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Captura indevida

22-09-2017 - Zach Campbell

Itália prende refugiados forçados a pilotar barcos de contrabandistas. OS refugiados acabam de ser retirados das águas do Mediterrâneo central, e um grupo de investigadores da guarda costeira italiana já seleciona um punhado deles para interrogatório. Enquanto o navio de resgate segue para a Sicília, os selecionados são apartados dos demais e entrevistados. Cerca de uma hora depois, retornam, agora identificados por uma pulseira de plástico. Algumas dizem “testemunha”, outras, “suspeito”. Em regra, duas delas dizem “contrabandista”.

Quando os refugiados desembarcam no porto da Sicília, aqueles com pulseiras são entregues à polícia italiana, que irá interrogá-los novamente e deter os suspeitos de contrabando de migrantes, como parte de um esforço para desbaratar as redes criminosas que levaram 85 mil pessoas à Itália este ano. Todos os grupos de refugiados que chegam à Sicília passam por processo semelhante, independentemente de terem sido resgatados pela guarda costeira ou por navios de ONGs.

A imprensa italiana comemora essas operações como peças-chave do combate à imigração ilegal e idolatra figuras como Carlo Parini, ex-investigador antimáfia que é atualmente um dos mais importantes policiais do combate ao tráfico humano. Parini comanda um dos esquadrões de polícia judiciária vinculados aos promotores da província de Siracusa, na porção oriental da Sicília. Seu estilo agressivo lhe rendeu o apelido de “o caçador de contrabandistas”.

Só há, no entanto, um problema: a maioria das pessoas presas por esses policiais não é de contrabandistas ou traficantes. Hoje quase 1400 pessoas estão detidas em presídios na Itália simplesmente por ter pilotado um bote inflável ou segurado uma bússola. Grande parte deles foi obrigada a pilotar o barco, muitas vezes sob a mira de armas, mesmo tendo pago a contrabandistas líbios pela passagem para a Europa.

Em italiano, são chamados scafisti – literalmente, pilotos de barco. Linguisticamente, existe uma diferença entre eles e os trafficanti – os traficantes de pessoas. Legalmente, também há distinção: a maior parte dos pilotos é denunciada por favoreggiamento – “favorecimento” à imigração ilegal. É o enquadramento mais leve possível na Itália em casos de contrabando de migrantes. De acordo com o Ministério da Justiça da Itália, desde 2014 mais de mil pessoas são detidas e acusadas de favoreggiamento todo ano.

Muitos apontam, porém, que essas acusações, baseadas em breves entrevistas, não pegam os verdadeiros criminosos e acabam mandando pessoas inocentes para a prisão. The Intercept entrevistou refugiados, observadores de direitos humanos e jornalistas locais da Sicília, que manifestaram preocupação sobre a legitimidade dos processos contra os scafisti. As denúncias normalmente são acompanhadas por indícios fracos e depoimentos duvidosos de testemunhas. Raramente levam em conta a violência e a coerção próprias ao contrabando de migrantes.

De acordo com a advogada e pesquisadora siciliana Paola Ottaviano, a maior parte das pessoas acusadas de favoreggiamento não tem qualquer conexão com as redes de tráfico de pessoas da Líbia. “A maioria dos que vemos, cerca de 80%, pagou para atravessar como todos os outros”, diz ela. “[Traficantes] apontam uma arma para eles e dizem ‘você pilota’.”

Gigi Modica, juiz de uma vara criminal em Palermo que adotou uma posição incomum ao rejeitar algumas acusações contra scafisti, contou ao The Intercept que a polícia judiciária “se satisfaz com a oitiva de três ou quatro pessoas que dizem quem era o piloto”. Com relação ao acusado, “eles não fazem uma investigação aprofundada para determinar se havia livre escolha”.

“São apenas duas perguntas”, contou Modica, “quem era o piloto e quem era o homem com a bússola. Só isso.”

OUSAINEU JOOF TINHA 15 ANOS quando foi detido pela polícia italiana e ficou um ano na cadeia acusado de pilotar um barco inflável. Alto e magro, Joof fala inglês com fluência e tem uma forte gagueira, especialmente quando se recorda das partes mais violentas de sua história. Em 2015, ele fugiu de sua casa na Gâmbia, na África Ocidental, depois que seu pai o expulsou de casa e o ameaçou de morte – segundo Joof, por ter ido a uma cerimônia religiosa com um amigo de outra religião. Inicialmente, ele ficou com a família no vizinho Senegal, até pegar um ônibus para Agadez, uma cidade em Niger, próxima à fronteira sul com a Líbia. Ele pagou contrabandistas para ajudá-lo a atravessar a fronteira até a Líbia e a chegar dali à costa do Mediterrâneo, para embarcar em um barco com destino à Europa.

Joof recorda estar sentado bem no meio do bote inflável de 35 pés que o levaria à Itália. Era 1h da madrugada e os contrabandistas estavam embarcando cerca de cem pessoas. Durante a viagem, Joof conta que vomitou por horas. Quando o bote foi resgatado em águas internacionais pela guarda costeira italiana, ele foi levado diretamente para o hospital. Depois de três dias internado, a polícia o conduziu para a cadeia: ele tinha recebido uma pulseira verde.

Joof foi acusado de favoreggiamento com base nos depoimentos de três testemunhas que haviam feito a viagem desde a Líbia no mesmo dia. De acordo com o advogado de Joof, a polícia judiciária fez a elas as exatas duas perguntas que o juiz Modica mencionara: quem pilotava e quem segurava a bússola. As testemunhas indicaram Joof.

Ele, porém, nega que tenha pilotado. “Eles me disseram que eu estava sendo acusado de ser o capitão do barco”, Joof contou ao The Intercept. A entrevista aconteceu no centro para menores requerentes de asilo onde ele atualmente vive, numa cidadezinha fora de Palermo. “Eu disse a eles que ‘não, eu paguei para vir’. Pedi para me mostrarem provas de que eu era o capitão. Desde 2015, ninguém me mostrou qualquer indício de que fosse eu que pilotava o barco.”

“Eles prendem duas pessoas a cada 100 ou 150 que chegam”, disse Paola Ottaviano, a pesquisadora siciliana. Ottaviano questiona a veracidade de muitos dos depoimentos, que são normalmente obtidos de sobreviventes de naufrágios, traumatizados, que acabaram de chegar à Europa e aguardam a resposta aos seus pedidos de asilo, e têm por isso todo incentivo para cooperar.

Isso é potencializado quando o interrogatório é feito nos próprios barcos, logo depois do resgate. A Frontex, agência de fronteiras da União Europeia, que colabora com os investigadores italianos, também declarou que “as condições a bordo das embarcações não são adequadas para entrevistas”. Ainda assim, um representante da agência admitiu que, depois de um resgate, os oficiais a bordo das embarcações da Frontex também indicam às autoridades italianas quem eles consideram “pessoas suspeitas”. O representante se recusou a esclarecer se essas pessoas estariam sendo acusadas por um crime, ou que tipo de critério seria levado em conta para essa seleção.

Ottaviano relata que, em Pozzalo, um porto no sudeste da ilha, “a cada desembarque, eles encontram três ou quatro migrantes, em regra vindos de países em que é difícil conseguir asilo. A polícia então informa aos recém-chegados: “se você me disser quem pilotava o barco, eu consigo uma permissão para você ficar”.

“O governo italiano está procurando qualquer pessoa culpável”, acrescentou Ottaviano. “Eles querem mostrar que estão combatendo o tráfico humano e prendendo contrabandistas, mesmo que não seja o caso dessas pessoas.”

IKUKOYI TAMOLA é de LAGOS, na Nigéria, mas fugiu depois de ser perseguido por sua atividade política. Tamola conta que foi baleado e deixado para morrer, durante uma manifestação política que ajudou a organizar. Ainda estava no hospital quando descobriu que as mesmas pessoas que atiraram contra ele haviam ameaçado sua esposa e seus filhos e queimado sua casa. (Ele concordou em conceder a entrevista ao The Intercept sob a condição de ser identificado apenas por pseudônimo.) No escritório de seu advogado, na Catânia central, na costa leste da Sicília, Tamola mostra a cicatriz onde a bala atingiu seu peito.

Ele também passou um ano na prisão por favoreggiamento – como Ousaineu Joof, foi acusado com base no depoimento de três outras pessoas resgatadas ao mesmo tempo. Ao contrário de Joof, no entanto, ele admite ter pilotado o barco inflável. Diz que foi obrigado, sob a mira de uma arma.

Tamola relata que pagou aos contrabandistas líbios o equivalente a 750 dólares para fazer a travessia até a Itália. Depois de alguns dias em um esconderijo perto de Sabratha, na Líbia, os contrabandistas levaram o grupo do qual ele fazia parte para uma praia. Foram enfileirados, com rifles automáticos apontados para eles. Um deles perguntou se alguém falava inglês. Tamola levantou a mão, mas se arrependeu imediatamente.

Os contrabandistas decidiram que ele pilotaria o barco. Mostraram a ele como dar partida no motor de popa, depois desligaram o motor e disseram a ele para dar a partida novamente. “Eu disse a ele que não sabia o que fazer. O tempo todo eles apontavam a arma para a minha cabeça, dizendo que eu deveria dar a partida [no motor]”, recorda-se Tamola, erguendo as mãos como se segurasse um rifle. Tamola teve dificuldade em cumprir a ordem, pois seu braço ainda doía dos ferimentos que sofrera na Nigéria. “Então o sujeito com a arma me socou no estômago, e eu caí. Eles tratam pessoas como animais”, ele completou.

Casos como o de Tamola são muito comuns, de acordo com Gigi Modica, o juiz criminal de Palermo. “É possível que sejam todos, mas podemos dizer com certeza que a maior parte” dos casos de favoreggiamento envolvem pessoas que foram obrigadas a pilotar, ele explicou. Modica já julgou vários casos semelhantes, e no ano passado foi o primeiro juiz da Itália a reconhecer que pessoas coagidas a pilotar, muitas vezes sob mira de armas, não deveriam ser punidas: ele usou o termo “estado de necessidade”.

“Ainda que você esteja descumprindo a lei, você só está fazendo isso para salvar sua vida”, afirma. Para ele, colocar essas pessoas na prisão não tem qualquer impacto no combate às redes de tráfico humano. Muitos colegas de Modica, no entanto, não partilham de sua interpretação da lei.

Para Emilio Cintollo, advogado criminalista em Ragusa, no sudeste da Sicília, os processos de favoreggiamento aumentaram muito nos últimos anos. E com as mudanças no próprio contrabando de migrantes, o tipo de acusado também mudou.

Até 2014, contrabandistas egípcios ou líbios usavam grandes barcos de madeira que comportavam centenas de pessoas e tinham uma boa chance de alcançar águas italianas, ao contrário dos pequenos botes infláveis usados atualmente. Cintollo relata que havia sempre um capitão e um navegador na embarcação de madeira, que eram acusados de favoreggiamento por trabalhar com as redes de contrabando. “Eles eram pagos. Ambos normalmente admitiam em juízo que trabalhavam por dinheiro”, contou Cintollo. Se alguém se afogasse ou morresse por alguma outra causa durante a viagem, o piloto e o navegador costumavam ser acusados de homicídio – de acordo com Cintollo, muitas pessoas foram condenadas à prisão perpétua por casos de naufrágio.

Desde 2014, no entanto, as táticas dos contrabandistas mudaram. A maior parte das pessoas agora é transportada em botes infláveis de 35 pés, pilotados por um dos passageiros. A guarda costeira italiana considera que esses botes, superlotados e pilotados por pessoas inexperientes, exigem resgate, por princípio, e eles costumam ser resgatados em águas internacionais antes mesmo de começar a afundar.

Cintollo diz que a punição agora atinge os passageiros; a maior parte dos atuais acusados de favoreggiamento nunca foi parte de uma organização de tráfico de pessoas. “Já defendi mais de cem casos de scafisti”, diz, “e nunca conheci um scafista que pilotasse por dinheiro”.

As punições por favoreggiamento variam muito. Os condenados podem receber pena de prisão de 5 a 15 anos e uma multa pesada, de até algumas dezenas de milhares de euros por cada pessoa a bordo da embarcação que pilotavam. No entanto, muitas pessoas que enfrentam processos sob a acusação de serem scafisti acabam optando por realizar acordos judiciais ou aceitar a aplicação de procedimento sumário, para reduzir o período de privação de liberdade. Cintollo explica que os supostos scafisti assinam esses acordos sem compreender a fundo suas implicações, o que se confirmou nas entrevistas com cinco pessoas condenadas por favoreggiamento e seus advogados.

“Muitos advogados solicitam acordos judiciais para conseguir uma liberação rápida de seus clientes”, disse Fulvio Vassallo, advogado de imigração e professor de Direito na Universidade de Palermo. Vassallo explica que, na Sicília, acordos judiciais ou julgamentos sumários podem ser uma solução boa para todos, tanto para promotores com metas a cumprir e quanto para advogados de defesa. Os promotores conseguem uma condenação a despeito das provas insuficientes, enquanto os defensores obtêm a liberdade de seus clientes e recebem seus honorários mais cedo. (Advogados de defesa são pagos pelo governo italiano por cada refugiado que defendam pro bono.)

“Nos casos mais sérios, pode haver um conluio entre promotores e advogados de defesa, que são pagos para oferecer assistência jurídica gratuita, desde que não causem muitos problemas”, diz Vassallo.

Para os refugiados que são condenados, porém, a pena mais curta de prisão vem acompanhada da admissão de culpa e de uma ordem de expulsão da Itália. Com um histórico de contrabando de migrantes na ficha, eles têm mais dificuldade para solicitar asilo ou outras formas de proteção internacional.

Carlo Parini, o “caçador de contrabandistas” recusou vários pedidos de entrevista para este artigo Seu escritório, assim como o do promotor de Siracusa, não respondeu a perguntas sobre sua atuação no combate ao contrabando de migrantes.

Eu cheguei a me encontrar com Parini no começo de 2017 em Augusta, um pequeno porto comercial na província de Siracusa, quando eu estava acompanhando operações de resgate a bordo do Golfo Azzurro, navio de uma ONG espanhola. Estava fotografando o desembarque de 250 pessoas resgatadas, quando dois policiais à paisana se aproximaram de mim – Parini e outro membro de sua equipe, Mario Carnazza. Eles exigiram que eu disponibilizasse as fotos que tirei durante o resgate no mar. Explicaram que serviriam para identificar o piloto do bote inflável, o que permitiria localizar e deter essa pessoa por contrabando.

Quando me recusei a fornecer as fotos, Parini e Carnazza confiscaram meu passaporte e, apesar dos meus protestos, me forçaram a desembarcar e me levaram a um escritório próximo.

No escritório portuário de Parini, reconheci dois homens que a ONG havia resgatado alguns dias antes, bebendo suco de caixinha enquanto policiais os questionavam sobre a viagem. Eles pareciam aterrorizados.

Parini e Carnazza me interrogaram por mais de uma hora. Eles ameaçaram me acusar de não colaborar com a polícia (Carnazza me orientou a cooperar para não “ter problemas”). Suas perguntas, contudo, tinham pouca relação com o resgate: quem eu era, onde vivia, e algumas sobre minha família e meu trabalho. Finalmente, depois do interrogatório, devolveram meu passaporte e me liberaram. Não entreguei a eles nenhuma das fotos.

Antes de deixar o porto, perguntei a Parini e Carnazza se eles realmente achavam que os homens que pilotavam os barcos infláveis tinham qualquer relação com as redes de tráfico de pessoas da Líbia. Eles apenas deram de ombros.

Tamola passou um ano e dois meses na prisão enquanto seu caso se arrastava pela burocracia da Itália. Joof ficou preso por pouco menos de um ano. Na Itália, as pessoas acusadas de favoreggiamento são geralmente mantidas presas enquanto o processo se desenrola, e Joof e Tamola só conseguiram sair da prisão preventiva depois que trocaram de advogado. Ambos, porém, ainda aguardam julgamento. Tamola vive num acampamento de refugiados superlotado na região central da Sicília, fazendo “bicos” para se sustentar, e Joof, no centro de menores, está estudando para ser um chef de cozinha – ele quer aprender a culinária da Sicília. Seus casos devem ser decididos até o fim do ano.

Ambos têm a mesma reclamação a fazer sobre a prisão: não lhes foi permitido telefonar para casa, e suas famílias acharam que estivessem mortos.

“A única dor que a Itália me causou foi não me permitir dar um simples telefonema por um ano e dois meses”, disse Tamola.

“Não pude falar com ninguém da minha família depois que fui preso”, confirma Joof. “Cada vez que pedia à polícia ‘quero falar com a minha família’ eles diziam que eu precisava preencher um requerimento para ligar. Eu fiz muitos requerimentos.”

Tradução: Deborah Leão

 

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