Manuel Valls: sorrisos à esquerda, mas mesma política económica
11-04-2014 - C.M.
Com Armand Montebourg e outras nomeações internas, Manuel Valls dá algumas guloseimas à esquerda do PS sem que isso signifique mudança de rumo.
O socialismo de ficção colocou as mãos à obra. Um pouco de novela, um pouco de esquerda, um pouco de direita e sempre com as políticas de austeridade como manual de estilo, o novo governo nomeado pelo recém-nomeado primeiro ministro francês Manuel Valls sintetiza as zonas de influência de cada personalidade: a do presidente francês François Hollande e a do próprio chefe do Executivo. Este segundo gabinete de François Hollande tem 16 ministros, dos quais só há dois novos e alguns renomeados entre os que já compunham o governo de Jean-Marc Ayrault, o primeiro-ministro que saiu.
Valls montou uma cena governamental capaz de aliviar a imagem de conservador que possui e isso explica a presença de duas personalidades que fazem um contraponto a esse perfil: a do proteccionista e militante antiglobalização Arnaud Montebourg, como titular da Economia, Indústria e Novas Tecnologias, e a da ex-candidata presidencial do PS em 2007, Ségolène Royal, nomeada ministra da Ecologia, Desenvolvimento Sustentável e Energia.
A presença de Ségolène Royal neste governo é uma desforra para uma mulher que foi companheira de Hollande, a mãe de seus quatro filhos, a primeira mulher socialista a assumir uma candidatura presidencial, que sofreu uma avalanche de piadas machistas da imprensa e uma onda de traições e desprezos vindos de seu próprio partido. Depois de sua derrota em 2007, Royal se separou de Hollande no meio de um combate feroz pelo controle do aparelho do partido. Seu retorno é toda uma novela para incrédulos, mas real, que põe mais uma vez em evidência a dimensão de tragédia amorosa que envolve o palácio presidencial francês.
O presidente socialista François Miterrand teve uma família não oficial escondida no recinto presidencial. Seu sucessor, o conservador Jacques Chirac, tinha mais amantes que ministros – entre elas a actriz Claudia Cardinale. Nicolas Sarkozy assumiu o poder casado com Cecília, se divorciou durante a presidência para se casar logo em seguida com a modelo e cantora Carla Bruni, com quem também teve um filho. Quanto a Hollande, o presidente se separou de Ségolène Royal, se uniu sem se casar com Valérie Trierweiler, entrou com ela de mãos dadas no palácio presidencial até que, há alguns meses, se separou depois que veio a público que ele mantinha uma relação secreta com a actriz Julie Gayet.
As datas também estão carregadas de símbolos. Há exactamente 22 anos, em 2 de abril de 1992, Ségolène Royal entrava no governo socialista do falecido Pierre Beregevoy como ministra do Meio Ambiente. A nomeação de Royal é também um balanço que vem compensar a ausência dos ecologistas, que recusaram entrar no novo gabinete de Manuel Valls. Mais surpreendente ainda é o nome de Arnaud Montebourg para a pasta de Economia, Indústria e Novas Tecnologias. Este político inteligente é a ovelha negra da União Europeia, um tribuno loquaz que dirige seus argumentos contra a globalização, a chanceler alemã Angela Merkel, a Comissão Europeia e seus tentáculos liberais. É o que se pode chamar de um “euro-intolerante” que deixa de cabelos em pé os alemães e toda a imprensa anglo-saxã.
Montebourg é tido como um homem de esquerda porque, em 2011, escreveu um best-seller onde assume as ideias da esquerda francesa, em especial as de Jean-Luc Mélenchon. O livro “Votez pour la démondialisation!” é uma violenta crítica contra a globalização. Nele podem se ler frases como: “o mundo se equivocou de direcção, a globalização se converteu em sua perdição”. Ou “a globalização fabricou desempregados no norte e aumentou a quantidade de quase escravos no sul, destruiu os recursos naturais em todas as partes, deu poder aos financistas e retirou dos povos os meios que haviam conseguido para garantir sua autodeterminação”. O novo ministro da Economia também criticou os “fundamentalistas da abertura comercial”, cujo único credo é a “religião do livre comércio”. Não é óbvio vê-lo em Bruxelas negociando as questões económicas. Quem se encarregará disso, sem dúvida, é o ministro de Finanças, Michel Sapin.
De facto, com Montebourg e outras nomeações internas, Manuel Valls dá algumas guloseimas à esquerda do PS sem que, no momento, isso signifique a menor mudança de política. Neste contexto, Valls passou Benoît Hamon, o fundador da corrente “A nova esquerda”, que estava no Ministério do Consumo, para o Ministério de Educação, Pesquisa e Universidades. Cabe recordar que estes líderes políticos tem uma pena muito poética mas, uma vez no poder, não seguem seus escritos.
O Página12 entrevistou Benoît Hamon, em 2012, antes das eleições presidenciais, para falar sobre seu livro “Virar a página, recuperar o caminho do progresso social”. Na entrevista, Hamon reconheceu que “a social-democracia europeia está afundando”, defendeu o fim da aliança entre a social-democracia e o liberalismo e propôs alguns caminhos para a esquerda seguir viva: “É impossível dizer que se é de esquerda se não se muda a política fiscal, a política monetária, a política comercial e a doutrina da política económica que hoje aposta no holocausto, ou seja, na competitividade por meio da redução do custo da mão de obra, do trabalho”. O governo de Hollande se comprometeu com uma política que é exactamente a contrária da que Hamon defendia para salvar o pouco que resta da social-democracia europeia.
O futuro não parece diferir muito do que se viu até este momento. Em sua primeira intervenção pública na televisão, Manuel Valls expôs sua agenda com dois conceitos: “continuidade e eficácia”. Valls também esclareceu que não haveria ruptura nem revolução. Na verdade, não há margem para nenhuma das duas coisas. A França está sob o olhar zeloso da União Europeia para que respeite um déficit máximo de 3% de seu PIB, tal como prevê o Pacto de Estabilidade europeus firmado pelo presidente conservador Nicolas Sarkozy e o qual Hollande prometeu renegociar (nunca fez isso). A França teve um déficit de 4,3% e deve alcançar o equilíbrio máximo de 3% em 2015.
Os parlamentares da esquerda socialistas se mostram muito desconfiados ante à nomeação de Manuel Valls como primeiro-ministro. A “garantia” implícita nas nomeações de Montebourg e Hamon aparece como uma mera distracção ante os compromissos europeus da França, o peso da dívida que Sarkozy deixou como um presente envenenado, e, mais globalmente, a orientação social-liberal desta presidência de François Hollande. Para essa e as demais esquerdas, é um péssimo momento da história. Suas ideias, em princípio, estão no poder. Mas são as ideias do adversário que governam.
Tradução: Louise Antónia León
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