todos poderiam mesmo se tivessem oportunidades", diz Walter. Ele faz uma pausa, e acrescenta: "O povo não tem oportunidades".

Se ele tivesse nascido branco, imagina que seu problema com o esgoto já teria sido resolvido?

Após outra pausa, ele diz: "Sem ser racista, mas sim, estaria resolvido".

Na parte de trás da casa de Walter, revela-se a verdadeira iniquidade da situação. O quintal é cheio de pequenas canaletas que saem de casas vizinhas pelas quais flui um líquido escuro. Ele se junta em poças viscosas exatamente embaixo do trailer em que vivem o filho de Walter, sua nora e sua neta de 16 anos.

É a imagem mais extrema do abandono da comunidade rural negra e pobre em Alabama. Como cidadãos americanos, têm pleno direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade. Só que estão rodeados de poças de excrementos.

Esta semana, o Black Belt reagiu. Na terça-feira, uma nova linha foi adicionada àquele gráfico simples, mostrando exatamente a mesma meia-lua no Alabama, que desta vez não era preta, mas azul.

Ela mostra o exército de eleitores afro-americanos que, contra todas as probabilidades, elegeram Doug Jones para o Senado dos EUA – o primeiro democrata do Alabama a ser eleito senador em uma geração.

Ele derrotou seu oponente, Roy Moore, acusado de abusar de crianças, e seus líderes e correligionários Steve Bannon e Donald Trump.

Foi, indiscutivelmente, a expressão mais importante da força política do movimento negro na região desde a marcha de King, em 1965. Enquanto os tópicos anteriores do gráfico são "solo", "escravidão" e "pobreza", este último se chama "empoderamento".

Guayama, Porto Rico, 10 de dezembro

Como Alston vê seu papel de relator da ONU e sua visita? Seu relatório completo sobre os EUA será lançado em maio, antes de ser apresentado ao conselho de direitos humanos da ONU, em Genebra.

Ninguém espera que isso resulte em muitas mudanças: o corpo mundial não tem dentes para impor bom comportamento a governos desobedientes. Mas Alston espera que sua visita tenha o impacto de causar embaraço e levar os EUA a refletir sobre seus valores.

"Meu papel é chamar os governos à responsabilidade", disse. "Mesmo que o governo dos EUA não queira falar sobre o direito à moradia, o acesso à saúde ou à alimentação, ainda existem padrões básicos de direitos humanos que devem ser cumpridos. Meu trabalho é apontar isso."

Nas investigações anteriores de Alston sobre a extrema pobreza, em lugares como a Mauritânia, não houve meias palavras. Podemos esperar a mesma sinceridade de sua análise de Porto Rico, a próxima parada em sua jornada pelo lado escuro dos Estados Unidos.

Faz três meses da passagem do furacão Maria, cuja devastação foi bem documentada. Ele deixou 70 mil casas em pedaços, paralisou a indústria e causou um apagão total da ilha, e os estragos ainda são visíveis.

Mas a dura situação de Puerto Rico vem de muito antes do Maria, e tem suas raízes na indiferença com que foi tratado desde a aquisição como espólio de guerra, em 1898. Quase metade dos americanos não faz ideia de que os 3,5 milhões de porto-riquenhos da ilha também são cidadãos americanos, o que agrava o absurdo fato de o território não ter representação no Congresso, enquanto suas políticas fiscais são ditadas por um conselho imposto por Washington. Como era mesmo aquela história de libertação do jugo de um governo arrogante?

A maioria das pessoas também não compreende por que a ilha tem o dobro da proporção de pessoas na pobreza (44%) que o mais modesto estado americano, como o Alabama (19%). E isso antes do furacão, que, como sugerem algumas estimativas, pode ter jogado a taxa de pobreza para 60%.

"Porto Rico é uma zona de sacrifício", diz Ruth Santiago, advogada de direitos comunitários. "Somos governados pelos Estados Unidos, mas nunca somos consultados – não temos influência, somos apenas seu brinquedo".

O relator da ONU teve uma ideia do que significa ser um brinquedo dos EUA, na prática, quando viajou para o sul da ilha, para Guayama, uma cidade de 42 mil habitantes, perto de onde o furacão Maria chegou à terra. A devastação está por todo lado – casas destruídas, telhados arrancados, cabos de energia pendendo perigosamente dos postes.

Pairando sobre a comunidade, há uma usina de energia a carvão construída pelo ramo porto-riquenho da AES Corporation, multinacional com sede na Virgínia. A coluna de fumaça da usina domina o horizonte, assim como um enorme monte de resíduo do carvão queimado que alcança pelo menos 20 metros, como um castelo de areia gigante.

O monte fica totalmente exposto, e os moradores locais queixam-se de que as toxinas se infiltram até o mar, destruindo os meios de subsistência dos pescadores através da contaminação por mercúrio. Eles também temem que a poeira da fumaça cause problemas de saúde, preocupação compartilhada por médicos locais que relataram ao monitor da ONU uma alta incidência de doenças respiratórias e câncer.

"A fumaça mata as folhas da minha mangueira", conta Flora Picar Cruz, 82. Ela estava deitada em sua cama ao meio dia, respirando com dificuldade por meio de uma máscara de oxigênio.

Análises da fumaça encontraram níveis perigosos de substâncias tóxicas, incluindo arsênio, boro, cloreto e cromo. Mesmo assim, o governo Trump está aliviando as leis já bastante laxistas sobre o monitoramento de efluentes perigosos.

A AES Puerto Rico disse ao Guardian que não havia nada com que se preocupar, uma vez que a usina era uma das mais limpas nos EUA, construída para evitar qualquer escapamento para o ar ou o mar. Não é o que o povo de Guayama pensa. A população local teme que o velho padrão de ser subestimada pelo colonizador americano esteja alcançando um novo patamar.

Quando essas atitudes se repetem em toda a ilha, é fácil entender por que tantos portorriquenhos estão votando com os pés: quase 200 mil fizeram as malas e se mudaram para a Flórida, Nova York e Pensilvânia desde o furacão, somando-se aos mais de cinco milhões que já viviam no continente dos EUA. O que dá um novo significado ao sonho americano – qualquer um pode realizá-lo, desde que abandone a família, sua casa, sua cultura e se mude para uma terra estranha e ameaçadora.

Charleston, Virginia Ocidental, 13 de dezembro

"Vocês são um povo incrível! Vamos acabar com estes muitos anos de horrível abuso, ok? Vocês podem contar 100% com isso".

A promessa de Donald Trump aos eleitores brancos da Virgínia Ocidental foi feita exatamente quando ele estava garantindo a nomeação presidencial republicana, em maio de 2016. Seis meses depois, seu público retribuiu generosamente com uma vitória esmagadora.

Não surpreende que as famílias brancas na Virgínia Ocidental tenham respondido positivamente à ofensiva de Trump, uma vez que ele lhes ofereceu o mundo – “Vamos devolver o trabalho dos mineiros!" Afinal, numericamente, a maioria dos que hoje vivem na pobreza em todo o país – 27 milhões de pessoas – são brancos.

Na Virgínia Ocidental, particularmente, as famílias brancas têm razões para reclamar. A mecanização e o declínio da mineração do carvão dizimaram o estado, levando ao alto desemprego e salários estagnados. A transferência de empregos das minas e siderúrgicas para o Walmart baixou os salários dos trabalhadores homens, que hoje ganham, em média, 3,50 dólares por hora menos do que em 1979.

O que surpreende é que tantos trabalhadores orgulhosos tenham confiado seus sonhos a um (suposto) bilionário que construiu seu império imobiliário à custa do dinheiro do pai.

Antes de concorrer à presidência, Trump mostrava bem pouco interesse na luta das famílias de baixa renda, brancas ou não. Depois de quase um ano no Salão Oval, há igualmente poucos sinais de que essas promessas de campanha serão cumpridas.

Pelo contrário. Quando o relator da ONU deixou Charleston, Virgínia Ocidental na quarta-feira, a parada final em sua viagem, ele estava tinha muitas provas de que as políticas do presidente estão arrochando exatamente as pessoas que o elegeram.

No mesmo dia, os republicanos no Senado e na Câmara estavam costurando seus projetos de redução de impostos antes da votação final na semana seguinte. Muitos oeste-virginianos serão ludibriados a acreditar que as mudanças vão beneficiá-los, já que, inicialmente, todo mundo no estado pagará menos impostos.

Mas quando 2027 chegar e as mudanças no déficit na poupança aparecerem, os 80% de baixo da pirâmide pagarão mais, enquanto o 1% do topo continuará a desfrutar de um presente de 21 mil dólares.

"As políticas de Trump irão agravar a desigualdade, suprimir salários e dificultar o acesso à assistência às famílias de baixa renda", afirmou Ted Boettner, diretor executivo do West Virginia Center on Budget and Policy (Centro da Virginia Ocidental para Orçamento e Políticas).

Se o esgoto é a imagem que marca o fardo do Black Belt, um bocado de dentes podres é a da Virginia Ocidental.

Médicos da Health Right, centro médico de trabalho voluntário em Charleston que trata gratuitamente 21 mil pessoas de baixa renda, mostraram ao relator da ONU uma fotografia de um de seus pacientes de odontologia.

O homem tem apenas 32 anos, mas quando abre a boca, transforma-se em uma das bruxas de Macbeth. Os poucos dentes podres remanescentes e as gengivas esverdeadas pareciam uma poção venenosa de seus caldeirões fumegantes.

A odontologia adulta não é coberta pela Medicaid, exceto em caso de emergência, então as pessoas fazem o que parece lógico: nada, até que seus abcessos estourem e seja preciso ir a uma emergência. Uma mulher atendida pela clínica de odontologia móvel do centro não encontrou mais do que 30 canais na boca, todos precisando de cirurgia.

Em outros encontros, Alston escutou relatos da vida sitiada das famílias de baixa renda da Virgínia Ocidental. Se Lyndon Johnson declarou guerra contra a pobreza, Trump está travando uma guerra contra os pobres.

As pessoas estão presas há anos porque não podem pagar a fiança enquanto aguardam julgamento; detetives privados são usados para espionar requerentes de benefícios por invalidez; sentenças mínimas obrigatórias para uso de drogas estão de volta à moda; Jeff Sessions está desmontando os programas federais de ressocialização de ex-presidiários; inquilinos de moradias subsidiadas vivem com medo de serem despejados por qualquer infração – e a lista continua.

E o resultado desse massacre implacável? "As pessoas estão brigando muito", conta Eli Baumwell, diretora de políticas da União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU), na Virgínia Ocidental. "Você fica tão obcecado com o que você tem e com o que seu vizinho tem que muita gente acaba ressentida. É isso que Trump está fazendo – jogando uns contra os outros".

E assim Philip Alston embarcou num último avião, em direção a Washington, carregando consigo o tormento destilado do povo americano.

Em um ponto da viagem, Alston conta que tinha tido uma noite de insônia, refletindo sobre as almas perdidas que tínhamos conhecido em Skid Row.

Ele se perguntou sobre como uma pessoa em sua posição – “Sou velho, homem, branco, rico e vivo muito bem" – reagiria diante de uma dessas pessoas sem-teto. "Ele o olharia e veria alguém sujo, que não toma banho, de quem não quer estar perto".

Então Alston teve uma epifania.

"Percebi que é assim que o governo os vê. Mas o que eu vejo é o fracasso da sociedade. Vejo uma sociedade que permite que isso aconteça, que não faz o que devia. E é muito triste".

A viagem do relator da ONU havia chegado ao fim.

Tradução de Clarisse Meireles

 

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